domingo, 30 de junho de 2013

Resumo histórico do vapor “Cassequel”


O afundamento
1ª Parte

O “Cassequel” foi o terceiro navio de longo curso afundado por um submarino alemão durante a IIª Grande Guerra Mundial. Desta feita, o efeito rotina descambou para situações antagónicas. Presidencialmente, conforme se constata através das notícias publicadas na época, a Companhia Colonial recebeu pêsames pela perda do navio e a própria companhia teve a bandeira içada a meia haste, muito embora não se tivessem registado vítimas mortais. Por outro lado, no Funchal as boas vindas da população local aos tripulantes do navio, foi de tal forma apoteótica, que quase faz precipitar a ideia que valia a pena ser náufrago outra vez!
Numa análise mais abrangente, contextualiza-se a hipotética irrelevância do país perder mais uma unidade, por muita falta que pudesse fazer! Fica também provada a capacidade para vencer a batalha da sobrevivência, nos casos agora relatados, independentemente do custo e do sofrimento que a isso obrigou, apesar da perda de outros navios e da vida de tripulantes, nos ataques a que estiveram sujeitos navios de menor porte.
Volvidos todos estes anos, é possível perceber que a história se esqueceu de dar nome aos muitos anónimos colocados acidentalmente no teatro de uma guerra, que o governo de então fez jus não lhes pertencer. A nossa memória colectiva, depois de conhecidas e apreciadas as vicissitudes e os momentos tormentosos vividos pelos referidos náufragos, fará juízo de cada um como vitima ou herói, no reino das causas perdidas.

O vapor “Cassequel”
1926-1941
Armador: Companhia Colonial de Navegação, Lisboa

Imagem do vapor "Cassequel", supostamente no porto de Lisboa
Foto da colecção de Francisco Cabral

Nº Oficial: 489-E - Iic.: C.S.A.L. - Porto de registo: Lisboa
Construtor: W. Gray & Co., Ltd., West Hartlepool, 04-1901
ex “Numantia”, Hamburg America Line, Alemanha, 1901-1916
ex “Pangim”, Transp. Marít. do Estado, Lisboa, 1916-1926
Arqueação: Tab 4.751,26 tons - Tal 3.324,74 tons
Dim.: Ff 121,20 mt - Pp 117,10 mt - Bc 15,88 mt - Ptl 7,80 mt
Propulsão: Mar. Eng. Works, 1:Te - 3:Ci - 369 Nhp - 10 m/h

O vapor “Cassequel”, da Companhia Colonial de Navegação
foi afundado, no Domingo último, no Atlântico
Foi afundado no dia 14 do corrente, portanto no Domingo, pelas 19 horas, o vapor de carga português “Cassequel”, da Companhia Colonial de Navegação. O navio tinha saído da capital no dia 13, véspera do acontecimento.
O “Cassequel” levava carga geral para os portos da África Portuguesa, parte da qual pertencia ao Estado Português e destinava-se a Angola. O navio deslocava 7.300 toneladas. Tinha de comprimento 121 metros. Pertencia à Companhia Colonial de Navegação, desde a fundação da empresa. Antes fora propriedade da frota dos Transportes Marítimos do Estado, com o nome “Pangim”, e pertenceu primeiramente a uma companhia alemã, tendo ao tempo o nome de “Numantia”. Foi construído em 1901, nos estaleiros de West Hartlepool, e tinha motores de 1.500 C.V., possuindo três caldeiras.
Há tempos foi restaurado nos estaleiros da C.U.F., após o incêndio que se registou a bordo, durante uma viagem de África para Lisboa. Este navio no princípio da actual guerra foi levado pela fiscalização inglesa para Gibraltar.
O Estado-Maior Naval emitiu, após ter conhecimento do incidente, um radio a toda a navegação para que os navios que naveguem próximo do local onde o barco foi afundado procedessem a pesquisas. Também dois hidroaviões partiram a fazer pesquisas na zona onde se presume que tenha sido afundado.
Ontem à noite, compareceram junto dos escritórios da Companhia Colonial de Navegação algumas pessoas das famílias dos passageiros e tripulantes, para receberem notícias dos seus entes queridos e colherem detalhes quanto às pessoas que tinham sido salvas.
A Companhia Colonial de Navegação içou a bandeira a meia-haste em sinal de sentimento.
A tripulação do “Cassequel” era a seguinte:
Sebastião Augusto da Silva, comandante; Hermenegildo Rodrigues do Paço, imediato; José Dias Furtado, 2º piloto; Vasco de Sá Jara de Carvalho, 3º piloto; Marcelino Fonseca Sequeira, praticante de piloto; José Pedro Ventura Simões, telegrafista; José Joaquim Rita Júnior, 1º maquinista; José Pedro, 2º maquinista: Alfredo José Vieira, 3º maquinista; José António de Jesus Júnior, ajudante de maquinista; Vasco Baptista Almeida Graça, enfermeiro; Manuel Fernandes, contra-mestre; José Napoleão Aquino Pereira, carpinteiro; Francisco da Silva Sacada, Manuel Espírito Santo Rocha, João Abreu dos Santos e José da Conceição, marinheiros-timoneiros; Manuel Almeida, marinheiro fiel de porão; António Nanim Pimentel, moço paioleiro; Carlos António, despenseiro; Jaime Bento Lampreia, Manuel Oliveira Júnior e José Mendes Romero, criados; João Ildefonso Machado Barbosa, cozinheiro; Carlos Nunes da Maia, ajudante de cozinheiro; Manuel Santos, padeiro; António Augusto Ruela, Mário Tomé Rebelo Santos, João Inácio Nunes, Elias Ramos, Joaquim Mealha Ferreira e Luís Figueiredo, chegadores; Manuel Cristiano Mendes, fogueiro-faroleiro; Bernardo Luís, José Simões, Joaquim Luís, Joaquim Fernandes, José Correia, Manuel Cristiano Mendes, Amaro Domingos Caldas, Guilherme Matos, António Francisco e António Dias, fogueiros; José Almeida, Mário Repolho, Orlando da Silva Saraiva e Mud-Bai, moços.
(In jornal “Comércio do Porto”, quinta, 18 de Dezembro de 1941)

Todos os tripulantes e passageiros do “Cassequel”
afundado no Atlântico estão salvos
Por um radio recebido ontem de tarde em Lisboa, soube-se que a baleeira, a bordo da qual tomaram lugar o comandante e 17 pessoas do vapor “Cassequel”, afundado no Atlântico no último Domingo, pelas 19 horas, um dia depois de ter partido de Lisboa, com destino aos portos portugueses de África, havia sido localizada em determinado ponto por elementos da nossa Marinha de Guerra que tinham saído para fazer pesquisas.
Em virtude desta informação, o Ministério da Marinha ordenou a recolha dos náufragos. Estão, portanto, salvos todos os passageiros e tripulantes do “Cassequel”.
Em Lisboa tinham embarcado, com destino aos portos da África Ocidental, 9 passageiros: Isilda Portela, de 43 anos, solteira, da Covilhã e Josefina Marques, de 49 anos, casada, de Maçãs de Dª. Maria, comerciante, ambas para São Tomé; Lino Pereira Pinto, de 23 anos, casado, torneiro, da Vila da Feira; Alfredo da Silva, de 50 anos, serralheiro, do Porto; Virgílio Santos Pinto, de 36 anos, casado, comerciante, de Moimenta da Beira; Mário Adelino Pires, de 15 anos, estudante em Matanga; e José António Costa, de 23 anos, estudante, de Bragança, todos para Luanda; Adérito dos Santos Tavares, de 19 anos, estudante, de Távora e António Mendes Negrão, de Lisboa, empregado no comércio, solteiro, ambos para o Lobito. Seguiam todos em 3ª classe.
Na melhor das hipóteses os náufragos chegaram a Lisboa de madrugada. De Gibraltar comunicaram às entidades competentes que tinham sido recolhidos por um barco estrangeiro 13 náufragos que chegaram já ali. São todos tripulantes do “Cassequel”: Hermenegildo do Paço, Vasco Almeida Graça, José Passos, José Simões, João Santos, Mud-Bai, José Oliveira, António Barros, Amaro Caldas, António Francisco, Joaquim Fernandes, José Correia e José Pereira.
(In jornal “Comércio do Porto”, sexta, 19 de Dezembro de 1941)

O afundamento do vapor “Cassequel”
Chegaram, ontem, a Lisboa alguns dos náufragos
Chegaram ontem, à tarde, a Lisboa, alguns dos náufragos do vapor “Cassequel” que foram recolhidos no alto mar por elementos da nossa Marinha de Guerra, e tinham tomado lugar a bordo de uma baleeira do navio, aquela que anteontem foi assinalada.
São o comandante sr. Sebastião da Silva e mais 17 pessoas, tripulantes e passageiros do “Cassequel”, que a não ser o cansaço resultante das horas difíceis que passaram a bordo da baleeira, se encontram de saúde. 

O “Cassequel” foi torpedeado por um submarino cuja nacionalidade é, ainda, desconhecida. Trata-se, conforme previamente acentuado, dum novo acto brutal perpetrado contra um país que tem mantido, escrupulosa e exemplarmente, a sua neutralidade. É legítima a indignação que tal atentado provocou em todos os portugueses, ciosos da sua independência e da sua honra.

Em nome do sr. Presidente da República, o sr. General Amílcar Mota apresentou pêsames à direcção da Companhia Colonial de Navegação pela perda do “Cassequel”.

