terça-feira, 4 de agosto de 2015

História trágico-marítima (CLV)


A história do “Clemencia" (2º)
1ª Parte

Imagem do lugre "Clemencia" (2º) de autor desconhecido
(In revista “Ilustração Nacional”, Nº 3, Póvoa de Varzim, 1919)

Barco à Água
O “Clemencia” (2º)
Estava prestes a dizer-nos adeus, e nem sabíamos. Indicaram-lhe a quarta-feira última para fazer a sua abalada e ele, como escravo do dever obedeceu à imposição. Antes de nos deixar ataviou-se, embonecou-se num coquetismo sedutor, como para nos mostrar na pujança da sua beleza, o orgulho da sua garridice.
Fez-se amar por todos quantos o conheciam para mais vincar de saudades na hora da sua partida. Deixou-nos não por ingratidão mas por obediência.
Se assim não fôra, ele preferiria ficar eternamente sobranceiro ao mar, preso no carcere de tábuas com que o cintaram. Era esbelto e elegante na estrutura das suas formas, gracioso e bem proporcionado na beleza das suas linhas. Não admira, pois, que milhares de olhos pousassem embevecidamente na ondulação das suas curvas e no talhe airoso da sua estética.
E lá partiu. Nos preparativos da sua viagem gastou alguns meses, e para se afamosear precisou de hábeis artífices que o toucaram com a graça do seu saber. Vestiram-no de branco como para os esponsais dum noivado. E que deslumbrante cerimonial e imponentíssimo cortejo! Recebeu o batismo no balaço verde das nossas águas e foi sua madrinha a distinta, e que formosíssima madrinha - a Dª Clemencia Dupin Seabra.
À volta do seu gigantesco berço, fervilhava uma multidão imensa que o cumulava de profecias, e o enchia de elogios. Pela praia ao paredão, na esplanada do Castelo, em todas as janelas fronteiriças ao mar, milhares e milhares de pessoas espreitavam ansiosamente a hora da partida.
No mar, junto à fimbria da costa dezenas de barcos, alguns empavesados de bandeiras. Grave e majestoso pela missão que tinha a cumprir um rebocador, lançando para o ar, de espaço a espaço, rolos de fumo como que, a entreter a demora. Ainda bem juntas, como irmãzinhas que veem radiantes ao encontro de um irmão querido, duas traineiras baloiçam-se na crista das águas, também todas tafuis no seu traje domingueiro, fazendo bambolear as suas bandeiras ao sabor do vento.
Aproxima-se a hora da partida do “Clemencia”…
Os artífices, uma a uma arrancaram-lhe as peias com que o enfaixaram. A sua bondosa madrinha amorosamente corta-lhe o último elo que o prendia à gargalheira do seu cativeiro! Então ele, como se despertasse dum pesado letargo, sacode os membros num súbito arranco, e vai descendo suavemente numa marcha de triunfo até abrir clareira no dorso das águas que ansiosamente o espera para cobrir de beijos e aljofrar de espuma as suas lindas formas.
O instante supremo, do mais supremo e indiscritível entusiasmo aconteceu. Milhares de lenços brancos, como se fosse o bater de asa das pombas, agitam-se nos ares. Momento de delírio, uma trovoada de palmas e uma breve prece: Senhora de Guia te guie. E de todos os corações freme o mesmo anseio, uma perene felicidade para tão lindo barco. As sirenes das traineiras silvam numa aleluia de júbilos e dezenas de foguetes lançados dos barcos do Clube Naval atroam os ares, juntando-se ao clamor vitorioso da multidão.
E ele, como enorme garça de asas abertas pousadas docemente sobre a superfície das águas tenta aproximar-se, para um gentil cumprimento do austero rebocador que lhe foge envergonhado de ter de juntar o seu costado encarquilhado e sujo à face mimosa e linda do sedutor efebo.
Como séquito de honra vão-lhe na sua esteira os pequenos barcos, enquanto os silvos das sirenes festejam alegremente a companhia do “Clemencia”.
Espectáculo imponente se avista do mar para a terra. Aqui é um viveiro humano que se estende pelo areal e cobre os flancos do Paredão. Todos os olhos e todos os corações poisam com devoção e enternecimento sobre o magnífico barco, agora presa cruel do rebocador.
A meia barra passam-lhe à bujarrona uma amarra que lhe torce a proa para o sul. Mais familiar, o rebocador volteia-se e admira-lhe a construção, passando de bombordo a estibordo e toma posições à sua frente como a impor-lhe a condição de refém. De pouca duração foi esta paragem. Mais uma lançada e o rebocador leva-o preso a rumo de nordeste para depois o forçar a seguir a rota de sudoeste.
Apesar da guisa cortante que então fazia e do tempo ameaçador de vento e chuva, a multidão, a pé quedo, não desfitava os olhos das evoluções do elegante barco que, mesmo lá ao longe, conservou a guarda de honra dos seus pequeninos irmãos na labuta do mar.
Mas a irrisão do Destino quis cortar esse preito de admiração da mole do povo. Como imensa toalha de gaze que se desdobrasse na curva do horizonte, vem distendida cobrir numa nevoa esbranquiçada o enlevo daqueles fugidios momentos. E lá ficou sepultado na densa neblina o “Clemencia”, roubado à contemplação de milhares de olhos, envolvendo-o mais e mais na nossa saudade, e o nosso anseio por uma rota feliz.
Que o patrono dos mareantes te proteja, bom veleiro, foi o nosso último voto e o desejo de todos que de ti se despediram.
(a) Leopoldino Loureiro (jornalista e presidente do Clube Naval)

