No Norte do Brasil - A catástrofe do Camará
O “Paes de Carvalho” em chamas nas águas do Solimões,
Amazonas - Dezenas de náufragos mutilados - 12 mortos
Manaus, 31 de Março – Conforme o telégrafo comunicou já, a madrugada de 22 do corrente veio trazer à nossa população a emoção mais profunda que temos sentido nestes últimos tempos: o sinistro do vapor fluvial “Paes de Carvalho”, da frota da «Amazon River».
Ainda todos os corações pulsam no mesmo sentimento de piedade e horror, de tristeza e comoção, ao evocar essa tremenda hecatombe, que supera outras desgraças análogas, tal a amplitude de consequências trágicas e inesperadas, com o séquito extenso de luto, a trazer inúmeros lares presos de mágoa infinda causada pelas irreparáveis perdas.
À meia-noite de 19 do corrente, o “Paes de Carvalho” deixava o «roadway» da «Manaus Harbour», continuando, assim, a viagem da linha do Juruá, empreendida de Belém, porto inicial.
Comandado pelo piloto João de Deus Cabral dos Anjos, marítimo bastante conhecido e conceituado na nossa marinha mercante, o “Paes de Carvalho” conduzia elevado número de passageiros e avultada quantidade de carga, como aliás o fazem todos os gaiolas empregados na navegação do Amazonas.
O percurso do “Paes de Carvalho” ia sendo feito sem novidade, quando, ao chegar ao porto da vila de Codajás, o comandante notou que dois reboques de pescadores portugueses atrasavam a marcha da embarcação. Verificando esse facto, que, realmente, já vinha retardando em quatro horas a viagem, aquele oficial deliberou propôr aos pescadores que largassem o reboque, transmitindo-lhes essa resolução, por intermedio do praticante Mário de Assis Costa, que se tornou, mais tarde, num verdadeiro herói.
Atendendo às ponderações do comandante um dos pescadores procedeu logo à resolução tomada, desamarrando a canoa do navio, enquanto o seu colega de ofício se obstinava em continuar a viagem, já tendo, a esse tempo, o “Paes de Carvalho” deixado o porto de Codajás.
Diante da desobediência das suas ordens, o comandante Cabral dos Anjos renovou o aviso de que não podia continuar a conduzir o reboque, até que, vendo a insistência do pescador, mandou um marinheiro desatar os nós das cordas.
Esse facto não enfureceu o mariscador lusitano.
Ainda todos os corações pulsam no mesmo sentimento de piedade e horror, de tristeza e comoção, ao evocar essa tremenda hecatombe, que supera outras desgraças análogas, tal a amplitude de consequências trágicas e inesperadas, com o séquito extenso de luto, a trazer inúmeros lares presos de mágoa infinda causada pelas irreparáveis perdas.
À meia-noite de 19 do corrente, o “Paes de Carvalho” deixava o «roadway» da «Manaus Harbour», continuando, assim, a viagem da linha do Juruá, empreendida de Belém, porto inicial.
Comandado pelo piloto João de Deus Cabral dos Anjos, marítimo bastante conhecido e conceituado na nossa marinha mercante, o “Paes de Carvalho” conduzia elevado número de passageiros e avultada quantidade de carga, como aliás o fazem todos os gaiolas empregados na navegação do Amazonas.
O percurso do “Paes de Carvalho” ia sendo feito sem novidade, quando, ao chegar ao porto da vila de Codajás, o comandante notou que dois reboques de pescadores portugueses atrasavam a marcha da embarcação. Verificando esse facto, que, realmente, já vinha retardando em quatro horas a viagem, aquele oficial deliberou propôr aos pescadores que largassem o reboque, transmitindo-lhes essa resolução, por intermedio do praticante Mário de Assis Costa, que se tornou, mais tarde, num verdadeiro herói.