Os náufragos foram carinhosamente recebidos no Funchal
Funchal, 19 – O vapor português “Maria Amélia” fundeou neste porto ontem, às 14 e quarenta horas, trazendo a bordo 24 tripulantes e 7 passageiros do vapor português “Cassequel”. Na ponte-cais centenas de madeirenses aguardavam ansiosamente a chegada do “Maria Amélia”, que fora anunciada à população através dos «placards» dos jornais e por intermédio da capitania do porto.
Apenas o “Maria Amélia” lançou ferro, dirigiu-se imediatamente para junto daquele navio o gasolina da capitania do porto, levando a bordo o Patrão-mor e as autoridades sanitárias e alfandegárias. Depois de cumpridas as usuais formalidades os náufragos do “Cassequel” dirigiram-se para terra em dois gasolinas. Ao desembarcarem no cais foram alvo duma carinhosa recepção por parte de centenas de pessoas que se encontravam na ponte-cais e que lhes ofereceram frutas e garrafas de vinho da Madeira. Seguiram depois até à avenida Dr. Manuel de Arriaga e junto ao monumento a Gonçalves Zarco, descobridor da ilha, foram distribuídos por vários hotéis e pensões da cidade.
Os náufragos declararam que o “Cassequel foi afundado no domingo, 14, às 19 horas. Dois dias depois, na terça-feira, 17 do corrente, foram recolhidos, às 17 horas, pelo “Maria Amélia”, cuja oficialidade e tripulação os trataram com o maior carinho e desvelo, cuidando para que nada lhes faltasse e chegando mesmo alguns oficiais de bordo a ceder as suas acomodações.
Acrescentaram que uma das baleeiras era guiada pelo segundo-piloto do “Cassequel”, José Dias Furtado, e que a outra era conduzida pelo terceiro-piloto, Vasco de Carvalho. Ambos os oficiais não só deram mostras da maior coragem e sangue-frio, como ainda animaram os náufragos durante os dois dias em que as suas baleeiras vogaram ao sabor das ondas. Disseram ainda que os náufragos foram salvos pelo “Maria Amélia”, graças aos sinais que aquele navio recebeu.
Os 31 náufragos do “Cassequel” seguem para Lisboa no dia 24 do corrente, a bordo do vapor português “Lima”. Nenhum deles apresenta quaisquer ferimentos, mas mostram-se bastante fatigados, devido ao frio que sofreram durante os dois dias que navegaram no mar alto.
(In jornal “Comércio do Porto”, sábado, 20 de Dezembro de 1941)

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Resumo histórico do vapor "Corte Real"


O afundamento
2ª Parte

Foto de passageiros e tripulantes do vapor "Corte Real"
à chegada a Lisboa - Imagem do jornal "Comércio do Porto"

O torpedeamento do vapor português “Corte Real”
causou profunda impressão na opinião pública
O torpedeamento do vapor português “Corte Real” causou, como não podia deixar de ser, profunda impressão na opinião pública. Apesar de ter corrido o boato, porque de outra coisa não se tratava senão de boato, de que o “Corte Real” transportava determinado minério, verificou-se já, até pelas declarações do comandante daquela unidade da nossa frota mercante, que nem uma grama desse minério ia a bordo.
A carga do “Corte Real” era constituída por um pequeno lote de cortiça, grande quantidade de relógios e anilinas. Tratava-se de mercadorias vindas da Suíça, e embarcadas num porto italiano, sob a fiscalização e controle das autoridades daquele país beligerante.
A perda do “Corte Real” representa um golpe para a nossa Marinha Mercante, que fica privada de uma das suas melhores unidades. O afundamento do vapor português “Corte Real” causou na opinião pública a mais legítima indignação e a mais dolorosa surpresa. Nada houve que justificasse tal procedimento, pois o “Corte Real” não transportava mercadoria que pudesse ser considerada como contrabando de guerra.
Portugal, que sempre manteve e mantem, ainda, relações amistosas com os países beligerantes, não merece este tratamento tão iniquo como injusto. Observando, sempre, com inexcedível escrúpulo uma política de neutralidade, o nosso país tem o direito de ser respeitado. O afundamento do “Corte Real” constitui, por isso, um atentado ao brio nacional, perante o qual não podemos ficar indiferentes. Tal procedimento é condenável e merece a mais enérgica reprovação dos portugueses que põem acima de tudo a honra nacional.
O que dizem os jornais ingleses
Londres, 15 – A Grã-Bretanha sente e manifesta grande simpatia por Portugal, a propósito do afundamento do “Corte Real”. Todos os principais jornais inserem notícias dos seus correspondentes em Lisboa, principalmente o Times, que publica uma mensagem de 350 palavras na sua primeira página.
Londres, 15 – Acerca do afundamento do “Corte Real” os círculos autorizados de Londres salientam que a falta de humanidade do comandante do submarino, ficou demonstrada pelo facto de ter abandonado os tripulantes e passageiros em escaleres abertos, a 100 quilómetros da costa.
Visto o comandante alemão não ter dado qualquer razão para o afundamento de um navio neutral, que se deslocava em transportes neutros, a única explicação possível conforme se pensa na cidade, é tratar-se de um acto de intimidação dirigida contra um pequeno país neutro, mantendo o comércio pacífico e legitimo com outro país neutro.
A Alemanha deu, assim, a conhecer ao Mundo não estar livre de ataques de qualquer navio navegando no alto mar. Os círculos autorizados de Londres têm por certo que, Portugal com a sua gloriosa e secular tradição naval, insistirá no seu direito de manter em aberto operações de comércio legítimo.
(In jornal “Comércio do Porto”, quinta, 16 de Outubro de 1941)

O torpedeamento do “Corte Real” -  O comandante do submarino
alemão não acedeu ao pedido do capitão do navio português
no sentido de que, para ser poupado, a carga fosse lançada ao mar.
Mantem-se viva e profunda a impressão de pesar nos portugueses pela notícia do afundamento, no Atlântico, do “Corte Real”, atendendo à situação de Portugal como país neutro. É que, de verdade, o acontecimento chega a ser inconcebível e merecedor dos mais duros e amargos comentários.
As autoridades de Marinha estão a ultimar o processo relativo ao afundamento do vapor “Corte Real”, que será enviado oportunamente ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, a fim de habilitar o Governo a tomar sobre o caso as providencias que julgar necessárias.
Teve-se agora conhecimento de que o capitão do navio, sr. José Narciso Marques Júnior, ao falar com o comandante do submarino alemão que afundou o “Corte Real”, prontificou-se a lançar ao mar toda a carga que lhe fosse indicada ou a regressar a Lisboa, comprometendo-se, sob palavra de honra a descarregar aquela mercadoria e a não voltar a transportar não só os produtos que levava como todos aqueles que lhe fossem indicados. Estas propostas, porém, não foram aceites e o barco acabou por ser torpedeado, depois de não terem dado resultado as granadas incendiarias que sobre ele foram lançadas.
Passageiros e tripulantes foram, até certo ponto, rebocados pelo submarino, que a certa altura cessou o reboque. A odisseia dos náufragos durou cerca de treze horas, até serem avistados pelo caíque “A Deus”, que os trouxe para o porto de Lisboa.
O “Corte Real”, visitava com frequência o porto de Génova, não só levando mercadorias para Itália, algumas em trânsito, como tomando ali carga que transportava para outros destinos.
Deste afundamento resultam ainda algumas consequências pouco agradáveis, entre as quais, o benefício dos carregadores americanos, que desviam as cargas para as suas companhias de navegação, com o argumento de que os seus transportes estão a coberto de torpedeamentos.
Comentários da imprensa inglesa
Londres, 16 – O afundamento do “Corte Real” continua a despertar grande atenção. Aguarda-se com enorme interesse, o resultado do inquérito oficial mandado fazer pelo Governo português.
O correspondente do Times em Lisboa informa: «Nada se deu que diminuísse a impressão geral que se sentiu em Portugal da extrema gravidade do assunto.»
(In jornal “Comércio do Porto”, sexta, 17 de Outubro de 1941)

O afundamento do “Corte Real”
O sr. Manuel Pinheiro Chagas, agente em Lisboa da Companhia Carregadores Açoreanos, continuou ontem a tratar do caso do torpedeamento do vapor “Corte Real”, propriedade daquela empresa. No escritório da agência estiveram o capitão do navio, sr. José Marques Júnior e alguns tripulantes. Estes aguardam a solução do seu caso, no sentido de lhes ser indicado outro navio da mesma Companhia para poderem continuar a governar a sua vida, agora prejudicada por motivo da perda do navio onde trabalhavam.
Tem continuado a elaboração do relatório sobre as causas do afundamento, o qual vai ser enviado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros para habilitar o Governo a tomar as necessárias providências.
(In jornal “Comércio do Porto”, sábado, 18 de Outubro de 1941)

Factos e ocorrência
Às 14 horas do dia 12 de Outubro de 1941, o vapor “Corte Real” foi mandado parar para ser inspecionado pelo submarino alemão U-83, que se encontrava sob o comando do capitão Hans-Werner Kraus, a cerca de 80 milhas a Oeste de Lisboa.
Com base no princípio estabelecido que o navio transportava contrabando, por motivo da mercadoria ser destinada aos Estados Unidos e ao Canadá (país beligerante), o comandante do submarino decidiu ordenar que a tripulação e passageiros (entre eles mulheres e crianças) abandonassem o navio em três escaleres. Consumado o desembarque, o submarino abriu fogo contra o navio com o canhão do convés, tendo-se declarado incêndio a bordo, contudo face à provável demora no afundamento do navio, optaram pela destruição do mesmo com dois torpedos, às 16 horas e cinquenta e quatro minutos.
Entretanto, porque um dos escaleres do “Corte Real” se encontrava em mau estado e a meter água, a tripulação do submarino transferiu os náufragos para os dois restantes. Afundado o navio, o submarino procedeu ao reboque dos dois escaleres na direcção da costa portuguesa, durante três horas, até ao local que lhes pareceu oferecer segurança.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Resumo histórico do vapor "Corte Real"


O afundamento
1ª Parte

Depois do violento impacto que teve lugar na opinião pública, referido anteriormente relacionado com o afundamento do vapor “Ganda”, primeira grande vítima dos submarinos alemães na IIª Grande Guerra Mundial, é já percetível um amaciamento nos comentários publicados nos jornais quanto ao torpedeamento do vapor “Corte Real”, e mais interessante ainda, é a constatação do alheamento na defesa feroz dos valores e interesses nacionais, face aos governos dos países beligerantes.
Depreende-se portanto que depois do primeiro caso, os afundamentos seguintes já são aceites como parte de uma rotina, não aceitável mas compreensível, ao ponto de se terem levantado suspeitas relacionadas com a possibilidade do navio transportar uranio. Em qualquer dos casos, consegue-se perceber que o afundamento do “Corte Real” nesta fase é já um mal menor, até porque o armador desta feita, até é beneficiado em função do novo regime de seguros instituído pelo Governo.

