sexta-feira, 28 de novembro de 2014

In memorium


Rui Picarote Amaro


Fui hoje surpreendido pela desagradável notícia do falecimento do Rui Amaro, amigo de longa data e uma das raras pessoas no norte do país, que de comum comigo nutria uma enorme paixão pelo mar, pelo rio Douro, pelas docas de Leixões e actividades portuárias, mas muito principalmente por navios.
É na minha opinião o último dos "visitadores de navios", que fez parte de uma elite de personalidades, com quem tive o privilégio de conviver e aprender a profissão que desempenhei por cerca de trinta e cinco anos.
Já reformados, ainda percorremos juntos muitas milhas de pesquisa, sobre a nossa história marítima e sobre a navegação à vela, nos séculos XIX e XX, que infelizmente tão mal se conhece. Parte importante dessa história, e de acontecimentos posteriores até quase à actualidade constam nos blogs "Navios à vista", "O piloto prático do Douro e Leixões" e também na página pessoal que mantinha no sítio do "Ship's nostalgia".
Viu ainda publicado o seu trabalho sobre "A barra da morte", reflexo dos muitos anos vividos entre a classe marítima, com a qual se identificava, salvaguardando sempre com enorme afeto a lembrança de seu pai, piloto nas barras do Douro e Leixões, de quem recebeu os primeiros ensinamentos náuticos e uma educação esmerada.
O Rui foi vitima da doença que o atormentava à alguns anos. Desaparece, até um eventual próximo encontro, um amigo que me habituei a respeitar e admirar, pelo que neste momento de despedida só posso agradecer os muitos e bons momentos de convívio que passamos juntos.
Obrigado Rui e até sempre!

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Histórias do mar português!


A passageira clandestina

A bordo do “D. Pedro I”, 5 de Novembro de 1932
Não há mulheres a bordo?
Há.
Viaja connosco uma passageira clandestina, de volta a Portugal, seu país de origem.
Vive toda e sempre escondida. Nem a oficialidade, nem o pessoal de bordo, nem os agentes de polícia que nos espiam, nem a escolta que nos... que nos inveja – ninguém notou ainda a sua presença entre nós, na prisão flutuante.
E, no entanto ela está por toda a parte.
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O vapor “D. Pedro I”
1926-1935

Foto do vapor “Wyreema” da Australasian United Steam Ltd.
Imagem do State of Victoria Library, Victoria, Australia

Armador: Lloyd Brasileiro, Rio de Janeiro, Brasil
Construtor: Alexander Stephen & Sons Ltd., Govan, 1908
ex “Wyreema”, Australasian United Steam Navigation, 1908-1926
Arqueação: Tab 6.338 tons - Tal 3.362 tons
Dimensões: Pp 122,02 mts - Boca 16,51 mts - Pontal 9,30 mts
Propulsão: Alex. Stephens - 2:Te - 2x3:Ci - 1.038 Nhp - 14 m/h
dp “Dom Pedro I”, Lloyd Brasileiro, Rio de Janeiro, 1935-1958
O vapor foi demolido no Rio de Janeiro em Agosto de 1958

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E ela divide, a clandestina, por todos nós, o seu carinho santo, com a piedade generosa de uma irmã de caridade. Vai, de cabine em cabine, de mesa em mesa, de pensamento em pensamento. Senta-se no beliche, naturalmente, à cabeceira daquele que a insónia atormenta, e repete o gesto antigo que cobriu, como uma asa, o nosso berço; apoia-se, como uma cruz suavíssima, ao ombro daquele que, sentado num rolo de cordas da popa, finge olhar o crepúsculo enxague; debruça-se sobre o que escreve ou o que lê, e conduz a mão sobre o papel, ou volta as páginas do livro...
Quando ela veio de Portugal, era loira e leve; parecia a “velida” de D. Diniz, a “bem talhada”, a “delgada”, a “muito alongada de gente”, bailando “solo verde ramo florido”...
Mas aqui, nos trópicos americanos, queimou-se de sol e amolentou-se no balanço das redes e das palmas.
E eis, agora, regressa mais lânguida e mais humana à sua pátria...
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Viaja connosco uma passageira clandestina de volta a Portugal, seu país de origem.
Ela é a Saudade.
Almeida, Guilherme de, O Meu Portugal, pp. 17/19, Companhia Editora Nacional, Rua dos Gusmões, 26-30, São Paulo, 1933

domingo, 9 de novembro de 2014

O paquete "Africa Iº"


Que navio é este?