Atendendo às ponderações do comandante um dos pescadores procedeu logo à resolução tomada, desamarrando a canoa do navio, enquanto o seu colega de ofício se obstinava em continuar a viagem, já tendo, a esse tempo, o “Paes de Carvalho” deixado o porto de Codajás.
Diante da desobediência das suas ordens, o comandante Cabral dos Anjos renovou o aviso de que não podia continuar a conduzir o reboque, até que, vendo a insistência do pescador, mandou um marinheiro desatar os nós das cordas.
Esse facto não enfureceu o mariscador lusitano.
Foto do navio fluvial «gaiola» "Paes de Carvalho"
Retirada do corpo da notícia abaixo discriminada
Aliviado desse reboque, o navio prosseguiu a rota, costeando o Camará, à margem esquerda do Solimões. Nesse percurso, o “Paes de Carvalho” defrontou a ilha de Ajurá, situada na foz do paraná do Mamiá, conseguindo atingir a ponta da ilha da Botija, que, digamos de passagem, é circundada por barrancos intransponíveis. Essa ilha, que fica localizada a dez metros do canal de navegação, é o ponto que, nessa altura da viagem, todas as embarcações costeiam, não chegando, porém, o “Paes de Carvalho” a costear, porque, exactamente nessa travessia, se verificou o início do incêndio, às três horas e quarenta e cinco minutos da madrugada.
É de notar que a ilha da Botija, situada, como fica, no rio Solimões, divide esse rio em dois braços: um que segue para a esquerda – denominado paraná do Mamiá – e outro que se estende à direita – o Solimões propriamente dito, e onde fica situada a ilha do Trocary, pouco abaixo do porto do mesmo nome, para onde se destinava a embarcação sinistrada, a fim de descarregar mercadorias. Uma vez no Trocary, o “Paes de Carvalho” devia voltar ao local onde se deu o sinistro, entrando no paraná do Mamiá e seguindo o seu rumo.
Nesse momento, isto é, às 3 horas e quarenta minutos da madrugada, o vapor “Índio do Brazil”, que fazia a viagem inversa ao “Paes de Carvalho”, apitava para o porto do Mamiá, situado no paraná do mesmo nome, a fim de tomar lenha. O prático do “Índio do Brazil”, sr. Raimundo Baptista da Silva, que fez a atracação em Mamiá, diz que realmente observou, na direcção da ponta extrema da ilha da Botija, um clarão e fumo intenso. Acreditou que se tratasse de uma queimada na ponta da referida ilha. Não ouviu os apitos soltados pelo “Paes de Carvalho”, que a menos de trinta minutos, servia de pasto ao mais pavoroso incêndio em águas amazónicas.
Explicou este profissional que não admira de não ouvir o pedido de socorro do “Paes de Carvalho”, pois o vento soprava em sentido contrário e, portanto, levava o som noutra direcção. A profundidade do rio Solimões, no local onde o “Paes de Carvalho” soçobrou é, mais ou menos, de doze braças. O incêndio teve origem no presumível gesto de uma passageira de 3ª classe que, após fumar um cachimbo, sacudiu as cinzas, sem se aperceber de que estava próxima a inflamáveis.
Retirada do corpo da notícia abaixo discriminada
Aliviado desse reboque, o navio prosseguiu a rota, costeando o Camará, à margem esquerda do Solimões. Nesse percurso, o “Paes de Carvalho” defrontou a ilha de Ajurá, situada na foz do paraná do Mamiá, conseguindo atingir a ponta da ilha da Botija, que, digamos de passagem, é circundada por barrancos intransponíveis. Essa ilha, que fica localizada a dez metros do canal de navegação, é o ponto que, nessa altura da viagem, todas as embarcações costeiam, não chegando, porém, o “Paes de Carvalho” a costear, porque, exactamente nessa travessia, se verificou o início do incêndio, às três horas e quarenta e cinco minutos da madrugada.