O vapor “Corte Real”
1934-1941
Armador: Companhia de Navegação Carregadores Açoreanos,
Ponta Delgada

Foto do vapor "Corte Real" no porto de Nova Iorque
Imagem da Photoship.Uk

Nº Oficial: 949 - Iic.: C.S.A.G. - Porto de registo: Ponta Delgada
Cttor.: A. Vuijk & Zonen, Capelle a/d Ijssel, Holanda, 06-1922
ex “Peursum”, Stoomvaart Mij Oostzee N.v., Amsterdão, Holanda
Arqueação: Tab 2.043,85 tons - Tal 1.211,78 tons
Dimensões: Ff 90,41 mt - Pp 86,26 mt - Bc 12,25 mt - Ptl 5,86 mt
Propulsão: Sulzer, 1922, Holanda – 1:Te – 267 Nhp
Equipagem: 36 tripulantes

O vapor português “ Corte Real ” foi afundado por um submarino
alemão, tendo os náufragos sido recolhidos por um barco de pesca
O vapor português “Corte Real”, da Companhia dos Carregadores Açoreanos, que saiu do Tejo no dia 7 de Outubro para o Porto, foi torpedeado. A bordo seguiam de Lisboa os seguintes passageiros: Dª Odete da Piedade Barros, de Faro, de 20 anos, e sua filha, a menina Aldina Ferraz Violante; Dª América Ferreira da Silva, de Lisboa, e sua filha, a menina Maria Celeste Silva, de 4 anos. No Porto embarcaram mais dois passageiros: J. Ean de Lawillarde Reni, francês e Charles Cante Bufuwer, americano.
O navio foi afundado por um submarino alemão cerca das 13 e trinta horas de Domingo, depois do comandante do submarino ter consultado a bordo a documentação do barco português, e de ter dito ao capitão do “Corte Real”, sr. José Narciso de Matos Júnior, para afundar o navio, que se dirigia para a América do Norte.
Foi tentado o afundamento do navio pelo processo da abertura das válvulas, mas não foi possível metê-lo no fundo desta maneira.
Depois dos passageiros e os 36 tripulantes terem ido para as baleeiras de bordo, do submarino começaram a ser disparados tiros de canhão. Como o navio também não se afundasse desta forma, foi lançado um torpedo.
O “Corte Real”, dos Carregadores Açoreanos, foi afundado, e o submarino, depois de ter recolhido a bordo as senhoras e as crianças, lançou um cabo e rebocou as duas baleeiras durante vinte milhas, largando os náufragos, que andaram 24 horas à deriva.
Ontem, de manhã, os náufragos foram recolhidos por um barco de pesca do porto de Faro, de nome “A Deus”, que os conduziu à barra do Tejo. Depois o barco dos pilotos foi buscá-los e levou-os para a Capitania do porto de Lisboa.
Dos 36 tripulantes são do Norte os seguintes: contra-mestre José Cândido Gonçalves, marinheiro; Francisco Luzia e o criado João dos Santos Lauro, todos de Ílhavo; fogueiros José da Costa e Álvaro Pereira, chegador Jaime Ernesto, paioleiro António Miranda, marinheiro António Marques e o cozinheiro João Marques Ferreira, todos de Vila Nova de Gaia.
(In jornal “Comércio do Porto”, terça, 14 de Outubro de 1941)

O torpedeamento do vapor português “Corte Real”
O mestre do caíque “A Deus” conta como
salvou os náufragos e os trouxe até ao Tejo
O mestre João Matos” do caíque “A Deus”, que transportou os náufragos do vapor português “Corte Real”, após o torpedeamento de que este foi vítima por parte de um submarino alemão, declarou à imprensa:
- «Fundeei para a pesca eram 10 horas. Às 4 e meia, vi dois sinais, dois clarões no ar, provocados por náufragos. O coração deu-me um baque e pressenti desgraça. Fiz-me de vela e tomei o rumo de Sudoeste, a ver se descobria alguma coisa. Avistei duas baleeiras. Corri para elas e eram 6 horas quando tomei contacto com os náufragos.»
Entraram para o seu barco?
- «Só algum pessoal passou para o “A Deus”. O outro ficou em uma das baleeiras, inclusivamente o capitão. Prendi a baleeira a reboque e, como não havia vento, larguei o bote a motor, que usamos para lançar as redes. Foi este bote que rebocou o meu caíque e a baleeira. Valeu-nos estar o mar calmo, como está hoje, aqui, no Tejo. Senão o salvamento teria sido mais difícil e tinha de perder-se a baleeira que conseguiu salvar-se.»
Vieram sempre rebocados?
- «Não. Às 11 horas, entrou o vento e meti o bote a motor dentro do barco. Dei de comer aos náufragos que vinham no meu barco e, por duas vezes, perguntei ao capitão se queria que lhes desse alguma coisa. Mas ainda levavam conservas e não quiseram nada. Quando chegamos ao Cabo Raso é que avistamos o aeroplano.»
O mestre pediu auxílio, como se diz?
- «Não, senhor. Não pedi qualquer auxílio. Estávamos na Guia, perto de Cascais, já não precisava de auxílio. Trouxera os náufragos até ali, melhor podia trazê-los da Guia para cá. Foi às 4 e meia que apareceu o gasolina dos pilotos, entre a Guia e a Ponta do Tamanco. Tinha perguntado ao capitão do “Corte Real” onde queria saltar e, como ele me tinha dito que ficava em Cascais, ia já a aproximar-me de terra para o deixar. O capitão desejava que fosse o meu caíque que o trouxesse até Lisboa, visto que já o tinha trazido até ali. Mas, já da parte de dentro de S. Julião, por indicação do gasolina dos pilotos, a que prontamente obedeci, os náufragos transitaram do meu para aquele barco.»
O socorro aos náufragos trouxe-lhe prejuízos, foi perguntado ao mestre João Matos?
- «E grandes. Perdemos toda a pesca, tivemos de deitar fora todo o isco. Os 25 homens de bordo sofreram um considerável prejuízo. Mas cumpriram bem o se dever de portugueses e já essa consolação nos conforta.»

O Estado-maior Naval, onde ontem compareceu o comandante do “Corte Real”, sr. capitão José Marques Júnior, está a elaborar o processo do incidente, extensa documentação que será depois remetida às entidades do Ministério da Marinha, às quais compete informar o Governo.
A companhia armadora do “Corte Real” é a primeira empresa a beneficiar do novo regime de seguros de guerra instituído pelo Governo, após o torpedeamento do “Ganda”.
(In jornal “Comércio do Porto”, quarta, 15 de Outubro de 1941)

sábado, 15 de junho de 2013

Resumo histórico do vapor " Ganda "


