Conversas improváveis! (I)
O “Paços de Brandão”, que chegou, ontem, dos bancos da Terra Nova, aguarda, em frente do cais, que lhe aliviem o porão dos 3.000 quintais de bacalhau, que muitos provarão, mais tarde, com certeza… E o moço da câmara e o moço do convés, companheiros de lufa e bons amigos, olham o Douro que cintila e esperam, ansiosos a hora do regresso à terra natal, onde elas os esperam, tão fiéis como o fiel amigo…
Em busca do “fiel amigo”…
Em busca do “fiel amigo”…
O primeiro lugre que voltou da Terra Nova e o que conta Samuel Sacramento Salvadorinho, moço de câmara, que conhece os «bancos», o bacalhau e a pescaria como os seus dedos tisnados…
Quatro horas da tarde, em Massarelos, frente ao rio. O Douro cintila. Parece uma chapa metálica, pintada de azul escuro, manchada, aqui e ali, de borrões mais claros, mais sombrios.
- Deve ser aquele…
É. De longe, do cais, em que o vulto sonolento dum guarda-fiscal põe uma vaga nota de fronteira, o barco parece enterrado no rio.
Deve estar carregadíssimo. E no casco, de que só emerge muito pouco, estão bem impressos, bem flagrantes, bem nítidos, os sinais de derrota longa, por águas salgadas e violentas.
Um caíque põe-nos a bordo, num ápice. Uma escada de corda, muito curtida pelo mar, muito poída pela serventia.
- Está alguém a bordo? Quem daí pode falar connosco?
Duma trincheira de barquitos, erguida a meio do lugre, irrompe um rapagão crestado, tresandando a maresia e bramindo:
- Pronto!
E a conversa começa, sem outro preâmbulo que não seja o de defender o nariz, por um momento, do odor fortíssimo que sobe do porão e invade toda a coberta…
O lugre chama-se “Paços de Brandão”. Pertence à praça do Porto e ao armador Silva Rios.
Foi o primeiro a regressar dos bancos da Terra Nova, atulhado de bacalhau – e eis a origem de tanta curiosidade. Chegou, ontem, em frente a Massarelos, fundeadouro clássico dos lugres que vão, todos os anos, para a faina da pescaria.
O capitão, - um verdadeiro lobo do mar, na frase do rapagão crestado que nos fala – chama-se João Francisco Bichão e é natural de Ílhavo, terra de pescadores, de alguns dos melhores pescadores de Portugal. O piloto dá pela graça de João Pereira Campos e é de Ílhavo, também. O contra-mestre, Humberto Grilo, nasceu na mesma terra. Todos os altos comandos deste comprido navio de três altos mastros, que está cheio como um ovo, estão entregues a ilhavenses. É Ílhavo que dita, ali dentro, a lei.
- E você de onde é?
Samuel Sacramento Salvadorinho, o rapagão de botas altas e camisa de quadrados à escocesa que temos pela proa, responde, com um gesto largo, que tem o seu quê de glorioso, de triunfante, de épico:
- Eu cá sou de Ílhavo, também!
- E o resto da companha?
- É consoante… Alguns são de Setúbal. É, também, temos algarvios, mas a maior parte é de Ílhavo!
- Quantos são, ao todo?
- 28, com os oficiais, comigo e, aqui, com o João São Marcos – e amigo Samuel levanta a dextra até ao pescoço do único companheiro de bordo que está presente, que é moço do convés, que tem 22 anos de idade e que tem o carão mais sardento e o ar mais marítimo deste mundo.
E o Samuel continua, sacudido de voz como todo o marujo que se preza, a esclarecer quanto à vida de bordo e à actividade da tripulação.
Partiu o “Paços de Brandão” em 19 de Maio, do mesmo sítio em que está, agora, ancorado. Ao cabo de 12 dias de mar bom chegava ao banco. Por ali se demorou, na lufa da pesca, até 4 deste mês (Setembro). E ei-lo que está de volta, ao fim de uma viagem tão calma como a de ida. Pomos umas reticências, que não chegam a ser interrogação:
- Para cá levou mais dias…
- Pois… É que vinha carregadinho! Nestes quatro meses de mar o “Paços de Brandão” não perdeu tempo.