É de notar que a ilha da Botija, situada, como fica, no rio Solimões, divide esse rio em dois braços: um que segue para a esquerda – denominado paraná do Mamiá – e outro que se estende à direita – o Solimões propriamente dito, e onde fica situada a ilha do Trocary, pouco abaixo do porto do mesmo nome, para onde se destinava a embarcação sinistrada, a fim de descarregar mercadorias. Uma vez no Trocary, o “Paes de Carvalho” devia voltar ao local onde se deu o sinistro, entrando no paraná do Mamiá e seguindo o seu rumo.
Nesse momento, isto é, às 3 horas e quarenta minutos da madrugada, o vapor “Índio do Brazil”, que fazia a viagem inversa ao “Paes de Carvalho”, apitava para o porto do Mamiá, situado no paraná do mesmo nome, a fim de tomar lenha. O prático do “Índio do Brazil”, sr. Raimundo Baptista da Silva, que fez a atracação em Mamiá, diz que realmente observou, na direcção da ponta extrema da ilha da Botija, um clarão e fumo intenso. Acreditou que se tratasse de uma queimada na ponta da referida ilha. Não ouviu os apitos soltados pelo “Paes de Carvalho”, que a menos de trinta minutos, servia de pasto ao mais pavoroso incêndio em águas amazónicas.
Explicou este profissional que não admira de não ouvir o pedido de socorro do “Paes de Carvalho”, pois o vento soprava em sentido contrário e, portanto, levava o som noutra direcção. A profundidade do rio Solimões, no local onde o “Paes de Carvalho” soçobrou é, mais ou menos, de doze braças. O incêndio teve origem no presumível gesto de uma passageira de 3ª classe que, após fumar um cachimbo, sacudiu as cinzas, sem se aperceber de que estava próxima a inflamáveis.
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Eis o que sobre a catástrofe disse a um jornalista o 3º maquinista do navio, Leonardo Severo de Jesus, de serviço no momento angustioso:
- Era o maquinista do quarto de vigilância, e, como de costume, entrei à meia-noite e devia largar às 4 horas da manhã. Saímos desta capital à meia-noite do dia 19, tendo sido eu o maquinista que deu saída à embarcação. Até ao dia 22, às 3 e meia da madrugada, a viagem prosseguiu, como de costume, sem incidentes.
Às 3 horas e quarenta minutos o segundo cozinheiro deu o alarme de fogo a bordo, tendo eu deixado por breves instantes a casa das máquinas a certificar-me se era exacto o sinal e de onde irrompia o incêndio. Conjugando os meus esforços com dois tripulantes, conseguimos atirar à água o enxergão incendiado, não fazendo outro tanto com a outra banda porque a esse tempo já o fogo se começava a propagar a uma das caixas que ia vazando combustível.
Nesse momento então os gritos de alarme foram mais intensos e como o meu lugar era junto à caldeira, corri à casa das máquinas onde cheguei exactamente quando o telégrafo me determinava parada imediata da embarcação. Procedi de acordo com o determinado, sabendo depois que essa ordem fora efectivada pelo comandante Cabral dos Anjos.
Por essa altura, fui sobressaltado por dois estampidos, quase simultâneos: eram as primeiras explosões das centenas que depois se verificaram. Uma vez parado o “Paes de Carvalho”, determinei ao cabo-fogueiro que estava de plantão que tocasse o aparelho denominado «burro» para que puxasse e conduzisse a água para extinguir o fogo. Era tarde; o fogo havia tomado proporções agigantadas; qualquer esforço para dominar a fogueira era improfícuo e insensato; nem um dilúvio, naquela altura, conseguiria acalmar os ímpetos das chamas; o navio estava irremediavelmente perdido e as nossas vidas colocadas num fatal dilema: ou morrer pelo fogo, ou morrer pela água.
Os lotes de caixas que estavam próximos à casa das máquinas invadiram aquele recinto, comunicado o fogo ao dínamo gerador da luz a bordo. Todo o navio ficou, desde esse momento, completamente às escuras. Pela porta que me tinha dado entrada era impossível sair, porque o incêndio nessa altura já me assoberbava a passagem, resolutamente procurei sair pela frente da caldeira.