Notas
O navio pertence à empresa C. Dupin & Cª., cuja principal sócia é a Exma. Srª Dª Clemencia Dupin Seabra. A largada que ocorreu às 5 horas e 20 minutos foi, como dissemos, felicíssima.
O barco comboiado pelo rebocador “Beatriz” deu entrada no rio Douro às 9 horas da manhã do dia seguinte fazendo uma travessia acidentada devido ao temporal que desencadeou pela noite dentro.
O “Clemencia” custou aproximadamente 120 contos e tinha dimensões entre perpendiculares 46 metros, de pontal 4,35 metros e de boca máxima 8,70 metros.
Foi seu construtor o hábil artista e nosso conterrâneo, sr. Manuel Gonçalves Amaro, que mais uma vez confirmou os seus créditos, quer na factura do barco, quer na alisagem da carreira, que por bem lançada deu o magnifico resultado duma feliz largada.
O comando do “Clemencia” foi confiado ao capitão da marinha mercante, sr. Joaquim José Rodrigues que, desde o princípio do levantamento da quilha presidiu a todos os trabalhos da construção.
(In jornal “O Comércio da Póvoa de Varzim”, 31 Agosto de 1919)

Imagem do lugre "Clemencia" (2º) de autor desconhecido
(In revista “Ilustração Nacional”, Nº 3, Póvoa de Varzim, 1919)

Dos estaleiros da Póvoa de Varzim desceu ao mar, no dia 27 deste mês, o lugre “Clemencia" (2º), da firma Dupin & Cª. A praia estava coalhada com milhares de pessoas que assistiam aquele espectáculo sugestivo e impressionante; - a enseada cheia de embarcações de pesca e algumas traineiras, davam uma nota festiva, alegre, duma rara jovialidade, com os silvos das suas sirenes como que dando as boas vindas à nova embarcação, que singrou as águas do oceano coberta de bênçãos e de bons desígnios.
Madame Dupin, senhora de rasgos de abnegação e génio varonil, de rara envergadura, estava radiante e desvanecida no êxito completo da sua empresa e na perícia e denodo do seu pessoal técnico que se pode jactar de ter construído um dos melhores vasos que a marinha mercante possui nos estaleiros do Norte.
(In revista “Ilustração Nacional”, Nº 3, Póvoa de Varzim, 1919)

O Lugre “Clemencia" (2º)
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Pessoas idosas com quem tenho conversado lembram-se de se construírem navios na nossa Ribeira, e eu recordo-me do lançamento à água do lugre “Clemencia”, em 19 de Dezembro de 1918, navio que o mar destruiu depois contra a costa, por naufrágio, ao sair da carreira, facto ocasionado por sabotagem do rebocador, que não o puxou ou arrastou convenientemente para o largo; recordo-me também de, com inteiro sucesso, em 27 de Agosto de 1919, uma quarta-feira, ter sido lançado à água o “Clemencia" (2º), bonito navio de três mastros, pertencente à sociedade C. Dupin & Cª., da Anadia, e construído pelo mestre Manuel Amaro, no seu estaleiro no areal da praia de Ribeira, em frente e talvez um pouco a sul da fábrica de conservas “A Poveira”, Lda. - Às quartas-feiras e sábados realizavam-se as feiras da lenha, até ainda há poucos anos!
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(in “Boletim Cultural” Nº 1, Volume 9, Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, 1970)

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