terça-feira, 4 de dezembro de 2018

História trágico-marítima (CCXIC)


O naufrágio do iate "Helena Santa", na barra de Viana do Castelo

Em consequência do temporal que, ontem, assolou parte da
costa portuguesa, naufragou, à entrada da barra de Viana do
Castelo, o lugre “Helena Santa”, e correu o risco de se afundar,
igualmente, o iate “Maria Lucília” (1)
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O heroísmo e a coragem dos tripulantes do salva-vidas “João
Tomás da Costa” evitaram que perecessem no sinistro 8 homens
Viana do Castelo, 16 - Desde meio da noite, que paira sobre Viana um dos mais furiosos temporais de Oeste, os mais temíveis na nossa costa, pois costumam ser acompanhados de vento ciclónico. A chuva começou a cair com persistência e o vento soprou furiosamente.
Às 8 horas, o piloto de serviço na torre de vigia avistou, ao largo, navegando na direcção de Viana, um iate de dois mastros e logo se lhe afigurou perigo iminente, pois o mar na entrada da barra estava agitadíssimo, com vagas enormes a embater contra os cais do Bugio, Fortim e Cabedelo, entre os quais o navio teria de passar.
Imediatamente, foi dado sinal de perigo e toda a corporação dos pilotos se pôs a postos, ao mesmo tempo que era dada ordem para sair a lancha da corporação, “Comandante Serrão” e o barco salva-vidas deste porto, “João Tomás da Costa”.
Entretanto, o iate aproximava-se da barra, sob um aguaceiro que anulava toda a visibilidade. A "Comandante Serrão”, aprestada com grande urgência, rapidamente largou do ante-porto, levando a bordo os pilotos, Srs. Mário, Jorge e Costa, e colocou-se na barra, tão longe quanto o permitia a formidável rebentação; de terra, a torre de vigia fazia ao navio em perigo, os sinais convencionais, dando-lhe todas as indicações possíveis para que ele demandasse a barra.
Estavam as coisas neste pé, quando o piloto-chefe, Sr. Augusto Silva, que permanecia na torre de vigia, avistou, demandando, também, o porto, outro iate, menor na tonelagem, navegando com o motor, mas aguentando-se muito mal, jogado, positivamente, na crista das ondas enormes. Foi, então, dado o alarme, e o salva-vidas foi mandado sair imediatamente para a barra. Previam-se graves acontecimentos.
Com enorme prontidão, a valente tripulação do “João Tomás da Costa”, resoluta e decidida, apronta-se no cais. Vão arriscar a vida, pois transpor a barra com aquela ondulação e corrente, é uma temeridade, mas é uma temeridade necessária.
Doze fortes rapazes da Ribeira, rodeados das famílias, que não choram nem se lamentam, estão a vestir as roupas próprias, atam os cintos de salvamento. Rostos sérios, mas não se percebe sombra de temor.
Mestre António Gonçalves Gago, veterano do mar, rosto frio de velho marítimo, é o primeiro a saltar, e fixa-se no leme. E faz a chamada dos seus homens: Leopoldo Araújo, João Duarte, José Rodrigues da Costa, José de Castro Alheira, Eduardo Chavarria, Jerónimo Domingues Pires, José de Castro Soares, Miguel de Freitas Lomba, José Lomba Benjamim, João Vieira e Álvaro Vieira.
- «Larga!» - e o “João Tomás da Costa” navega, a caminho do perigo.


Características do iate “Maria Lucília”
Armador: Vergílio Martins Correia, Vila do Conde
Nº Oficial: 1127 - Iic: C.S.D.K. - Porto de matrícula: Vila do Conde
Construtor: Jeremias Martins Novais, Vila do Conde, 1928
ex “Vilacondense”, Vergílio Martins Correia, Vila do Conde
Reconstruído em 1941
Arqueação: Tab 128,52 tons - Tal 75,94 tons
Dimensões: Ff 29,79 mts - Pp 25,37 mts - Bc 7,17 mts - Ptl 2,92 mts
Propulsão: 1 motor semi-diesel - 2:Ci - 100 Bhp