- Quantos quintais trazem, aí dentro?
- O Samuel Sacramento Salvadorinho, que não tem papas na língua, grita, simplesmente:
- Coisa para 3.000!
E o São Marcos, que lembra certas figuras de certas histórias nórdicas, corrobora, do lado, enterrando mais o gorro de lã que o viu limpar, durante meses, o convés encardido:
- Deve ser isso.
Quatro horas da tarde, em Massarelos, frente ao rio. O Douro cintila. Parece uma chapa metálica, pintada de azul escuro, manchada, aqui e ali, de borrões mais claros, mais sombrios.
- Deve ser aquele…
É. De longe, do cais, em que o vulto sonolento dum guarda-fiscal põe uma vaga nota de fronteira, o barco parece enterrado no rio.
Deve estar carregadíssimo. E no casco, de que só emerge muito pouco, estão bem impressos, bem flagrantes, bem nítidos, os sinais de derrota longa, por águas salgadas e violentas.
Um caíque põe-nos a bordo, num ápice. Uma escada de corda, muito curtida pelo mar, muito poída pela serventia.
- Está alguém a bordo? Quem daí pode falar connosco?
Duma trincheira de barquitos, erguida a meio do lugre, irrompe um rapagão crestado, tresandando a maresia e bramindo:
- Pronto!
E a conversa começa, sem outro preâmbulo que não seja o de defender o nariz, por um momento, do odor fortíssimo que sobe do porão e invade toda a coberta…
O lugre chama-se “Paços de Brandão”. Pertence à praça do Porto e ao armador Silva Rios.
Foi o primeiro a regressar dos bancos da Terra Nova, atulhado de bacalhau – e eis a origem de tanta curiosidade. Chegou, ontem, em frente a Massarelos, fundeadouro clássico dos lugres que vão, todos os anos, para a faina da pescaria.
O capitão, - um verdadeiro lobo do mar, na frase do rapagão crestado que nos fala – chama-se João Francisco Bichão e é natural de Ílhavo, terra de pescadores, de alguns dos melhores pescadores de Portugal. O piloto dá pela graça de João Pereira Campos e é de Ílhavo, também. O contra-mestre, Humberto Grilo, nasceu na mesma terra. Todos os altos comandos deste comprido navio de três altos mastros, que está cheio como um ovo, estão entregues a ilhavenses. É Ílhavo que dita, ali dentro, a lei.
- E você de onde é?
Samuel Sacramento Salvadorinho, o rapagão de botas altas e camisa de quadrados à escocesa que temos pela proa, responde, com um gesto largo, que tem o seu quê de glorioso, de triunfante, de épico:
- Eu cá sou de Ílhavo, também!
- E o resto da companha?
- É consoante… Alguns são de Setúbal. É, também, temos algarvios, mas a maior parte é de Ílhavo!
- Quantos são, ao todo?
- 28, com os oficiais, comigo e, aqui, com o João São Marcos – e amigo Samuel levanta a dextra até ao pescoço do único companheiro de bordo que está presente, que é moço do convés, que tem 22 anos de idade e que tem o carão mais sardento e o ar mais marítimo deste mundo.
E o Samuel continua, sacudido de voz como todo o marujo que se preza, a esclarecer quanto à vida de bordo e à actividade da tripulação.
Partiu o “Paços de Brandão” em 19 de Maio, do mesmo sítio em que está, agora, ancorado. Ao cabo de 12 dias de mar bom chegava ao banco. Por ali se demorou, na lufa da pesca, até 4 deste mês (Setembro). E ei-lo que está de volta, ao fim de uma viagem tão calma como a de ida. Pomos umas reticências, que não chegam a ser interrogação:
- Para cá levou mais dias…
- Pois… É que vinha carregadinho! Nestes quatro meses de mar o “Paços de Brandão” não perdeu tempo.
- Quantos quintais trazem, aí dentro?
- O Samuel Sacramento Salvadorinho, que não tem papas na língua, grita, simplesmente:
- Coisa para 3.000!