Ilustração Portuguesa, II Série, Nº 409, pp.750,
Lisboa, 22 de Dezembro de 1913

Este é o tipo de notícia que diz muito e simultaneamente explica pouco, apesar de ser um facto conhecido as diversas tentativas feitas previamente por armadores nacionais e anglo-portugueses, para tornar possível uma carreira de navios, a sair regularmente de Lisboa ou Porto, com destino ao Brasil.
Numa primeira análise, em função do atrás referido, pode afirmar-se que este vapor não foi de modo algum o primeiro navio português de carreira para o Brasil, mas também é verdade existirem obstáculos de vária ordem, que eram sistematicamente criados em benefício das companhias de navegação estrangeiras.
Em muitas ocasiões, ou em grande parte dos casos, a opção da garantia de conforto a bordo de bons navios, mesmo quando a travessia do atlântico era efectuada em 3ª classe, podia ainda ser favorecida por facilidades, tais como a autorização do pagamento das viagens dos passageiros A posteriori, desde que um fiador no país assegurasse a responsabilidade da liquidação completa da despesa.
Estas peripécias, quantas vezes a deixar os fiadores em situação de grande precaridade, são obviamente do conhecimento de quem estudou ou pesquisou sobre os caminhos da emigração, principalmente para o Brasil, porque em relação à África os transportes marítimos funcionavam sob o domínio das companhias de navegação nacionais, a coberto de interesses do próprio Estado.

Segundo a notícia, o vapor “Africa Iº”, acabava de realizar a primeira viagem ao Brasil, tendo o navio sido acolhido com entusiasmo, mas lamentavelmente não diz onde!
Depois começam as dificuldades de identificação do próprio navio, que terá pertencido a uma sociedade de nome Liberdade, eventualmente de origem Angolana, face ao registo do navio na capitania de Luanda, conforme pode ser apreciado através da inscrição na boia, visível na imagem inferior.
Depois da história ficam dúvidas por esclarecer: que navio é este; quantas viagens o vapor teve oportunidade de realizar ao Brasil e o que lhe pode ter acontecido durante o ano de 1914, considerando não constar nas listas de navios portugueses, já em Janeiro de 1915.

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Histórias do mar português!


A viagem da corveta “Rainha de Portugal”
2ª Parte

A corveta “Rainha de Portugal” foi construída em Blackwall (Inglaterra), no ano de 1875. Tem 1.120 toneladas de deslocamento e a força de 150 cavalos.
É um dos nossos melhores navios de guerra, com 8 bocas-de-fogo, e que tem desempenhado importantes comissões de serviço tanto na nossa África como no estrangeiro. Não é esta a primeira vez que acontece desastre, pois em Maio de 1876, quando o príncipe de Gales visitou Lisboa, foi esta corveta abalroada no Tejo pela fragata inglesa “Raleigh” do modo mais grosseiro.
O príncipe de Gales retirou de Lisboa no dia 8 de Maio de 1876 a bordo do “Serapis” acompanhado pela fragata inglesa “Raleigh”, yatch “Osborne” e aviso “Lively”; e el-rei D. Luiz, a bordo da corveta “Rainha de Portugal”, ia acompanhar até à barra o seu ilustre hóspede.
O “Serapis” levantou ferro e seguiu pelo rio acima até à frente da Praça do Comércio, virando então para norte para aproar à barra sem voltar a popa para a cidade. A corveta “Rainha de Portugal” seguiu-lhe na alheta, para assim acompanhar o “Serapis”, segundo o desejo de el-rei por deferência ao seu augusto hóspede.
Ao mesmo tempo porém, que se realizava esta manobra, a fragata “Raleigh” largou da amarração e seguindo com grande andamento a “Rainha de Portugal”, em breve se pôs a seu lado, avançando cada vez mais de modo que quando a corveta deu a volta, a fragata também a deu sem guardar a distância necessária e enrascaram-se os dois navios, apesar da “Rainha de Portugal” ter parado e cair toda à ré.
O resultado deste encontro foi a corveta ficar com o gurupés partido e figura de proa, partindo-se também dois escaleres da “Raleigh”, que seguiu Tejo abaixo nas águas do “Serapis” com o “Osborne” e “Lively”.
Entretanto da parte do comandante da corveta nenhuma culpa ou erro tinha havido, mas sim uma manobra mal dirigida do comandante da “Raleigh”.
Reis, A. Estácio dos, Os Navios d’O Occidente, Edições Culturais de Marinha, Gradiva Publicações, Lda., Lisboa, 2001, com o relato transcrito do artigo publicado na revista “O Ocidente”, Nº 362, de 11 de Janeiro de 1889