Efeméride
3ª Parte

Foto do vapor "City of Milan", que deu origem ao "Ganda"
Imagem da Photoship.Uk

«Um navio todo iluminado ao longe!... E, nesse momento, acabou-se a gasolina». «Acabou-se-nos o carburante, ao cabo de sessenta horas desta travessia medonha. O motor começou a falhar, precisamente num momento culminante da nossa odisseia – no próprio instante em que nos apareceu, ao longe, um navio todo iluminado. De novo nos invadiu uma lufada de esperança. “Salvos! Vamos salvar-nos!”, gritaram alguns.»
«Fizemos sinais com as lanternas. Até acendemos candeias. Parecíamos doidos! Guinamos na direcção do barco. Já riamos e chorávamos, já se falava em beber água. Água! A nossa maior aspiração, o nosso mais querido sonho!»
Pausa curta. Novo acesso de tosse. O zumbido telefónico cobre um pouco as palavras seguintes, proferidas numa articulação entrecortada.
«Foi, então, que o motor parou em definitivo. Acabara-se o carburante. A lancha ainda singrou mais uns metros, mas acabou por ficar ao sabor das vagas. E, entretanto, diante dos nossos olhos, ali a algumas centenas de metros, a salvação passou e desapareceu no escuro. Deixar que o quebranto nos atrofiasse, era cruzar os braços e tornar certa a morte; era o desistir da luta. E havia que lutar, enquanto nos sobrasse uma réstia de vida. Para a frente! Com uns cobertores, uma lona, dois remos e um pau do toldo, improvisou-se uma vela. O contra-mestre e o marinheiro pareciam ostras agarrados ao remo. Fracos, sedentos, como todos, e como todos atormentados pela aflição, cerravam os dentes e lá iam, no seu posto. Foram grandes esses meus dois companheiros! Grandes temperas e magníficos nervos!»
«Bem procuramos manter o rumo de Leste, mas o mar e o vento empurravam-nos para o Sul, sempre para o sul, com uma força diabólica. Ninguém falava. Nem para isso havia forças! Olhávamos o mar imenso, invadidos pouco a pouco por um atordoamento que me parecia percursor do fim. E o vento não abrandava, e o mar dir-se-ia apostado em martirizar-nos, como se não bastassem a sede e a fome!»
De novo um barco à vista, e a esperança renasce
«Amanheceu o terceiro dia. Estávamos exaustos, lívidos. Ocultávamos uns dos outros aquilo que se passava dentro de nós – o desespero surdo, o desânimo que, traiçoeiro, ia ganhando terreno até nos ânimos mais rijos!»
«De súbito, ao princípio da tarde, surgiu um vapor. Pela confirmação, devia ser um pesqueiro. Não tinha quaisquer sinais reveladores da nacionalidade, nem qualquer distintivo de identificação. Acercou-se. A nossa ansiedade explodiu em gritos e sinais com os braços. Depois, agitamos, loucamente, a nossa bandeira, trapos, peças de vestuário, tudo quanto apanhamos a jeito! Era a vida que estava à nossa frente! E o barco avizinhou-se. E a nossa ansiedade transformou-se em alegria. Fôramos vistos, não havia dúvida. Finalmente!»
«Mais ainda se acercou o navio desconhecido. Não distávamos dele mais do que quinhentos metros. Vi, distintamente, homens que caminhavam no tombadilho. É impossível que não nos distinguissem, também. Por desgraça, por capricho mau da sorte, deu-se o contrário do que esperávamos. O barco mudou, de repente, de direcção e afastou-se. Enrouquecemos de tanto chamar. Continuamos a agitar os panos e a bandeira. Nada! O vapor pesqueiro distanciou-se, com indiferença absoluta e não tardou a só vermos dele um penachito de fumo!... Como não endoidecemos nessa altura? Foi obra de milagre ou prodígio da nossa resistência! Mas o certo é que o desânimo não poupou ninguém, a partir de tal momento. A morte afigurou-se-nos, então, inevitável. E parecia-nos até que tudo era preferível àquele horroroso suplício de ver, por várias ocasiões, a salvação a dois passos de nós e desaparecer, de repente.»
Outro vapor à vista! Era a salvação! Finalmente a vida!
«Às cinco horas da tarde, caídos uns para um lado, outros, para o outro, a lancha parecia transportar fantasmas. Olhava à minha volta e pensava, confusamente, que aquilo ia acabar. Era impossível continuar assim por muito mais tempo. De súbito, lá longe, ao fundo, avistamos um rolo de fumo negro. Um vapor! Outro vapor!»
«Quase ninguém reagiu. O cansaço e o desespero lançara-nos naquela agonia sonolenta. E o vapor navegou para o nosso lado. Tornou-se visível o casco. Chegou-se mais, e, então, toda a gente se ergueu, galvanizada, pressentindo, não sei porquê, que vinha ali a salvação, o regresso à vida! Mais uma vez agitamos tudo quanto podia servir para acusar a nossa presença. E deliramos – sim, deliramos – de alegria, ao vermos que o navio tomava a nossa direcção e que, de seu bordo, alguns homens correspondiam aos nossos sinais. Foi de loucura esse momento! Choramos, rimos; sei lá o que fizemos! Quando o barco chegou à fala, vimos tratar-se de um pesqueiro espanhol. Lá estava o nome no costado; “Ventura Gonzalez”. E ainda maior foi o nosso júbilo.»
«Soou, por fim o minuto durante tantas horas ambicionado; a lancha ficou a cinco metros do pesqueiro. De pé, nervosos, semi-loucos, todos gritávamos, suplicávamos:- Salvem-nos!... Salvem-nos!... Outros clamavam:- Água!... Água!... E a passageira polaca erguia nos braços a filhita, numa súplica mais eloquente do que os nossos gritos. De bordo, os espanhóis, comovidos, diziam-nos: Calma! Tenham calma por uns momentos mais! Vamos salvá-los a todos!»
«E assim foi. Como verdadeiros homens do mar, em rasgos de solidariedade, a todos acolheram e agasalharam. Tinham pouca comida, mas não se serviram dela. Foi para nós, que a devoramos, depois de termos bebido não sei que porções tremendas de água!»
«Havia setenta e duas horas que andávamos ao Deus dará, sem saber para onde navegávamos, já sem esperança de encontrar terra, mas apenas um barco que nos acolhesse. Estávamos a cerca de 200 milhas de Huelva, para onde logo singrou o “Ventura Gonzalez”. Aqui estamos desde as 16 horas. Dizer-lhe como nos receberam e trataram, é impossível. Basta que lhe declare isto: Em Portugal não nos poderiam fazer mais, nem melhor!»
Cinco mortos, deve ser o balanço trágico
do selvático torpedeamento do “Ganda”
Lisboa, 25 – O sr. Bernardino Correia, presidente do Conselho de Administração da C.C.N., esteve já em comunicação telefónica com o cônsul em Huelva, tendo colhido elementos de informação relativos à odisseia dos sobreviventes. O capitão do “Ganda”, sr. Manuel Paião, que, hoje, devia apresentar o seu relatório na Polícia Marítima, aguarda, agora, a chegada dos seus companheiros de infortúnio a Lisboa para apurar mais pormenores sobre as privações dos náufragos na lancha, bem como tudo quanto ocorreu pouco depois das duas embarcações se terem separado uma da outra, para se saber da atuação do submarino ao ver uma pequena embarcação, cheia de homens indefesos, de mulheres e de crianças, em perigo de desaparecer para sempre no mar.
Vieram para Lisboa no navio de pesca “Fafe” no domingo, 26 sobreviventes. Portanto, tendo embarcado no Tejo 72 pessoas, e tendo-se salvo agora mais 41 náufragos, concluiu-se que morreram cinco pessoas na altura do torpedeamento, pois tanto os náufragos da baleeira recolhida pelo “Fafe” como os náufragos do escaler a motor recolhidos pelo “Ventura Gonzalez” chegaram todos sem novidade a porto de salvamento.
A recepção aos náufragos em Lisboa
Amanhã, de manhã, pelas 6 horas, quando as caminhetas com os náufragos chegaram ao Cais do Sodré, serão ali aguardados por uma delegação de funcionários superiores da C.C.N., bem como por outras entidades. O pessoal do cais, armazéns e oficinas da companhia, projecta ir esperar os náufragos a Setúbal.
O Chefe do Estado apresentou condolências à C.C.N.
O sr. Amílcar Mota, chefe da Casa Militar do sr. Presidente da República esteve, hoje, em nome do Chefe de Estado, a apresentar condolências na sede da Companhia Colonial de Navegação, pela perda do vapor “Ganda” e, ao mesmo tempo, felicitações pelo salvamento dos náufragos. O representante do Chefe de Estado foi recebido pelo sr. Bernardino Correia, pelo delegado do Governo, sr. dr. Soares da Fonseca e pelos administradores daquela empresa.
(In jornal “Comércio do Porto”, quinta, 26 de Junho de 1941)

Os náufragos do vapor “Ganda” chegaram ontem, de
manhã, a Lisboa, tendo sido carinhosamente recebidos
Lisboa, 26 – Após uma dolorosa odisseia chegaram, hoje, a Lisboa, os náufragos do vapor português “Ganda”, vítima de um inqualificável e cobarde torpedeamento.
Pouco antes das 7 horas, as caminhetas que os conduziam, acompanhadas pelo delegado da C.C.N., sr. Joaquim Raposo, chegaram a Cacilhas, onde muito povo as aguardava. Ouviram-se nesse momento prolongadas salvas de palmas, vivas a Portugal e à sua Marinha Mercante.
O vapor “Palmense”, no qual os náufragos embarcaram para Lisboa, partiu de Cacilhas às 7 horas e cinco minutos e atracou dez minutos depois no Cais do Sodré. Desde muito cedo, que se encontravam ali centenas de pessoas aguardando a chegada dos náufragos. Muitos dos presentes empenhavam ramos de flores.
A Companhia Colonial de Navegação estava representada pelo seu presidente do Conselho de Administração, sr. Bernardino Correia, pelos srs. administradores srs. capitão Raposo Pessoa e eng. Nunes Correia; pelo gerente sr. Raul Vieira, pelo inspector sr. comandante Júlio Ramos e por uma numerosa delegação de funcionários de todas as secções.
No momento em que o vapor atracou, a multidão que se aglomerava no cais deu palmas entusiasticamente e acenou com lenços e com flores. Havia lágrimas em muitos olhos. Todos se sentiam tomados de funda emoção. (…)
Um coro de aclamações ecoou então por todo o cais. Estabeleceu-se a comunicação com a terra e os náufragos desembarcaram por entre abraços, beijos e salvas de palmas. Deram-se cenas comoventes.
Entre os homens que chegaram a Lisboa, há um que se destacava pela sua naturalidade ao receber os abraços das pessoas de família e dos amigos: o contra-mestre José Pereira. Os outros riam com natural satisfação. (…)
A multidão adensou-se em volta dos náufragos e, durante alguns minutos, o trânsito esteve interrompido na parte ocidental da Praça Duque da Terceira.
Em nome dos tripulantes que embarcaram no escaler a motor, o maquinista Azevedo dirigiu-se ao sr. Bernardino Correia, a quem agradeceu tudo quanto a C.C.N. fez para conseguir o salvamento dos náufragos e para os rodear de conforto desde a sua chegada a Huelva. Pouco depois das 7 horas e trinta minutos, terminadas as manifestações, os sobreviventes do “Ganda” seguiram para suas casas. No cais do Sodré, à ordem da C.C.N. estiveram quatro viaturas dos Bombeiros Voluntários Lisbonenses, da Cruz de Malta e dos Voluntários da Ajuda, para o que fosse necessário quanto a assistência.
A identificação dos mortos
Após a chegada dos náufragos a Lisboa e depois de feita a conferência de presenças na Polícia Marítima, pode esclarecer-se definitivamente o total e o nome das pessoas que morreram vítimas do inqualificável atentado praticado contra o “Ganda”.
Dos passageiros morreram os srs. Francisco da Silva Ferreira, de 38 anos, natural do Cadaval, tratador de gado, passageiro de 3ª classe, que fazia frequentes viagens entre a Metrópole e Angola, e Hermenegildo Pereira da Silva, de 28 anos, natural do Porto, empregado no comércio, passageiro de 2ª classe. Dos tripulantes morreram os srs. Francisco Rodrigues Leite Pereira, imediato do “Ganda”; José Pereira da Costa, 3º maquinista e José Luis Caldeira, fogueiro.
Na Polícia Marítima foi, hoje, ouvido pelo sr. primeiro-tenente Sales Henriques, o sr. capitão Manuel da Silva Paião, comandante do “Ganda”. O processo está a ser elaborado e será enviado dentro de poucos dias às estâncias superiores.
O relatório do capitão do “Ganda”
O capitão do vapor “Ganda” foi, ontem, entregar o seu relatório acerca do torpedeamento daquele navio ao chefe do Estado-Maior Naval.
Uma declaração do quartel-general
das forças armadas de Itália
A Real Legação da Itália em Lisboa comunica a seguinte declaração do quartel-general das forças armadas:
«Nenhum submarino ou unidade de guerra da Real Marinha Italiana se encontrava em operações no Atlântico nos dias 1 a 20 de Junho, na zona em que foram afundadas as unidades da Marinha Mercante portuguesa “Exportador I” e “Ganda”.
Deve-se, portanto, excluir a hipótese de que os dois episódios que atingiram a Marinha Portuguesa tenham sido obra de unidades italianas que operam no Atlântico, as quais – assim como as que andam em operações em outros mares – sempre demonstraram a sua atitude cavalheiresca e humana e o respeito pelas mais nobres tradições militares, mesmo nas acções contra as unidades inimigas, tendo tudo isto já sido posto em evidência na imprensa portuguesa.
Tal declaração é enviada agora, só depois dos competentes órgãos militares – que iniciaram imediatamente o inquérito junto dos comandos interessados – terem dado a sua asseguração oficial e inequívoca.»
(In jornal “Comércio do Porto”, sexta, 27 de Junho de 1941)