Conquanto surpreso, estava completamente senhor de mim, e pude com calma procurar abrigo seguro contra a avassaladora ira das chamas. Fui à procura de sossego na proa do navio, onde já encontrei o comandante Cabral dos Anjos, o prático Josino do Carmo Palheta, o prático Milton Angelin, o mestre José Ezequiel de Salles e o 1º maquinista. Foi mesmo neste momento que o pânico atingiu o mais alto grau, pois os passageiros totalmente desorientados gritavam muito alto, clamando por socorro, confundindo preces com imprecações, orações com blasfémias.
Muitos passageiros solicitavam ao comandante que aproasse o navio a terra, mas, quando o comandante quis tomar essas providências era demasiado tarde…
(Jornal "Comércio do Porto", Domingo, 9 de Maio de 1926)
- Era o maquinista do quarto de vigilância, e, como de costume, entrei à meia-noite e devia largar às 4 horas da manhã. Saímos desta capital à meia-noite do dia 19, tendo sido eu o maquinista que deu saída à embarcação. Até ao dia 22, às 3 e meia da madrugada, a viagem prosseguiu, como de costume, sem incidentes.
Às 3 horas e quarenta minutos o segundo cozinheiro deu o alarme de fogo a bordo, tendo eu deixado por breves instantes a casa das máquinas a certificar-me se era exacto o sinal e de onde irrompia o incêndio. Conjugando os meus esforços com dois tripulantes, conseguimos atirar à água o enxergão incendiado, não fazendo outro tanto com a outra banda porque a esse tempo já o fogo se começava a propagar a uma das caixas que ia vazando combustível.
Nesse momento então os gritos de alarme foram mais intensos e como o meu lugar era junto à caldeira, corri à casa das máquinas onde cheguei exactamente quando o telégrafo me determinava parada imediata da embarcação. Procedi de acordo com o determinado, sabendo depois que essa ordem fora efectivada pelo comandante Cabral dos Anjos.
Por essa altura, fui sobressaltado por dois estampidos, quase simultâneos: eram as primeiras explosões das centenas que depois se verificaram. Uma vez parado o “Paes de Carvalho”, determinei ao cabo-fogueiro que estava de plantão que tocasse o aparelho denominado «burro» para que puxasse e conduzisse a água para extinguir o fogo. Era tarde; o fogo havia tomado proporções agigantadas; qualquer esforço para dominar a fogueira era improfícuo e insensato; nem um dilúvio, naquela altura, conseguiria acalmar os ímpetos das chamas; o navio estava irremediavelmente perdido e as nossas vidas colocadas num fatal dilema: ou morrer pelo fogo, ou morrer pela água.
Os lotes de caixas que estavam próximos à casa das máquinas invadiram aquele recinto, comunicado o fogo ao dínamo gerador da luz a bordo. Todo o navio ficou, desde esse momento, completamente às escuras. Pela porta que me tinha dado entrada era impossível sair, porque o incêndio nessa altura já me assoberbava a passagem, resolutamente procurei sair pela frente da caldeira.
Conquanto surpreso, estava completamente senhor de mim, e pude com calma procurar abrigo seguro contra a avassaladora ira das chamas. Fui à procura de sossego na proa do navio, onde já encontrei o comandante Cabral dos Anjos, o prático Josino do Carmo Palheta, o prático Milton Angelin, o mestre José Ezequiel de Salles e o 1º maquinista. Foi mesmo neste momento que o pânico atingiu o mais alto grau, pois os passageiros totalmente desorientados gritavam muito alto, clamando por socorro, confundindo preces com imprecações, orações com blasfémias.
Muitos passageiros solicitavam ao comandante que aproasse o navio a terra, mas, quando o comandante quis tomar essas providências era demasiado tarde…
(Jornal "Comércio do Porto", Domingo, 9 de Maio de 1926)
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