A fragata "Raleigh" e o vapor "Serapis"
Gravura publicada no sítio Photoship.UK

Abalroamento
Vai larga discussão em todos os círculos a propósito do pequeno desastre que houve ante-ontem no Tejo, quando a corveta “Rainha de Portugal”, que levava el-Rei a bordo, manobrava para aproar à barra e seguir o navio “Serapia”, que conduzia a bordo o Príncipe de Gales.
A corveta portuguesa abalroou com a corveta inglesa “Raleigh”. De quem foi a culpa? Aqui é que variam as opiniões.
Os que são a favor do oficial português dizem que a “Rainha de Portugal” virou primeiro que a “Raleigh” e que esta devia navegar de modo que não a incomodasse na sua rotação, por já estar subordinada à acção do seu leme e por ter içado o estandarte real num dos seus mastros, já por ela andar pouco mais de metade do número de milhas da sua marcha. Infelizmente a maré e a rapidez com que a “Raleigh” meteu a virar, aproximaram-na do navio português a ponto de este não ter espaço para evitar o abalroamento.
Os que são pelo oficial inglês objectam que se não foi do oficial português que errou, o desastre derivou-se da corveta não ter boa marcha e ser de má construção. Ao ouvir uns e outros é difícil saber de que lado está a razão.
O que é certo, porém, é que a “Rainha de Portugal” sofreu um grande choque, perdeu a figura de proa e perdeu o gurupés; a “Raleigh” perdeu todos os escaleres de bombordo e uma lancha a vapor. Agora, tudo indica que a corveta portuguesa terá de ir a Inglaterra, para reparar as avarias que sofreu.
(In jornal “Comércio do Porto”, quarta-feira, 10 de Maio de 1876)

A colisão da corveta “Rainha de Portugal”
Parece estar fora de dúvida, que no abalroamento da fragata “Raleigh” com a corveta “Rainha de Portugal”, toda a culpa coube ao oficial inglês que comandava a “Raleigh”. Na ocasião do desastre morreram dois marinheiros ingleses.
(In jornal “Comércio do Porto”, quarta-feira, 10 de Maio de 1876)

Ainda sobre a colisão da corveta “Rainha de Portugal”
Lisboa, 10 de Maio - Continua a discussão a propósito do abalroamento da fragata “Raleigh” com a corveta “Rainha de Portugal”, e parece que o verdadeiro e único culpado do desastre foi o comandante do navio inglês, por isso que quando se aproximou do vaso de guerra português este estava a virar e precisava de espaço para completar a manobra.
Também é censurado aquele oficial por ter seguido o seu caminho sem perguntar à corveta se precisava de algum socorro depois da avaria que sofreu, sendo esta falta muito mais censurável por estar el-Rei a bordo do navio avariado.
Consta-se que el-Rei, que estava ao lado do comandante da “Rainha de Portugal”, quando se deu o abalroamento, lhe dissera que estivesse sossegado e não se afligisse, porque podia afirmar que a culpa toda era do comandante da “Raleigh”.
Acrescenta-se que dois marinheiros do navio inglês morreram em consequência do choque, ficando um entalado entre os dois navios, quando inconsideradamente pretendia afastar a proa da corveta “Rainha de Portugal” do vaso de guerra inglês.
Não obstante o comandante da corveta portuguesa ter a consciência segura de não lhe poder caber a responsabilidade daquele desastre e apesar das palavras de el-Rei, requereu um conselho de investigação, para se apurar a verdade e ficar ilibada a sua reputação de distinto oficial de marinha, que goza há muito tempo. Tem-se como certo um veredicto favorável do conselho que fôr nomeado.
(In jornal “Comércio do Porto”, quinta-feira, 11 de Maio de 1876)

Telegrama
S.M. el-Rei D. Luiz recebeu hoje um telegrama da Rainha Victoria, agradecendo o acolhimento feito em Lisboa ao Príncipe de Gales, pedindo desculpa pelo caso “Raleigh”.
(In jornal “Comércio do Porto”, sábado, 15 de Maio de 1876)

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Histórias do mar português!