Factos e ocorrência
Confirma-se que o ataque ao vapor “Ganda” foi efectuado pelo submarino alemão U-123, sob o comando do capitão Reinhard Hardegen, no dia 20 de Junho de 1941, na posição longitude 34º10’N e latitude 11º40’O, no decorrer da viagem com origem em Lisboa, para portos de Angola e Moçambique, transportando passageiros e mercadoria diversa.
No relato da ocorrência consta que às 20 horas e dez minutos do dia 20 de Junho de 1941, um vapor sem escolta foi atingido em local próximo à casa das máquinas, por um de dois torpedos, ao largo de Casablanca. Depois da tripulação abandonar o navio, um novo torpedo foi disparado às 20 horas e 19 minutos para lhe acelerar o afundamento, vulgarmente identificado como tiro de misericórdia. Dado que o vapor, muito embora adornado se mantinha a flutuar, o submarino subiu à superfície a coberto do crepúsculo do anoitecer para afundar o navio, através de canhoneamento com diversas granadas.
Quando o submarino alemão se aproximou das baleeiras para questionar a tripulação sobre a identidade e a nacionalidade do vapor torpedeado, constataram ter errado ao afundar um navio de um país neutral, pelo que acto contínuo se afastaram do local. De acordo com instruções do comando da flotilha alemã de submarinos, o registo do ataque no diário de bordo do submarino em questão por motivos óbvios foi rasurado e anulado.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Resumo histórico do vapor " Ganda"


Efeméride
2ª Parte

Detalhe da imagem previamente publicada

Os náufragos foram acolhidos, carinhosamente, pela população
de Huelva, pelas autoridades e pelo cônsul de Portugal
Huelva, 24 – Os quarenta e dois restantes náufragos do vapor português “Ganda”, torpedeado no Atlântico, chegaram hoje a Huelva, numa lancha a gasolina. Os três dias e duas noites que andaram perdidos no mar, refletiam-se bem nos seus semblantes – contristados, dolorosos.
Após o torpedeamento – contam os náufragos, tomaram lugar na lancha a motor e navegaram sempre para Leste, em procura de terra que os seus olhos pareciam nunca mais ver. Torturados pela fome, os lábios inchados pela sede, prostrados pela fadiga, descalços e com os pés curtidos pela água salgada e pelos ventos oceânicos, os náufragos quando chegaram ao porto, mais pareciam mortos do que vivos.
Em Huelva, houve um movimento de verdadeira surpresa e logo de toda a parte esta boa gente acorreu a prestar o seu auxílio, a aliviar o sofrimento dos desventurados náufragos. Avisado sem detença, o cônsul de Portugal não se fez esperar e, imediatamente, providenciou para que lhes fossem fornecidos calçado e alimento. As autoridades locais colaboraram com a maior solicitude.
A srª Dª Luisete Rosinha, filha do inspetor escolar de Luanda, que se dirigia para Angola na companhia da srª Dª Rosa Maria Araújo Ribeiro e de, sua filha, a srª Dª Maria Ernestina Ribeiro, respectivamente irmã e sobrinha do redactor do «Diário de Lisboa», sr. Norberto de Araújo declarou aos jornalistas que, tendo perdido de vista a outra baleeira, os náufragos andaram três dias ao sabor das ondas e que, todos, a bordo, mostraram a maior coragem e se animavam mutuamente, certos de que atingiriam terra ou de que algum navio os encontraria e os socorreria. Foi, com infinda, com transbordante alegria, que hoje lobrigaram terra.
O que se passou a bordo da lancha, nesse momento, não pode descrevê-lo a srª Dª Luisete, ainda presa da comoção que dela e dos seus infortunados companheiros se apoderou. A primeira preocupação, porém, foi transmitirem para Portugal, para as suas famílias, a notícia de que estavam salvos, porque bem calculavam a angústia que os seus parentes e amigos sofriam.
A srª Dª Lígia da Fonseca, redatora do jornal «Província de Angola», que também seguia viagem para Luanda, sofreu um ferimento na cabeça, do qual foi tratada com a maior solicitude. Os náufragos devem partir amanhã, às 12 horas, de Huelva para Vila Real de Santo António, onde os esperam duas camionetas que os transportarão a Lisboa.
As entidades oficiais e a Companhia Colonial desenvolveram
todos os esforços para conhecer o paradeiro da lancha
Foi a maior a actividade desenvolvida pelas estações oficiais e pela Companhia Colonial de Navegação para serem obtidas informações sobre os náufragos. Os hidroaviões da Marinha percorreram o oceano sem conseguir localizar a lancha, e, ainda anteontem, dois aparelhos, um pilotado pelo sr. comandante Paulo Viana, que levava como observador o sr. segundo-tenente Décio Braga da Silva, outro, tripulado pelos srs. tenentes Noronha e Nogueira, largaram do Tejo às 13 horas, tomando o rumo do Atlântico. Chegaram a ir a umas 160 milhas do Algarve e voltaram à base às 19 horas, sem quaisquer notícias sobre a lancha.
O posto radiotelegráfico da Armada transmitiu, também, pedidos no sentido de obter informações. Nada conseguiu. Persistia, porém, nos meios marítimos, a esperança de que a embarcação, ou pelos seus próprios meios, pois estava provida de combustível, havia atingido a terra, ou os seus passageiros teriam sido salvos por barco que não pudesse, por pertencer a país beligerante, anunciar a sua posição, ou por navio de pesca desprovido de T.S.F. e consequentemente com impossibilidade de fazer qualquer comunicação. As esperanças não foram baldadas.
Até à noite, porém, nem no Ministério da Marinha ou na Colonial havia notícias da lancha, como nada constava sobre a louvável acção dos aviões franceses de Marrocos, que andaram em pesquisas por aquelas paragens depois do adido de Aeronáutica francês, sr. capitão de Tournemire, e o adido naval sr. comandante Divonne, com o assentimento do sr ministro da França, terem pedido às autoridades marítimas portuguesas informações acerca do local onde havia sido torpedeado o “Ganda”, que transmitiram à residência geral, em Rabat.
Por seu turno, a embaixada de Inglaterra informou para Gibraltar do desaparecimento da lancha, a fim de que os aviões daquela base procurassem a pequena embarcação. A essas manifestações de boa vontade há a juntar, ainda, que o cônsul de Portugal em Casablanca telegrafou à Companhia Colonial a perguntar-lhe se desejavam que fretasse um rebocador, o qual iria à procura dos náufragos. Foi respondido imediatamente que a Colonial agradecia os seus esforços e autorizava não só o fretamento da embarcação como a adopção de quaisquer outras providências.
A bordo do “Ganda” viajavam 72 pessoas,
entre as quais 15 passageiros
Embarcaram no “Ganda” como se disse 72 pessoas: 50 homens de tripulação, 15 passageiros, 5 angolanos tratadores de gado e dois passageiros clandestinos, ou seja, um total de 72 pessoas. Vinte e dois tripulantes, um dos tratadores de gado e três passageiros chegaram, no domingo, a Lisboa, no “Fafe”. Entre estes últimos vinha o polaco sr. Abraham Sadkowski, nascido em Konaki, em 1892. A guerra obrigou-o a sair de Antuérpia, onde estava estabelecido, e veio, então, para Portugal, onde chegou, em Agosto do ano passado, com sua mulher, Jochmeta Sadkowski, de 50 anos, e três filhos; Mayer, de 26 anos; Isaac, de 18, e Henri, de 16. Os dois primeiros seguiram para a América no “Niassa”, no dia 3, a fim de se dirigirem à República de S. Domingos. O sr. Abraham Sadkowski, sua mulher e o filho Henri, dirigiam-se, agora, a Lourenço Marques, de onde seguiriam para Xangai, tal como outras duas passageiras do “Ganda”, as polacas Anna Gutman e sua filha Annette Gutman, de 28 e 10 anos de idade, que iam juntar-se a seu marido e pai e foram salvas na lancha que chegou a Huelva.
Quando disseram ao sr. Abraham Sadkowski que a lancha havia chegado a Huelva, ficou radiante. Quase sem poder mexer-se, por ter ficado, em consequência do torpedeamento, bastante ferido nas pernas, dir-se-ia, tal a alegria que recebeu, que as dores físicas haviam desaparecido, pois ergueu-se rapidamente da cadeira em que, havia horas, se encontrava, vencido, física e moralmente.
O contra-mestre do “Ganda”, sr. José Pereira, de 54 anos, natural de Tavira, está ao serviço da Companhia Colonial de Navegação há mais de vinte anos e exerce aquelas funções no mesmo navio há dez. Os passageiros polacos e o contra-mestre vêm na lancha e, com eles, o sr. Hermenegildo Pereira da Silva, que no “Ganda” seguia para o Lobito. Residente no Porto, com sua mãe, (…) a notícia de que estava salvo causou a maior satisfação.
A notícia do aparecimento dos náufragos
divulgada através de organismos oficiais
A Emissora Nacional, logo que teve conhecimento do aparecimento da lancha, comunicou a nova a todo o país, para África e para a América. É de calcular o regozijo que a notícia deve ter causado, pois o avaliamos pelos momentos de alegria que vivemos quando, por outros meios a recebemos. À Polícia de Vigilância e Defesa do Estado se deve a rápida divulgação da agradável, pois para toda a parte a transmitiu com o muito louvável intuito – que todos devem agradecer – de serenar os espíritos e a ansiedade em que vivíamos.
A assistência prestada aos náufragos
pela Companhia Colonial de Navegação
O sr. Bernardino Correia, presidente do concelho de administração da Companhia Colonial de Navegação, logo que teve conhecimento da chegada dos náufragos a Huelva, providenciou de forma a ser-lhes prestada toda a assistência, correndo as despesas por conta da mesma Companhia. Para Huelva partiu, como delegado daquele organismo, o sr. Joaquim Raposo, funcionário superior dos escritórios. O sr. Bernardino Correia recebeu muitas felicitações pelo aparecimento dos náufragos.
O sr. embaixador de Espanha comunicou com Huelva
Mal teve conhecimento da chegada dos náufragos a Huelva, o sr. D. Nicolau Franco, embaixador de Espanha em Lisboa, comunicou telefonicamente com o sr. governador civil daquela província, a quem pediu informações acerca do que se passara, e a quem manifestou o seu caloroso interesse pela sorte daquela pobre gente. Ouviu, com prazer, que todas as providências tinham sido solicitamente dadas para que nada lhes faltasse.
Nas paragens do torpedeamento não havia nenhum
submarino britânico, segundo uma nota da embaixada Inglesa
Como foi dito, os tripulantes e passageiros do “Ganda” não puderam ver a nacionalidade do submarino que o torpedeou sem aviso prévio, muito embora, bem visíveis, o vapor ostentasse a sua denominação e a nacionalidade. A propósito, foi recebida da embaixada inglesa a seguinte comunicação: «Em relação com o afundamento do vapor português “Ganda”, a embaixada britânica está habilitada a declarar, categoricamente, que nenhum submarino britânico ou aliado, se encontrava, na data em questão, nas águas em que o incidente ocorreu».
O seguro de guerra para os marítimos portugueses
Como consequência da situação criada pelo selvático torpedeamento, estuda-se a forma de fazer o seguro de guerra para os marítimos portugueses que vão para o alto mar, providência que o Governo não tem querido adotar, dentro do espírito absoluto da nossa neutralidade.
Como medida de precaução, as estações oficiais de Marinha deram também ordem, para os barcos de pesca, em vez de uma baleeira, como até agora, levarem duas. Na sede da Colonial, continuaram ontem a ser recebidas afirmações de repulsa pelo acto de pirataria cometido contra o “Ganda”. Ali estiveram, entre outras pessoas, os srs. engº. Sá Carneiro, director geral do Fomento Colonial; dr. Ascensão Ramos, secretário-geral da Junta da Marinha Mercante; Fausto de Figueiredo, Henrique Monteiro de Mendonça, representantes das empresas coloniais, carregadores, etc.
O comandante do “Ganda”, sr. Manuel Paião esteve, por sua vez, na Polícia Marítima, a tratar de assuntos ligados ao relatório sobre o torpedeamento.
A odisseia dos náufragos que andaram
setenta e duas horas nas águas do mar
Foi entretanto possível entrevistar telefonicamente um dos náufragos, o sr. José Maria Azedo, segundo maquinista do “Ganda”, cujas declarações são as seguintes: «Foram setenta e duas horas de inferno, de loucura, sentindo morrer a esperança, de momento a momento!... (…) Eu estava na casa das máquinas, quando rebentou o primeiro torpedo. O barco estremeceu. Tudo oscilou à minha volta.»
«Sobre uma explosão, uma outra, enorme, pavorosa!»
«Galguei as escadas e vim ver o que se passara. Nem por sombras podia conceber que fôramos torpedeados – nós, um barco de país honestamente neutral! Ao chegar ao tombadilho, quis perguntar o que sucedera, mas não tive tempo para isso. Houve outra explosão, enorme, pavorosa! O barco quase se empinou. Uma formidável coluna de água levantou-se junto da amurada. Estabeleceu-se a inevitável agitação, mas começamos, imediatamente, a tratar de salvar os passageiros. O nosso comandante dava exemplos de sangue-frio, olhando por tudo e por todos…»
(…) «Uma vez dentro da lancha, com os cinco bidões de carburante a bordo, procuramos arrumar aquela gente toda – pobre gente, com a cabeça perdida pelo inesperado e pela brutalidade da desgraça que nos feria! Não tínhamos água, nem viveres. Cartas ou aparelhos de orientação também não havia. Mas o momento não era para hesitações!... Para a frente!»
«Encarreguei-me do motor. O contra-mestre e um marinheiro – foram admiráveis, pode crer! – tomaram, por turnos, conta do leme. Adiante, e que Deus nos protegesse!»
«De princípio, pensamos em navegar junto da baleeira mas o mar estava terrível, encapelado, e separou-nos. Foi uma noite medonha! Nunca o esquecerei! Guiávamo-nos pelas estrelas. O nosso comandante sempre previdente – recomendara-nos que tomássemos o rumo Nordeste, para alcançar a terra. Assim diligenciamos fazer; no entanto, o mar aumentava de fúria, a lancha era sacudida por tremendos vagalhões. Mas lá seguíamos, conforme nos era possível. Compreendemos que a agitação do mar não nos consentia manter o rumo indicado. Resolvemos ir para Leste, rumo que as ondas prejudicavam menos. Todavia, levantou-se um vento impetuoso. As vagas tomaram extraordinário volume. Varriam a lancha de lés-a-lés. Parecia divertirem-se com a nossa angústia! Porém, ninguém desanimava. As senhoras – devo prestar-lhes justiça! – foram assombrosas de coragem. Muito concorreram para nos manter o moral. Especialmente uma senhora polaca, passageira, que viajava com uma filhinha, mostrou-se de um animo rijo, verdadeiramente espantoso. Nunca, na minha vida, pensei que um espirito de mulher pudesse manifestar tamanha firmeza!».
«Era um avião! Agitamos panos, roupas, a nossa bandeira!»
«A sede torturava-nos; a fome depressa começou a minar-nos também. Mas a primeira é horrorosa! Abrasávamos, tínhamos a garganta encortiçada! Era um sofrimento indiscritível. Não obstante, nem ousávamos esboçar uma queixa, perante a resignada coragem com que as senhoras suportavam o tormento.»
«No dia seguinte ao torpedeamento, quase ao fim da tarde, ouvimos um ruido surdo, vindo do ar. Era um avião escuro. Pareceu-me cinzento. Seria nosso? Seria português? Não sei, nem faço suposições. Sei apenas que fomos arrebatados por uma ansiedade louca. Agitamos panos, roupas e a nossa bandeira! Esbracejamos com desespero; Gritamos! Sei lá o que fizemos! Mas o aparelho ia alto, com rumo Oeste-Leste, ou seja na direcção de terra, e não tardou a sumir-se.»
Uma pausa, o nosso interlocutor fala, agora, num tom de vibrante comoção, evocando a angústia crescente, após a cruel desaparição daquela esperança.
«Como hei-de dizer o que em nós se passou? Foi como se nos tivessem dado uma martelada na cabeça. Ficamos tontos, a olhar uns para os outros, a sentir cá dentro uma grande sombra negra! Mas fingimos não atribuir maior importância ao sucedido. C’os diabos, sempre havia de aparecer um navio que nos salvasse! Assim falávamos, assim queríamos animar-nos, mas, por mim – confesso – pensei seriamente, que não voltaria a ver terra, não voltaria a abraçar os meus. A morte espreitava-nos! Penetrava-me a convicção de que não poderíamos escapar-lhe.»
«Firmes, o contra-mestre e o marinheiro, lá continuavam ao leme, e eu não abandonava o motor. Ao menos, era um motivo que me desviava os pensamentos do fim que eu julgava inevitável. Mas à sede e à fome, à ventania e à fúria do mar, outra angústia veio somar-se: o carburante diminuía a olhos vistos. Cada vez que lançava no depósito mais uma quantidade do precioso liquido, era como quem arrancava um pedaço de mim próprio. Calava-me e remoía comigo as desoladoras impressões.»
«E mais uma noite passou – uma noite de pesadelo, horrível, cheia de pressentimentos ruins que – graças a Deus! – não se confirmaram. Dormir? Quem pensava em dormir, e quem poderia fazê-lo? A nossa gente caía numa espécie de prostração silenciosa, mais eloquente e mais angustiosa do que os gritos ou os choros. E de serviria gritar ou chorar? A nossa sorte estava nas mãos de Quem tudo pode! Que fosse feita a Sua vontade!