Salva-se o iate “Maria Lucília”, afunda-se o “Helena Santa”
Neste intervalo, milhares de pessoas se juntam, ansiosas, nos cais, seguindo a luta do iate, erguido nas altas ondas, baixando até ao abismo. De bordo da lancha, os pilotos gritam, pelos megafones, ordens. A bordo do iate, que é o “Maria Lucília”, de Faro, está um mestre experimentado, que conhece a fundo a barra de Viana, o valente marinheiro José Joaquim, de Olhão.
Atento aos sinais, manobrando com habilidade e arrojo, mestre José Joaquim, às 8 horas e meia, ante a alegria de milhares de pessoas que não despegaram os olhos daquela luta tremenda, passa a rebentação e, com a vaga a varrer o convés, entra no ante-porto, salvo.
Mas já o outro pequeno iate, que se sabe ser o “Helena Santa", chama as atenções gerais, porque parece que o navio vem já desarvorado, sumido nas vagas, perdido com os seus oito homens. Em terra, é dado o alarme; logo que o “Maria Lucília”, aflitivamente, fizera soar o tom plangente das suas sereias, que reboaram pelo cidade, penetrantes como um lamento.
A sereia dos Bombeiros Voluntários chamou os seus homens; os Bombeiros Municipais e a Cruz Vermelha, imediatamente compareciam, também, na área do porto; a corporação dos Voluntários saía já com o seu material e pessoal de socorros a náufragos. No Hospital da Misericórdia, também era tomadas medidas adequadas, comparecendo logo os médicos Eduardo Valença, Luís Monteverde e Martins Araújo, e pondo-se a postos o pessoal de enfermagem.
No porto, eram 9 horas e 10 minutos, quando o “Helena Santa”, finalmente, se aproximou da entrada da barra, mas, nessa altura, já muito a Norte. Tendo passado por «Entre Portas», o pequeno iate parece que, na ocasião, embateu em qualquer pedra, perdendo o leme, desgovernando-se. Ansiosos, os pilotos transmitem ordens para bordo; mas ninguém ouve nem pode cumprir.
O navio começa a cair para as pedras que, ao Norte do Bugio, orlam a Praia Norte. Em terra ouve-se um clamor; e o piloto Augusto Silva, da torre de vigia, é o primeiro a aperceber-se da tragédia. O “Helena Santa” continua a despedaçar-se nas pedras, é enorme o perigo e trágica a posição dos tripulantes.
Então, uma ordem atravessa o barulho do vento e o roncar do mar:
- Salva-vidas! Para fora da barra…
Mestre António Gonçalves Gago, ouve a ordem e dá um grito rouco aos seus homens. Rema certo, forte! E o leme está firme na sua mão, a proa fende o mar, bravio e alteroso.
De terra a manobra é percebida. Não há um só grito. Somente as mãos daqueles bravos se juntam umas às outras, e, a espaços se ouve os nomes de Nossa Senhora da Agonia, Santa Luzia, em preces e rezas que o bramir do vento leva.
O “João Tomás da Costa” é uma casca de noz naquela imensidade. As respirações estão suspensas. Agora, os milhares de olhos voltam-se, ora para o “Helena Santa”, que vai embater, com fragor enorme, nas rochas da Praia Norte, e o pequeno salva-vidas.


Características do iate “Helena Santa”
1942 - 1945
Armador: Roque & Filhos, Faro
Nº Oficial: A-657 - Iic: C.S.C.R. - Porto de matrícula: Faro
Construtor: Luiz de Lemos, Faro, 1942
Arqueação: Tab 115,38 tons - Tal 82,20 tons
Dimensões: Ff 30,50 mts - Pp 26,05 mts - Bc 7,50 mts - Ptl 2,96 mts
Propulsão: 1 motor diesel - 4:Ci - 88 Bhp
Equipagem: 8 tripulantes