A viagem da corveta “Rainha de Portugal”
1ª Parte

A notícia do grande perigo que correu a corveta “Rainha de Portugal”, na sua viagem para Moçambique, onde vai reforçar a divisão naval ali estacionada, para o bloqueio da costa de Zanzibar, foi recebida em Lisboa com o mais profundo sentimento, pensando-se até, ao princípio, que o navio tinha soçobrado, no meio do furioso temporal que o assaltou, próximo de Port-Said.
Essa primeira impressão felizmente desvaneceu-se, em vista de posteriores notícias tranquilizadoras, de que o navio triunfara da fúria dos elementos, sem perda de vidas, mas com grossa avaria.
Uma carta que recebemos de Port-Said, escrita de bordo da corveta “Rainha de Portugal”, por um nosso delicado correspondente, descreve com todas as particularidades, o perigo eminente que este navio correu durante quatro dias de temporal desfeito, em que por mais de uma vez esteve prestes a afundar-se, e com ele toda a guarnição, perecendo no meio das encapeladas ondas do Oceano, sem esperança de socorro.
Esta carta, que em seguida publicamos, deu motivo ao nosso colaborador artístico, sr. José Pardal, a compor com o seu lápis imaginoso, o desenho que reproduzimos na gravura da página e que representa a corveta “Rainha de Portugal” em luta com a tempestade, no momento em que a força do mar lhe partiu o gurupés arrastando todo o aparelho correspondente.