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Resumo histórico do vapor "Ganda"


Efeméride
1ª Parte

Junho de 1941. A história do torpedeamento e afundamento do vapor “Ganda”, cujo relato publicamos nos posts seguintes, parece que aconteceu há muito tempo, mas quando apreciado em termos históricos, verifica-se que decorreram apenas 72 anos sobre o incidente, portanto a poder considerar-se plenamente contemporâneo. Trata-se de um episódio ocorrido durante a IIª Grande Guerra Mundial, e por conseguinte verdadeiramente aterrador, pela certeza da existência de muitas pessoas que o viveram de perto, perfeitamente capazes de recordá-lo e penosamente incapazes de o esquecer!
Os textos são elucidativos quanto ao sinistro. São, na minha perspetiva melhores ainda, pelo retrato revelador da paz podre e enganosa de como se vivia na época, de falsos moralismos e engenhosos pseudonacionalismos. De tal forma, que a espaços, torna-se difícil entender se os pêsames oficiais apresentados ao Conselho de Administração da Companhia, eram dirigidos às eventuais vítimas do naufrágio - ainda sob confirmação -, ou se por outro lado visavam tão-somente um vivo lamurio pela perda do navio. E o pior de tudo, era a incapacidade oficial do Governo Português reagir ou ripostar, face à colaboração camuflada, quando não descarada, com os principais países em conflito.

O vapor “ Ganda “
 1930 – 1941
 Armador: Companhia Colonial de Navegação, Lisboa

Foto da vapor "Ganda" em Lisboa
Imagem da colecção de Francisco Cabral

Nº Oficial: 682 - Iic.: C.S.F.W. - Porto de registo: Luanda
Construtor: Flensburger Schiffsbau Ges., Flensburg, 1907
ex “Plauen”, Deutsch-Australische, Hamburgo, 1907-1919
ex “Plauen”, Governo Inglês, Londres, 1919-1920
ex “City of Milan”, City Line, Liverpool, 1920-1930
Arqueação: Tab 4.332,87 tons - Tal 2.704,38 tons
Dimensões: Pp 118,54 mts - Boca 15,55 mts - Pontal 7,70 mts
Propulsão: Flensburger, 1:Te - 3:Ci - 2.237 Ihp - 12 m/h