Um homem, arrebatado pelo mar,
salva-se a custo e mercê de muita sorte
O navio, atravessado agora no seu leito de morte, está a ser batido furiosamente, sem defesa, pelo mar. Subitamente há um grito. Um homem é arrebatado pelas vagas e vai cair no mar. Os companheiros olham, estarrecidos, e só há para eles uma esperança, para que não lhes aconteça o mesmo: é refugiar-se nas escadas dos mastros. Para ali fogem, acossados pelo mar, espavoridos. Por uma felicidade, com o homem que o mar arrasta, é arrastada a baleeira de bordo e logo o infeliz, numa decisão arrojada agarra-se ao bote, sua tabua de salvação.
Só da vigia dos pilotos é possível presenciar a tragédia desse homem. Salta para a frágil embarcação, que salta, doidamente, no mar revolto. Há uma tábua perto. E o homem, Domingos Silvério Ferro, com ela governa o barco; consegue entrar nas águas, mais serenas, da Praia Norte e, com enorme alívio das pessoas que ali permanecem, dele e dos companheiros, dentro de minutos atinge a praia. Para a sua salvação concorre o facto da maré estar na preia-mar. Agora, para os pobres náufragos, só há uma esperança: é que o salva-vidas rompa a rebentação da barra e consiga acostar ao navio.
E consegue-o. Deus seja louvado!
Os heróicos rapazes de Viana, músculos e nervos retesados, só tem ouvidos para o mestre António Gago, que dirige o barco, com férrea energia. A manobra é feliz. A pequena embarcação transpõe o perigo. Em terra muita gente chora. Depois, o que se segue é rápido. São 10 horas e 15 minutos. O salva-vidas encosta ao longo da amurada de bombordo do “Helena Santa” e, dentro de minutos ouve-se um brado:
- Todos a bordo! Larga! A tripulação está toda salva!
Na barra, os pilotos, firmes e decididos no seu posto, dirigem as manobras, os gritos dos megafones, abafados pelo mar.
Agora, é o regresso. O vento e a chuva aumentam de fúria, mas aqueles milhares de pessoas não arredam pé. Todos têm os olhos naquela heroica gente. Há minutos angustiosos. Mas novamente, com a mesma perícia, o “João Tomás da Costa” galga a rebentação, saltando no mar revolto; entra nas águas da barra interior, já está no ante-porto, trazendo os tripulantes, molhados até aos ossos, sem nada terem salvo, além da roupa de trabalho que trazem no corpo, mas felizes, - pobres deles – de terem escapado à morte, que esteve tão perto.
Mal penetraram na doca de marés, os náufragos foram logo passados para a ambulância da Cruz Vermelha e levados ao Hospital da Misericórdia onde os médicos e restante pessoal, imediatamente lhes prestaram todos os socorros.
Os tripulantes são: António Gonçalves de Sousa, solteiro, cozinheiro, de 22 anos, de S. Pedro, Faro, com uma ferida contusa na perna direita; José Viegas Conteira, de 42 anos, casado, de Olhão; Domingos Silvério Ferro, de 24 anos, casado, de Olhão, com ferida contusa na perna esquerda; Francisco Eduardo Alexandre, de 34 anos, casado, de Olhão, com ferimentos no ombro direito; António Viegas Ramos, de 29 anos, solteiro, contra-mestre, de Olhão; Joaquim Estrela Ministro, de 35 anos, casado, 1º motorista, de S. Pedro, Faro; António de Sousa Pires, de 34 anos, casado, 2º motorista, de Moncarapacho, Olhão, e o mestre do navio, João Martins dos Santos, de 36 anos, casado, de Olhão.
O navio, um pequeno iate-motor de 200 toneladas, pertence à firma Roque & Filhos, de Faro, sendo seu operador o Sr. José Maria da Silva, de Lisboa, e vinha com um carregamento de sal, de Aveiro, para a firma Manuel Martins Branco, desta praça. Navio e carga estavam no seguro.
Os tripulantes, logo que tratados, deram uma esmola para o templo de Santa Luzia; depois, foram socorridos pelo representante do armador, Sr. Manuel Meira da Costa, seguindo, de tarde, para as suas terras.
O “Helena Santa” está a desfazer-se, dando à costa pedaços de madeira e materiais de bordo.

Notícias publicadas no jornal “Comércio do Porto”, em:
(1) sábado, 17 de Novembro de 1945

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