terça-feira, 6 de março de 2018

Navios portugueses!


Os cavalos também se abatem
(Horace McCoy)

Afinal nem só os cavalos se matam a tiro. Os navios, também eles incansáveis galopadores dos mares em fúria, são abatidos a tiro, quando a sua presença ferida sobre as vagas, se revela uma ameaça!…
É nestas circunstâncias, que se configura com grande actualidade a frase do vice-almirante espanhol D. Castro Méndez Núnez, ao afirmar que mais vale a honra sem barcos, do que barcos sem honra, para recordar o lugre “Gaspar” (IIº), da Sociedade Novas Pescarias de Viana, Lda.
E por uma questão de justiça, merece igualmente especial relevo o capitão Manuel de Oliveira Mendes, que fez do navio a sua casa durante 19 anos de incansável dedicação, tenacidade e competência, até ao seu falecimento em 1947.

O lugre "Gaspar" a navegar em 1947
Imagem de autor desconhecido

Características do lugre “Gaspar (IIº)
1922 – 1948
Armador: Soc. Novas Pescarias de Viana, Lda., Viana do Castelo
Construtor: Manuel Maria Bolais Mónica, Figueira da Foz
(Este navio construído nas primitivas instalações que compunham o estaleiro do mestre António Maria Bolais Mónica, no Cabedelo, Figueira da Foz, foi originalmente concebido para a marinha de comércio, por encomenda da empresa Nápoles, Pinto Basto & Cª., Lda., de Lisboa. Teve o seu bota-abaixo a 24 de Agosto de 1919, sendo baptizado “Sarah”, nome que utilizou até à sua venda em 1922).
Arqueação: Tab 317,68 tons - Tal 245,81 tons
Comprimentos: Pp 43,35 mts - Boca 8,80 mts - Pontal 4,23 mts
Propulsão: À vela

Devido à instalação de um motor auxiliar, que decorreu durante o ano de 1938, o navio sofreu modificações estruturais, alterando as características para:
Arqueação: Tab 308,99 tons - Tal 199,31 tons
Dimensões: Ff 46,47 mts - Pp 39,39 mts - Bc 8,95 mts - Ptl 4,23 mts
Propulsão: Deutz, Alemanha, 1938 - 1:Di - 240 Bhp - 8 m/h
Equipagem: 9 tripulantes e 30 pescadores

Capitães embarcados: Manuel de Oliveira Mendes (1922 a 1925), Jacob de Oliveira Mendes (1926 a 1928), Manuel de Oliveira Mendes (1929 a 1930). O lugre não efectuou as campanhas de 1931 a 1933, período em que toda a frota esteve sujeita a fracas capturas de pescado. Manuel de Oliveira Mendes (1934 a 1947) e João de Sousa Firmeza (1948).