O vapor português “Ganda” foi torpedeado, ao largo da costa
de Marrocos, por um submarino de nacionalidade desconhecida
tendo morrido alguns dos tripulantes no momento em que
embarcavam num escaler
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O arrastão de pesca “Fafe” da praça do Porto, radiografou ontem, de manhã, para Lisboa, uma comunicação informando que tendo ido pescar para o Cabo Branco, na costa de Marrocos, havia recolhido uns náufragos do vapor português “Ganda”, em número de 26, compreendendo o capitão, tripulantes e três passageiros, e que navegava com rumo a Lisboa, onde devia chegar pelas 16 horas.
Para o cais do frigorífico a aguardar a chegada do “Fafe” dirigiram-se, antes daquela hora, diversas entidades oficiais, entre as quais o sr. Bernardino Correia, presidente do Conselho de Administração da Companhia Colonial – empresa proprietária do “Ganda”, e dr. Soares da Fonseca, representante do Governo, junto da Companhia.
Para o referido cais dirigiu-se uma ambulância e no posto médico do Grémio dos Armadores de Pesca de Arrasto tudo se preparou para receber os náufragos de que houve conhecimento estarem feridos. Às 16 horas e trinta minutos o “Fafe” atracava, iniciando-se o desembarque dos náufragos.
O capitão do “Ganda” sr. Paião, natural de Ílhavo, contou que no dia 20, às 17 horas e 15 minutos o “Ganda” foi atingido por um torpedo, na altura do tanque da água. Julgou-se a princípio, que se tratava de um choque e o carpinteiro de bordo desceu a ver o que acontecera.
Entretanto, apareceu o periscópio dum submarino de nacionalidade desconhecida, e ao compreender o que se passava o capitão do “Ganda” mandou arrear as baleeiras e o escaler a motor. O mar, porém, estava em cachão e algumas das baleeiras voltaram-se, tendo a que depois foi recolhida pelo “Fafe”, de salvar alguns dos respectivos tripulantes, e o escaler a motor de recolher mais de 40 pessoas.
Devido a isto morreram alguns dos náufragos do “Ganda”, entre os quais o imediato sr. Francisco Leite e o terceiro-maquinista sr. José Pereira da Costa, não se sabendo se há mais vítimas. Pouco depois um novo torpedo atingiu o porão Nº 3 e o “Ganda” começou a afundar-se enquanto a baleeira e o escaler se afastavam. Ao anoitecer o submarino emergiu e disparou contra o “Ganda” diversas granadas para apressar o seu afundamento.
Os tripulantes e passageiros depois de receberem os primeiros curativos no posto médico do Grémio dos Armadores da Pesca de Arrasto, seguiram para suas casas, à excepção de José Clara, de 31 anos, e de Caetano Rodrigues, de 52 anos, que recolheram à enfermaria do Hospital da Liga dos Amigos dos Hospitais. Além do comandante, sr. Paião chegaram mais 22 tripulantes e três passageiros.
São estes: José Pereira, Mário Fernandes, José Clara, Luís Nascimento, Chappa Andy, José Fernandes Silva, José da Silva Abegão, Vítor Ferreira, Caetano Rodrigues, José Amarelo, Vidaúl de Andrade, Luís Miranda, José Pereira Júnior, Sad Konstur, José Albino, Faustino Moreira, Guilherme Morais, Joaquim Serra, Ubaldo Alves, Joaquim Boavida e Pedro António de Oliveira.
O “Ganda” havia saído de Lisboa para os portos de África no dia 19. Era um navio mixto para carga e passageiros, estes, porém, em pequeno número, e saíra com 50 tripulantes, 16 passageiros e cinco negros repatriados. O “Ganda “ tinha 6.770 toneladas e era um dos nossos melhores navios de carga. Não se sabe até ao momento, 23 horas e trinta minutos, do paradeiro do escaler a motor que recolheu 40 dos náufragos.
Completando acima publicadas, de madrugada chegaram ainda os seguintes pormenores: Faltam 37 náufragos, contando-se entre estes 6 a 7 senhoras. Morreram, além do imediato e terceiro-maquinista um azeitador.
Esta madrugada, vai sair para pesquisas um navio de guerra e ontem de tarde partiram aviões que percorreram a costa, procurando a lancha-motor. Presume-se que os náufragos tenham arribado à costa de Marrocos.
Para uma Nação que, como Portugal, tem observado a mais estrita neutralidade no actual conflito, o facto que se relata causa a mais profunda estranheza. O nosso Governo tem sabido cumprir, admiravelmente, as afirmações solenes que diversas vezes fez de manter o País neutral. E por isso, o facto passa de estranho a deplorável, pois deve ser levada em conta, por qualquer dos beligerantes, a forma lealíssima como Portugal tem cumprido os seus deveres como país neutral. Espera-se, por conseguinte, que tão lamentável facto se não repita, pois o nosso País não é disso merecedor.
(In jornal “Comércio do Porto”, segunda, 23 de Junho de 1941)

De Lisboa – O afundamento do vapor português “Ganda”,
sem aviso prévio, causou profunda indignação.
Efetuam-se diligências para encontrar a lancha-motor do “Ganda”,
cujo paradeiro se ignora
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(…) Continua a ignorar-se o paradeiro da lancha-motor do “Ganda” que transporta 41 náufragos. Há grande ansiedade em Lisboa em saber-se notícias dos infelizes passageiros e tripulantes. O torpedeamento causou grande indignação.
Ao edifício da Companhia Colonial de Navegação que tem a bandeira a meia adriça em sinal de luto, acorreram logo de manhã numerosas pessoas das famílias dos passageiros e tripulantes do “Ganda” que estão no escaler, cujo paradeiro se desconhece.
Muitas entidades oficiais e outras relacionadas com a indústria de transportes marítimos apresentaram condolências ao sr. Bernardino Correia, presidente do Conselho de Administração da C.C.N. e aos seus colegas da Administração.
Os corpos gerentes da Companhia Nacional de Navegação, acompanhados pelo seu presidente, sr. prof. Ruy Ulrich, e pelo delegado do governo, sr. tenente-coronel Mendes do Amaral, estiveram pelas 11 horas na sede da C.C.N.
A apresentar condolências para o mesmo efeito também compareceram ali o industrial sr. Alfredo da Silva e representantes de outras empresas de navegação, firmas coloniais, diversos oficiais da Armada e do Exército, carregadores, etc. O sr. Bernardino Correia, acompanhado pelo sr. dr. Soares da Fonseca, delegado do governo junto da C.C.N., conferenciou hoje sobre o assunto com o Chefe do Estado-maior Naval, sr. contra-almirante Sousa Ventura, o qual recebeu também o comandante do “Ganda”, sr. capitão Manuel Paião, que concluiu já o seu relatório oficial da ocorrência.
Pode, assim, precisar-se que o “Ganda” navegava na latitude 34º10’ Norte, e na longitude 11º40’ Oeste, quando, exactamente às 19 horas e trinta minutos (hora de Lisboa) foi tocado pelo primeiro torpedo. Confirma-se que já ao crepúsculo, o submarino emergiu e utilizou granadas incendiárias contra o “Ganda”, conseguindo largar-lhe o fogo e afundá-lo mais depressa.
Se o submarino agressor não tivesse utilizado este último meio de destruição e se se tivesse afastado confiado em que o navio se afundaria, o comandante Paião teria voltado a bordo, porque estava convencido de que o seu navio se manteria à superfície, pelo menos até receber assistência.
A companhia Colonial de Navegação expediu um telegrama ao seu agente em Casablanca, encarregando-o de fazer todas as diligências para saber se o escaler a motor terá chegado a alguma praia ou a qualquer outro ponto da costa marroquina donde fosse difícil comunicar. A bordo havia bastante gasolina, mas os náufragos não tinham tido tempo para trazer quaisquer alimento, nem um litro de água.
Parece poder admitir-se já que além do 3º maquinista do “Ganda” morreram afogados um fogueiro do navio e, possivelmente, um passageiro.
Na sede da Companhia Colonial de Navegação foram prestadas as seguintes informações: O fogueiro-azeitador que morreu chamava-se José Luís Caldeira, e residia na rua de S. Bernardo, em Lisboa; e os tripulantes que estão possivelmente a bordo do escaler a motor são:
Manuel da Silva Saldanha, praticante de piloto; José Pereira, contra-mestre; António Filipe Alexandre, Paulo das Neves, Júlio da Silva Reverendo, marinheiros; José Arsénio, moço; José Azevedo, 2º maquinista; José Maria Rodrigues, 3º maquinista; Abílio Esteves, paioleiro; Manuel Pereira, fogueiro-azeitador; Manuel Fernandes, João Rego, José da Silva Valente e Joaquim Augusto, todos fogueiros; António Maria da Silva, António Fernandes e Paulo da Silva, chegadores; José Azevedo Almeida, despenseiro; João Ferreira, Jaime Carvalho e António Fernandes, criados; André Francisco e Alfredo António, criados auxiliares; André Alfredo, António, Alfredo Custódio, Caomela e Paulino, negros tratadores de gado que iam repatriados.
Reuniu o Conselho Geral da C.C.N.
Reuniu, ontem, à tarde, o Conselho Geral da Companhia Colonial de Navegação com a assistência do delegado do Governo, que estudou demoradamente a situação criada à Companhia pelo torpedeamento do “Ganda”. O navio estava a 220 milhas a Sudoeste do Cabo de S. Vicente quando foi torpedeado. O “Ganda” saiu de Lisboa com 50 tripulantes, 15 passageiros e 5 negros no total de 70 pessoas. Foi construído na Alemanha em 1910 e pertenceu à companhia inglesa City Line, tendo, então o nome de “City of Milan”, e em 1930 foi adquirido pela Companhia Colonial, passando, então, a denominar-se “Ganda”.
As pesquisas tem sido infrutiferas
Uma patrulha de hidroaviões da base do Bom Sucesso que, ontem, de manhã, tinha levantado voo para pesquisas, até às 18 horas não tinha sido recebido em Lisboa qualquer radio comunicando o aparecimento da lancha a motor. Nos escritórios da C.C.N. estiveram a deixar cartões, manifestando pesar pela perda do “Ganda” os srs. Subsecretário de Estado das Colónias, Adido Naval Britânico, Sindicato dos Oficiais da Marinha Mercante, etc.
(In jornal “Comércio do Porto”, terça, 24 de Junho de 1941)