Cópia da gravura atrás citada, (a) Oliveira e José Pardal

É um quadro de sensação, da mais palpitante actualidade, e que pertence à história da nossa marinha, a qual mais uma vez provou que na pátria dos Gamas ainda não se extinguiu a raça dos ousados marinheiros, que há quatro séculos dobraram o Cabo das Tormentas.
Eis a carta:
“Port-Said, 13 de Dezembro de 1888 – Escrevo-lhe ainda sob a impressão da formidável tempestade que nos assaltou próximo deste porto, parecendo-me ainda fortemente abalado pelo jogo extraordinário da corveta, nos dias que procederam a nossa entrada aqui. O tempo não me sobra para lhe descrever todos os perigos que nos rodearam desde a nossa saída de Malta até a entrada neste porto.
Estivemos quatro dias em Malta para refrescar e meter carvão, e de lá largamos no dia 5 pelas 7 horas da manhã, seguindo nas nossas águas a canhoneira “Tâmega” que fôra primeiro a Tanger e que viera reunir-se-nos.
Pouco depois de sairmos de Malta, a “Tâmega” foi ficando para a popa de corveta, e às 3 horas da tarde tinha-se perdido da nossa vista, porque o seu andamento era inferior ao do nosso navio.
Contávamos chegar a Port-Said na tarde do dia 8, ou na manhã do dia 9, em boas condições de viagem, mas não aconteceu assim, porque pela tarde do dia 6 principiou a levantar-se vento rijo de Norte, que foi crescendo cada vez mais e de modo que ao sol-posto do dia 8, o mar levantava-se em grossos vagalhões ameaçando tragar o navio.
A tempestade desencadeou-se com violência, e como o mar batia o navio de través, o comandante mandou aproar à vaga, desviando-se o navio do rumo que levava, e aumentando o balanço de popa à proa extraordinariamente.
Durante a noite redobrou a tempestade e com ela a fúria do mar.
Por muitas vezes vimos a corveta prestes a afundar-se, tragada pelas enormes ondas que a investiam pela proa, mas apesar da horrível situação em que nos achávamos, ninguém a bordo perdeu o ânimo, e o intrépido comandante, o nosso capitão-tenente Francisco de Paula Teves e o imediato Carlos Leopoldo dos Santos Diniz, firmes e serenos no seu posto de comando, dirigiam as manobras com inexcedível acerto, lutando corajosamente com o perigo que nos cercava.
O dia 9 não apareceu mais animador que a noite antecedente. O céu carregado de nuvens não deixava ver um único raio de sol; o barómetro baixara consideravelmente, tirando-nos toda a esperança de uma rápida evolução do tempo para melhor, e o mar crescia cada vez mais alteroso.
Entretanto os dignos oficiais comandantes não desamparavam o seu posto, animando com o seu exemplo a guarnição do navio composta de 162 homens.
Pelas 10 horas da manhã uma enorme vaga que surpreendeu o navio de vante, sem que fosse possível orçar, partiu-lhe quase todo o aparelho da proa levando-lhe o pau da bujarrona, o da giba, sevadeiras e pica-peixe, que apenas ficaram suspensos por alguns cabos.
Este desastre podia arrastar consigo para o abismo a todo o navio se não fôra a rápida resolução do comandante que logo gritou: – Às machadinhas.
Num momento, viu-se sobre o castelo da proa parte da guarnição do navio armada de machadinhas, enquanto o comandante mandava parar a máquina, para que os destroços do desastre não se envolvessem no hélice e aumentassem a avaria já sofrida.
Apenas o comandante deu a voz de – Corta; todas as machadinhas, como se fossem uma só, caíram sobre os cabos que prendiam ainda o navio o aparelho de proa, e este foi levado na crista das ondas por bombordo deixando o navio desenrascado.
Estava conjurado aquele perigo, mas o mar continuava sem dar tréguas, crescendo as ondas cada vez com mais fúria, produzindo novos estragos a bordo.
Uma vaga mais valente que galgou a amurada, veio partir as fundas dos escaleres inçados à proa escapando milagrosamente o escaler a vapor de ir para o meio do encapelado mar.
Teve de se lhe passar uma amarra, assim como foi preciso passar talhas aos rodízios a meia-nau por serem insuficientes as peias que tinham, em vista do jogo do navio.
Defender destes perigos constantes constituiu um trabalho sem descanso durante mais de 40 horas, principiando pelos oficiais comandantes, que nunca desampararam o seu posto revezando-se apenas por alguns momentos para tomarem alimento, até ao mais simples moço, todos lidavam com presteza no meio da enorme barafunda que ia a bordo.
Pouco depois das seis horas da tarde partiu-se o cabo do leme, sendo preciso passar os teques à cana do leme para se poder governar como Deus era servido. Faltava-nos mais este transtorno para aumentar o perigo em que nos achávamos, mas graças ainda ao sangue frio do nosso comandante e aos seus muitos conhecimentos práticos, coadjuvados pela experiência e boa vontade do mestre João Ventura de Oliveira, conseguiu-se gornir um cabo novo à roda do leme, e portanto dominar-se melhor o governo da corveta.
A noite passou-se como os dias anteriores, no meio do vendaval, sem podermos descansar sequer um momento, mas felizmente, pela madrugada, principiou a abrandar um pouco o vento o que nos deu alguma esperança, que se foi convertendo em realidade pelo dia adiante, abonançando o tempo e permitindo, ainda que com grande risco, o navio tomar o rumo de SE (sudoeste) que era o do porto que demandávamos.
Assim navegamos durante o dia 10 e dia 11, com vento rijo pelo través e a vaga à popa, o que era para nós uma feliz bonança depois do que tínhamos sofrido.
Ás 9 horas da noite de 11 descobrimos um farol que nos pareceu ser de terra, mas que depois reconhecemos ser de um navio; achando-nos porém, já perto do porto de chegada, e estando o mar bonançoso, o comandante mandou parar a máquina, era uma hora da noite, esperando pela madrugada para a corveta entrar em Port-Said.
Efectivamente pelas 10 horas da manhã, fundeava o nosso navio dentro do porto e aqui encontramos a canhoneira “Tâmega”, que tinha entrado na véspera com avaria nos paus das cevadeiras, que o mar lhes levou e alguns vidros das escotilhas de ré partidas.
Não sei como lhes tenho escrito, no meio da confusão que me parece ainda estar, impressionado pela horrível cena a que assisti pela primeira vez na minha vida, mas os numerosos leitores do Ocidente que desculpem o mal alinhavado destas linhas, que só o desejo de lhes dar uma notícia que se me afigura interessante e desusada me levou a escreve-la.
Vamos reparar as avarias mais importantes para depois seguirmos para Adem. Estimarei não ter que lhe noticiar mais algum contratempo deste malfadado navio, e assim me despeço até Moçambique de onde espero escrever-lhe. (a) Z"
Reis, A. Estácio dos, Os Navios d’O Occidente, Edições Culturais de Marinha, Gradiva Publicações, Lda., Lisboa, 2001, com o relato transcrito do artigo publicado na revista “O Ocidente”, Nº 362, de 11 de Janeiro de 1889
... Continua ...