Ferido de morte após enfrentar corajosamente um violento temporal, o navio foi afundado a tiro pelo cutter da Guarda Costeira Americana “Bibb”, no dia 19 de Setembro de 1948, conforme relato que a seguir transcrevemos:
Embora com grandes avarias provocadas pela violenta tempestade, que assolou o Norte do Atlântico, o lugre “Gaspar”, que correu o risco de naufragar, continua a sua rota, segundo um rádio captado por um barco espanhol.
Angustiosas, pungentes horas foram vividas, ontem, em muitas localidades do litoral, logo que se espalhou a notícia de que algo ocorrera com o lugre “Gaspar”, de Viana do Castelo, nas longínquas paragens da Terra Nova. De princípio imprecisa, alarmante, a notícia divulgou-se com rapidez extraordinária, chegando a recear-se, então, pelas vidas de todos os seus tripulantes. Para tranquilidade das famílias, outras informações, porém, foram chegando, mais precisas, dando conta de socorros prestados, não só aos pescadores como ao próprio lugre.
De facto o “Gaspar”, açoitado violentamente, pelo vendaval que pairou, durante horas, em todo o Atlântico Norte, correra risco grave, mas felizmente, o seu apelo fora captado. Em seu socorro rumou, logo, o navio-hospital “Gil Eanes”, que saíra ante-ontem de St. John’s. Para tranquilidade das famílias, o comandante deste prestante auxiliar da nossa frota bacalhoeira, enviou um rádio para o Ministério da Marinha, comunicando que, junto do barco sinistrado estava, já, um arrastão espanhol, a prestar socorro aos tripulantes. Foi esta comunicação, por certo, a que mais tranquilidade causou. Entretanto iam chegando novas notícias, por intermédio das agências telegráficas, dando conta que, do porto de Nova Iorque haviam saído também, em socorro do “Gaspar” e dos seus tripulantes, um cruzador, um contra-torpedeiro e um barco mercante, bem como um rebocador canadiano.
Também para o local, a cerca de mil e quinhentos quilómetros de Halifax, na Nova Escócia, seguiu uma patrulha de aviões, com barcos salva-vidas.
Tão tranquilizadoras notícias acalmaram um pouco a ansiedade de pobres famílias da Fuzeta, Vila do Conde, Póvoa de Varzim, Ílhavo, Darque, Viana do Castelo, Âncora e Sesimbra – terras dos quarenta e quatro homens, que se encontravam embarcados no “Gaspar”. Pela tarde, a “Reuter” comunicava que, segundo dados recebidos da fragata Americana “Cecil N. Bean” e do navio “Tropero”, a tripulação do lugre português estava salva. Os trabalhos de salvamento da gente do “Gaspar”, foram realizados a seiscentos e quarenta quilómetros a Sudoeste do Cabo Race, na Terra Nova. Neles tomaram parte, também, dois bombardeiros norte-americanos e um hidroavião da vigilância costeira, que levantaram voo da base de Argentia, logo que foi recebido o pedido de socorro do comandante do lugre português.
Entretanto, ao local chegavam outros barcos, entre os quais o cruzador “Albany” e o contra-torpedeiro “Purty”, da marinha de guerra americana. Por último, um telegrama da “France-Press” dizia que através da traineira espanhola “Tifon”, o “Gaspar” apesar das avarias sofridas a bordo, julgava-se em estado de continuar a sua rota pelos seus próprios meios, não necessitando mais do que auxílio exterior. Mesmo assim o lugre manteve-se escoltado pelos navios de guerra e mercantes, que se encontravam nessas paragens.
O “Gaspar” pertence à empresa Novas Pescarias de Viana, é comandado pelo capitão da marinha mercante, Sr. João de Sousa Firmeza, de Ílhavo, foi construído na Figueira da Foz em 1919 e tem capacidade para 5.500 quintais de bacalhau. Mede de comprimento 39,39 metros e tem 8,95 metros de boca. Embora construído em madeira, está revestido a chapas de ferro e tem equipado um motor de propulsão. O capitão João de Sousa Firmeza, faz nele a sua primeira viagem, visto ter falecido no ano findo o antigo comandante Sr. Manuel de Oliveira Mendes.
(In Jornal “O Comércio do Porto”, sexta-feira, 17 de Setembro de 1948)

Curiosidades
Em relação ao texto anterior, confirma-se que a capacidade de carga do lugre era de 5.500 quintais. Nesse ano de 1948, ficamos a saber que a equipagem era composta por 44 homens, 9 dos quais compunham a tripulação permanente, sendo os 35 restantes pescadores repartidos por várias classes.
Podemos complementar a mesma informação, através dos valores média entre os anos de 1928 a 1943, que apontam para uma equipagem de 43 tripulantes e 41 dóris.
Em 1929, o navio mais os dóris estavam avaliados em 350 mil escudos, dispondo de 46 linhas e tróleis com anzóis e zagaias, cuja aquisição orçou em cerca de 50 mil escudos. Nos anos de 1928 a 1929 nos bancos da Terra Nova e de 1932 a 1934, na Terra Nova e Gronelândia, o pior ano de capturas foi 1928. Nesse ano foram pescados 1.800 quintais de bacalhau e produzido 1.500 kgs. de óleo de fígado, comercializados por escudos 271.206$00. Já em 1934, os valores subiram consideravelmente para 5.353 quintais de bacalhau, i.e. praticamente um carregamento completo e ainda puderam produzir 2.700 kgs. de óleo de fígado, que em conjunto renderam cerca de 810 mil escudos.

O cutter "Bibb" da Guarda Costeira Americana
Foto de autor desconhecido
Imagem retirada do sítio da Guarda Costeira dos Estados Unidos

O lugre “Gaspar” foi afundado sob grande emoção, a tiros de peça
disparados pelo cutter da Guarda Costeira Americana “Bibb”
O navio hospital “Gil Eanes” chegado ao local onde se encontrava o lugre “Gaspar”, logo procedeu à transferência da tripulação, que se encontrava a bordo do navio da Guarda Costeira Americana “Bibb”. Durante a noite, o comandante Tavares de Almeida esteve em conversações pela rádio com o comandante do navio americano, tendo ambos acordado que não era viável o reboque do lugre, por se encontrar com as amuras desaparecidas, cabos torcidos e a proa aberta, sujeito a afundamento, apesar de ser lento o processo. Por esse motivo, foram disparados mais de uma dúzia de tiros de peça, provocando o adornar da embarcação e o seu afundamento, de quilha para cima, para evitar que o casco fosse um perigo para a navegação.
(In Jornal “O Comércio do Porto”, segunda, 20 de Setembro de 1948)