Os náufragos do vapor português “Ganda” foram recolhidos, a
300 milhas do porto de Huelva por um pesqueiro espanhol,
depois de terem vivido quatro dias, à mercê das águas
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Respiram, finalmente, com alívio, aqueles a quem a sorte dos náufragos do vapor português “Ganda” preocupou. O aparecimento dos quarenta e um portugueses de quem não se sabia o paradeiro e cujo destino emocionara Portugal causou verdadeira alegria – a natural alegria dum povo humanitário e sensível como o nosso, que, nestes tempos de egoísmo desenfreado, sabe ainda comover-se com a desgraça do próximo – quantos tiveram já conhecimento de tão importante facto. Não só a família dos náufragos, mas também todos aqueles que recearam por essas dezenas de vidas confiadas à frágil embarcação que, durante quatro dias, andou à mercê das águas, louvaram, intimamente, a Providencia pelo bom desfecho desse drama do mar.
A congratulação geral pelo aparecimento dos náufragos não logrou, porém, fazer desvanecer a geral repulsa provocada na alma nacional pelo atentado de que foi vitima – e vitima inocente – uma unidade da marinha mercante portuguesa, digna, porque pertencia a uma nação que observa a mais exemplar neutralidade, do respeito das nações beligerantes. As circunstâncias em que foi perpetrada esta proeza inqualificável, já suficientemente conhecidas no país, provam que o submarino agressor agiu do modo mais condenável.
Não se deve, agora que o mal não tem remédio, insistir numa acusação que está ou deve estar no espirito de todos os portugueses, mas que não pode dirigir-se, concretamente, a quem quer que seja, desconhecida como é – e continuará, por certo, a ser – a nacionalidade daqueles que, menosprezando a bandeira dum país neutro e, mais do que neutro, escrupulosíssimo das atitudes da sua neutralidade, não recuaram ante a prática dum atentado nefando, com prejuízo de vidas e bens consideráveis.
Devemos, contudo, e não nos cansaremos de o repetir, sempre que for mister, chamar a atenção dos beligerantes para o respeito devido à neutralidade portuguesa. A absoluta segurança das nossas vias de comunicação por mar, é indispensável à nossa subsistência. A nenhuma das nações em guerra deve ser indiferente a vida de Portugal, nação que a todas as outras respeita e a nenhuma das outras prejudica. As nossas actividades estão, como se sabe, organizadas de modo que a mais pequena interrupção é susceptível de causar perdas incalculáveis. Um país que, como o nosso, não dispõe de grande número de unidades de transporte marítimo e que tem um império ultramarino com que importa manter, para bem de Portugal e do mundo, comunicações tanto quanto possível regulares, não pode sofrer, sem os mais veementes protestos, atentados como aquele de que o “Ganda” foi vítima. Não se trata – note-se bem – de rogar benevolência àqueles que, hoje, dispõe das estradas marítimas que servem Portugal e o seu império de além-mar. Trata-se, sim, de exigir justiça – e a justiça consiste em os outros nos respeitarem como nós respeitamos os outros. Portugal, modelo de nações corretas, impõe esse respeito – e não prescinde dos seus direitos e prorrogativas de nação independente e soberana.

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Resumo histórico do patacho “ Gouveia “


Histórico comercial do patacho “Gouveia”
1912-1916
Armador: José Joaquim Gouveia, Porto

Navio de longo curso, armava inicialmente em brigue, durante os anos em que esteve matriculado em França e em Lisboa. Alterou a mastreação em 1912, eventualmente em estaleiro no rio Douro, passando a armar em patacho.

Navio armado em patacho - colecção Seixas, Museu de Marinha
= Imagem sem correspondência ao texto =

Nº Oficial: A-167 - Iic.: H.B.T.R. - Porto de registo: Porto
Construtor: Não identificado, St. Malo, França, 1902
ex brigue “Le Malouin”, Arm. não identificado, França, 1902-1909
ex brigue “Judith”, Armador não identificado, Lisboa, 1909-1912
Arqueação: Tab 327,79 tons - Tal 286,22 tons
Dimensões: Pp 35,34 mts - Boca 8,20 mts - Pontal 4,04 mts
Propulsão: À vela
Equipagem: 11 tripulantes
Capitães embarcados: António Cachim Júnior (1912); Manuel da Rocha Deus (1913 a 1916)

Naufrágio do patacho “Gouveia” (18.11.1916) – Mortes
Deu-se nas alturas de Espinho, numa povoação denominada Paramos, o naufrágio de um patacho, resultando na destruição completa do navio, tendo perdido a vida seis marinheiros da sua tripulação, incluindo entre eles o seu capitão. (…)
Vindo de Santos e Rio de Janeiro, chegou há dias a Lisboa, com um carregamento de café, farinha de pau, cana e assucar, consignado à Brasileira, do Porto, o patacho português “Gouveia”, pertencente ao armador sr. José Joaquim Gouveia, estabelecido na rua Nova da Alfândega, no Porto.
Feita a descarga de vários géneros que o navio trazia para Lisboa, e depois de ter carregado sal para a Parceria Portuense de Sal, saiu dali o patacho na quarta-feira da última semana, à tarde, com rumo ao Porto. Segundo conta um dos tripulantes salvos do “Gouveia”, o navio saíra de Lisboa com o tempo regular. Porém, na noite de 15 para 16 o tempo começou a turbar-se, sendo que no dia 17 que se desencadeou no mar um violento temporal, que se prolongou durante o dia 18, com o mar agitadíssimo e ondas alterosas, que varriam por completo o convés do patacho.
Assim estiveram lutando toda a noite, até que, tendo perdido o velame e os escaleres, o “Gouveia” naufragou cerca das 10 horas da noite de sábado, na praia de Paramos, sendo até ali acossado pela ventania e pelas ondas embravecidas. Antes que o navio se desfizesse completamente, como sucedeu pouco depois, a tripulação atirou-se à água com os cintos de salvação, nadando desesperadamente para a costa.
Só três tripulantes conseguiram salvar-se. Aos gritos de aflição que soltaram, acudiram vários pescadores da povoação ali perto, sendo então conduzidos para os seus casebres, onde lhes prestaram socorros.
Desses náufragos salvos só dois foram recolhidos pelos pescadores, pois um deles, de que colhemos as informações da forma como se deu o naufrágio, desorientado, fugiu, indo só parar na escola de tiro de Esmoriz, onde o recolheram exausto de fadiga da longa caminhada e ainda sobre dolorosa impressão do naufrágio e da morte, de que tão milagrosamente tinha escapado.
O capitão e os outros companheiros restantes não puderam, infelizmente, chegar à praia, sendo arrastados, ao que parece, pelas ondas para o mar alto, onde pereceram. Antes do patacho “Gouveia” ter dado à costa, os tripulantes dizem ter avistado o farol da Luz, na Foz, e as luzes da povoação de Espinho.
Logo que a notícia foi conhecida na cidade, seguiu para o local do naufrágio o sr. José Joaquim Gouveia, encontrando-se ali com os três tripulantes salvos, vindo depois todos no comboio para o Porto, onde chegaram ante-ontem, à tarde. Os náufragos estiveram ontem no Departamento Marítimo, a prestar declarações.
Os tripulantes que se julgam terem morrido, o que tudo, infelizmente, parece confirmar-se, são: Manuel da Rocha Deus, capitão, Miguel Caetano, Manuel Francisco do Nascimento, José dos Santos Bizarro, Manuel Simões Ré e Manuel Russo Loureiro. Salvaram-se, depois de penosos esforços e terem lutado desesperadamente contra a morte, os tripulantes António Lopes Rodrigues, Manuel Joaquim Rufino e Ramiro Nunes Ramisote.
A tripulação do patacho “Gouveia” constava de 11 homens, incluindo o seu capitão, tendo ficado um tripulante no Rio de Janeiro e em Lisboa outro. Segundo consta, já apareceu o cadáver de um dos tripulantes, que se chamava José dos Santos Bizarro. À costa também tem vindo dar diversos destroços do navio naufragado e restos da carga, que são guardados pela Guarda-Fiscal, vindos de Gaia para o local do sinistro. Apesar do tempo invernoso na praia de Paramos, juntou-se ali muita gente de Espinho e povoações próximas a ver os destroços do navio naufragado, que o mar arroja à costa.
O patacho “Gouveia” era um bom navio da praça do Porto, tinha uma lotação de 286 toneladas, tendo sido construído em 1902, em Saint Malo, França. Todo construído em madeira, o patacho era muito resistente. Estava seguro na Companhia de Seguros “Futuro”, do Porto.
(In jornal “Comércio do Porto”, terça, 21 de Novembro de 1916)

domingo, 2 de junho de 2013

Resumo histórico do lugre "Serrão"


Nova embarcação
Ante-ontem, pelas 3 horas e meia da tarde, queimando-se girandolas de foguetes foi lançado ao rio Douro, dos estaleiros de Gaia, o novo lugre “Serrão”, de 500 toneladas de registo, medindo 34,80 metros de quilha por 8,80 metros de boca e 3,70 metros de pontal. A nova embarcação, embandeirada em arco, deslisou na água com a maior felicidade, assistindo ao acto de lançamento numerosíssimas pessoas, tanto no local como na margem oposta. É comandante do novo lugre, feito nos estaleiros do sr. José da Silva Lapa, o sr. Manuel Pereira Ramalheira, natural de Ílhavo. O “Serrão” foi mandado construir pelo armador de navios, da praça de Lisboa, sr. Manuel Pereira Serrão.
(In jornal “Comércio do Porto”, terça, 12 de Dezembro de 1916)

Histórico comercial do lugre “Serrão”
1916-1916
Armador: Manuel Pereira Serrão, Lisboa

Um dos muitos lugres portugueses ainda não identificado
= Imagem sem correspondência ao texto =

Nº Oficial: 484-A - Iic.: H.P.R.W. - Porto de registo: Lisboa
Construtor: José da Silva Lapa, Vila Nova de Gaia, 10.12.1916
Arqueação: Tab 221,25 tons - Tal 210,19 tons
Dimensões: Pp 35,10 mtrs - Boca 8,40 mts - Pontal 2,80 mts
Propulsão: À vela
Equipagem: 7 tripulantes
Capitães embarcados: Manuel Pereira Ramalheira (1916 e 1917)

Navio empregue nas viagens de comércio de longo curso, tem um percurso relativamente curto, quando esteve matriculado em Lisboa, tendo sido posto à venda ainda em 1916, eventualmente devido à entrada do país em guerra com a Alemanha, sendo adquirido pela empresa J. Mourão & Cª, do Porto, que acto contínuo lhe renova a matrícula na capitania do porto do Douro, rebatizando-o com o nome “Guadiana”.

Histórico comercial do lugre “Guadiana”
1917-1917
Armador: J. Mourão & Cª., Porto

Nº Oficial: A-186 - Iic.: H.G.U.A. - Porto de registo: Porto
Arqueação: Tab 325,65 tons - Tal 271,62 tons
Dimensões: Pp 35,10 mtrs - Boca 8,40 mts - Pontal 2,80 mts
Propulsão: À vela
Equipagem: 7 tripulantes

E se o lugre não teve um bom aproveitamento enquanto matriculado em Lisboa, a sorte foi-lhe nefasta também no período em que esteve registado no Porto, devido ao ataque que lhe foi movido pelo submarino alemão UC-44, sob o comando do capitão Kurt Tebbenjohanns, em 5 de Março de 1917. Depois de mandado parar, dinamitado e incendiado no canal de Bristol, quando o navio efetuava a sua primeira viagem com origem no rio Douro, navegando com destino a Cardiff, carregado com madeira, foi metido a pique ao encontro das profundezas do oceano.