E o São Marcos, que lembra certas figuras de certas histórias nórdicas, corrobora, do lado, enterrando mais o gorro de lã que o viu limpar, durante meses, o convés encardido:
- Deve ser isso.
Foto do lugre "Paços de Brandão"
Imagem de autor desconhecido
Imagem de autor desconhecido
Depois, quando a informação cronológica e mercantil está esgotada, o Samuel fala, mais pachorrentamente, da vida, das coisas, dos prazeres e das tristezas de bordo.
Quando não pescavam, passavam à brisa – a brisa é o tempo de puro lazer – de papo para o ar, chalaceando, rindo, gozando a paz imensa do Atlântico, que é pitoresco, a valer, junto dos bancos…
Uma santa comunidade a daqueles homens que andavam à cata do fiel amigo. Comia-se e bebia-se, para ter forças. Se elas faltassem…
- Nunca foi preciso médico?
O Samuel sorri:
- Isso é coisa que não há. Se algum tem qualquer maleita, bota-se-lhe tintura de iodo.
Conformado:
- O mar é que é o médico. E se algum virar, borda fora…
Depois, conta como se faz a pesca. É uma descrição pormenorizada, dum grande relevo técnico, que enfadaria o leitor. Os pescadores saem naqueles barquitos que se empilham sobre o tombadilho e passam horas e horas, deitando a linha.
Se o peixe não cai, há ralho do capitão, pela certa. E o pescador, que é, sempre, brioso, que tem, sempre, o culto da sua profissão arriscada, faz tudo o que pode para marcar a sua posição, para se impôr, para ter jus ao louvor do capitão que se traduz – findo o prazo da matricula, em remuneração mais quantiosa.
- Quantos barcos ficaram?
- Para a Terra Nova foram 7. Não tardam aí…
E o Salvadorinho explica que os outros barcos vão para a Gronelândia, onde o peixe não falta e é muito bom, também.
Depois, como não há mais por onde segurar as escoras da conversa, o rapagão, tostado do sol que apanhou, no cruzeiro da pesca, anuncia que finda a descarga, irá para Ílhavo, a sua terra querida, onde o esperam dois olhos muito meigos que se perdem, todos os dias, na visão do mar largo…
- E, depois, até ao ano, que é que se faz?
- Nada. Está-se à boa vida… Em Maio, torna-se.
E anda nisto o Samuel, que desempenha as funções de moço da câmara, há dois anos bem puxados. Já navegou no “Funchalense”, um naviozito de carga que o iniciou na vida do mar.
- Gosta dessa vida?
- A gente afaz-se. Não há remédio… E sentou-se na amurada, olhando os batéis do bacalhau, frágeis como a vida de quem anda no mar. Do porão vinha, entretanto, o cheiro forte a peixe fresco… E o Douro continuava a cintilar, alheio a tudo aquilo…
(In jornal “Comércio do Porto”, sexta, 21 de Setembro de 1934)
Para o Grémio dos Armadores da Pesca do Bacalhau o Samuel Salvadorinho, que estaria nos próximos meses prestes a completar 100 anos, se por fortuna estivesse vivo, era antes de mais o Nº 1084, conforme consta na respectiva ficha, cuja cópia me foi gentilmente cedida pelo Museu Marítimo de Ílhavo.
Mas a realidade é distinta. O moço de câmara, tal lobo do mar retratado através do texto, revelou-se ser um elemento indispensável a bordo de todos os navios onde esteve embarcado, e foram vários durante muitos anos, tais como: 1936- lugre “Palmeirinha”, moço; 1938- lugre “Argus”, pescador; 1939/1940/1941- lugre “Creoula”, 1ª linha; 1942/1943/1944- lugre “Creoula”, especial; 1945- arrastão “Pedro de Barcelos”, maduro; 1946/1947/1948/1949/1959/1951- lugre “Creoula”, especial; 1952/1953- navio-motor “Capitão João Vilarinho”, especial e 1ª linha; 1954/1955- navio-motor “Conceição Vilarinho”, 1ª e 2ª linha; 1956/1957/1958- navio-motor “Capitão João Vilarinho”, 1ª e 2ª linha e 1959/1960- navio-motor “Neptuno”, 3ª linha.