Desembarcaram ontem em Leixões alguns náufragos do lugre “Gaspar”
que se afundou em Agosto, a quinhentas milhas da Terra Nova
Sob o comando do sr. capitão Manuel Nunes Gonçalves Guerra, entrou no porto de Leixões, ontem, de tarde, o navio bacalhoeiro a motor “Condestável”, com dez mil quintais de bacalhau.
A bordo, além dos setenta e cinco homens que constituem a equipagem do navio, vieram onze dos náufragos do lugre português “Gaspar”, da praça de Viana, afundado em virtude de um violento furacão, a cerca de quinhentas milhas da Terra Nova, em 15 de Agosto findo.
Numerosas pessoas das famílias dos náufragos e da equipagem do “Condestável” aguardavam no molhe de Leixões a entrada do navio, entregando-se a compreensíveis manifestações de alegria. Todos os homens regressaram de boa saúde e com esplêndido aspecto. Esperavam o navio os armadores do “Condestável”. Srs. José da Cunha Teixeira, também delegado do Grémio dos Armadores dos Navios da Pesca do Bacalhau do Porto, Fernando Moreira de Almeida, Domingos Pinto Ribeiro Gomes e Alberto de Sousa, engenheiro sr. João Teixeira de Queiroz, armador do lugre naufragado; Joaquim Maia Águas, chefe dos Serviços de Pescadores, do Grémio, e outras individualidades.
Cumpridas as formalidades legais, os jornalistas falaram com os pescadores do “Gaspar”, que lhes confirmaram as notícias vindas a público e esclareceram a maneira como morreu o pescador de Viana do Castelo, Salvador Gonçalves Vieira. Foi uma vaga gigantesca que varreu a ré do navio, já quase desmantelado, e levou esse pescador e mais doze companheiros da equipagem. A mesma vaga trouxe de novo estes últimos ao convés. O primeiro não voltou a aparecer.
Também relataram como o capitão Firmeza dirigiu um apelo ao “Gil Eanes”, visto estar com água aberta, e o sr. comandante Tavares de Almeida, chefe dos serviços de assistência à frota portuguesa, transmitiu esse apelo pela rádio, e solicitou às autoridades da Terra Nova que mandassem localizar o navio em perigo e lhe prestassem socorro, o que rapidamente foi feito. Três aviões duma base norte-americana levantaram voo e o navio-patrulha “Bibb” foi o primeiro navio a chegar junto do “Gaspar”.
Já então o mar estava menos encapelado. Mas o “Gaspar”, desmantelado, não tinha salvação. Os náufragos vieram para o cutter “Bibb”, numa jangada de borracha, rebocada por uma baleeira. Tanto no navio americano, como na base de Argentia Bay, na Terra Nova, e, depois, no transporte “Gil Eanes”, foram magnificamente tratados. Os pescadores não deixaram de manifestar a sua gratidão, por tal motivo.
Em St, John’s, o sr. comandante Tavares de Almeida mandou comprar roupas e calçado para todos. A bordo do “Condestável” também foram muito bem tratados e por esse motivo antes de desembarcar, apresentaram os seus agradecimentos ao sr. Capitão Manuel Guerra.
Toda a equipagem do lugre naufragado receberá, na integra, as percentagens do bacalhau pescado, tal como se o navio chegasse a porto de salvamento e, ainda o seguro das roupas que perderam.
Como, porém, não foi entregue o respectivo protesto às autoridades marítimas portuguesas, nem chegou a lista do navio que só virá dentro de dias, o sr. comandante Henrique Tenreiro determinou que fossem entregues dois mil escudos a cada um dos homens, antes do desembarque, além de lhes serem pagos os transportes e mais despesas até às localidades onde residem. Foi o sr. Maia Águas quem efectuou esse pagamento, logo depois da chegada do “Condestável”. A liquidação total será feita pela Mútua dos Armadores logo após a entrega do protesto e da lista do bacalhau que o navio conduzia para Portugal.
Os restantes náufragos são esperados a bordo do “Adélia Maria” e do “Coimbra”, que se calcula cheguem amanhã, e do “Rui Alberto”, navio onde viaja o capitão.
Os pescadores chegados ontem no “Condestável” e que já seguiram para as suas terras, são os seguintes:
Albertino Rodrigues Maio, Lírio Gonçalves Cascão, Francisco da Costa Marques, Francisco da Silva Fangueiro, e Abílio Gavina Ribeiro, todos de Vila do Conde; José da Agonia Cruz e Manuel da Conceição Silva, da Póvoa de Varzim: António Fernandes Júnior e José Emílio, da Fuzeta: Domingos Fernandes Fão, de Vila Praia de Âncora; e Fernando Gavina, de Lisboa.
(In jornal “Comércio do Porto”, sábado, 16 de Outubro de 1948)

1 comentário:

Unknown disse...

Neste barco morreu ó meu pai