Espero que esta história se recorde por muito tempo, brilhante exemplo de pescador, mas acima de tudo, permito-me ao direito de considerá-lo como um notável “homem do mar”.
Quando não pescavam, passavam à brisa – a brisa é o tempo de puro lazer – de papo para o ar, chalaceando, rindo, gozando a paz imensa do Atlântico, que é pitoresco, a valer, junto dos bancos…
Uma santa comunidade a daqueles homens que andavam à cata do fiel amigo. Comia-se e bebia-se, para ter forças. Se elas faltassem…
- Nunca foi preciso médico?
O Samuel sorri:
- Isso é coisa que não há. Se algum tem qualquer maleita, bota-se-lhe tintura de iodo.
Conformado:
- O mar é que é o médico. E se algum virar, borda fora…
Depois, conta como se faz a pesca. É uma descrição pormenorizada, dum grande relevo técnico, que enfadaria o leitor. Os pescadores saem naqueles barquitos que se empilham sobre o tombadilho e passam horas e horas, deitando a linha.
Se o peixe não cai, há ralho do capitão, pela certa. E o pescador, que é, sempre, brioso, que tem, sempre, o culto da sua profissão arriscada, faz tudo o que pode para marcar a sua posição, para se impôr, para ter jus ao louvor do capitão que se traduz – findo o prazo da matricula, em remuneração mais quantiosa.
- Quantos barcos ficaram?
- Para a Terra Nova foram 7. Não tardam aí…
E o Salvadorinho explica que os outros barcos vão para a Gronelândia, onde o peixe não falta e é muito bom, também.
Depois, como não há mais por onde segurar as escoras da conversa, o rapagão, tostado do sol que apanhou, no cruzeiro da pesca, anuncia que finda a descarga, irá para Ílhavo, a sua terra querida, onde o esperam dois olhos muito meigos que se perdem, todos os dias, na visão do mar largo…
- E, depois, até ao ano, que é que se faz?
- Nada. Está-se à boa vida… Em Maio, torna-se.
E anda nisto o Samuel, que desempenha as funções de moço da câmara, há dois anos bem puxados. Já navegou no “Funchalense”, um naviozito de carga que o iniciou na vida do mar.
- Gosta dessa vida?
- A gente afaz-se. Não há remédio… E sentou-se na amurada, olhando os batéis do bacalhau, frágeis como a vida de quem anda no mar. Do porão vinha, entretanto, o cheiro forte a peixe fresco… E o Douro continuava a cintilar, alheio a tudo aquilo…
(In jornal “Comércio do Porto”, sexta, 21 de Setembro de 1934)
Para o Grémio dos Armadores da Pesca do Bacalhau o Samuel Salvadorinho, que estaria nos próximos meses prestes a completar 100 anos, se por fortuna estivesse vivo, era antes de mais o Nº 1084, conforme consta na respectiva ficha, cuja cópia me foi gentilmente cedida pelo Museu Marítimo de Ílhavo.
Mas a realidade é distinta. O moço de câmara, tal lobo do mar retratado através do texto, revelou-se ser um elemento indispensável a bordo de todos os navios onde esteve embarcado, e foram vários durante muitos anos, tais como: 1936- lugre “Palmeirinha”, moço; 1938- lugre “Argus”, pescador; 1939/1940/1941- lugre “Creoula”, 1ª linha; 1942/1943/1944- lugre “Creoula”, especial; 1945- arrastão “Pedro de Barcelos”, maduro; 1946/1947/1948/1949/1959/1951- lugre “Creoula”, especial; 1952/1953- navio-motor “Capitão João Vilarinho”, especial e 1ª linha; 1954/1955- navio-motor “Conceição Vilarinho”, 1ª e 2ª linha; 1956/1957/1958- navio-motor “Capitão João Vilarinho”, 1ª e 2ª linha e 1959/1960- navio-motor “Neptuno”, 3ª linha.
Espero que esta história se recorde por muito tempo, brilhante exemplo de pescador, mas acima de tudo, permito-me ao direito de considerá-lo como um notável “homem do mar”.
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