quarta-feira, 29 de abril de 2015

Pesca do bacalhau


Conversas improváveis! (I)
O “Paços de Brandão”, que chegou, ontem, dos bancos da Terra Nova, aguarda, em frente do cais, que lhe aliviem o porão dos 3.000 quintais de bacalhau, que muitos provarão, mais tarde, com certeza… E o moço da câmara e o moço do convés, companheiros de lufa e bons amigos, olham o Douro que cintila e esperam, ansiosos a hora do regresso à terra natal, onde elas os esperam, tão fiéis como o fiel amigo…

Em busca do “fiel amigo”…
O primeiro lugre que voltou da Terra Nova e o que conta Samuel Sacramento Salvadorinho, moço de câmara, que conhece os «bancos», o bacalhau e a pescaria como os seus dedos tisnados…

Quatro horas da tarde, em Massarelos, frente ao rio. O Douro cintila. Parece uma chapa metálica, pintada de azul escuro, manchada, aqui e ali, de borrões mais claros, mais sombrios.
- Deve ser aquele…
É. De longe, do cais, em que o vulto sonolento dum guarda-fiscal põe uma vaga nota de fronteira, o barco parece enterrado no rio.
Deve estar carregadíssimo. E no casco, de que só emerge muito pouco, estão bem impressos, bem flagrantes, bem nítidos, os sinais de derrota longa, por águas salgadas e violentas.


Um caíque põe-nos a bordo, num ápice. Uma escada de corda, muito curtida pelo mar, muito poída pela serventia.
- Está alguém a bordo? Quem daí pode falar connosco?
Duma trincheira de barquitos, erguida a meio do lugre, irrompe um rapagão crestado, tresandando a maresia e bramindo:
- Pronto!
E a conversa começa, sem outro preâmbulo que não seja o de defender o nariz, por um momento, do odor fortíssimo que sobe do porão e invade toda a coberta…
O lugre chama-se “Paços de Brandão”. Pertence à praça do Porto e ao armador Silva Rios.
Foi o primeiro a regressar dos bancos da Terra Nova, atulhado de bacalhau – e eis a origem de tanta curiosidade. Chegou, ontem, em frente a Massarelos, fundeadouro clássico dos lugres que vão, todos os anos, para a faina da pescaria.
O capitão, - um verdadeiro lobo do mar, na frase do rapagão crestado que nos fala – chama-se João Francisco Bichão e é natural de Ílhavo, terra de pescadores, de alguns dos melhores pescadores de Portugal. O piloto dá pela graça de João Pereira Campos e é de Ílhavo, também. O contra-mestre, Humberto Grilo, nasceu na mesma terra. Todos os altos comandos deste comprido navio de três altos mastros, que está cheio como um ovo, estão entregues a ilhavenses. É Ílhavo que dita, ali dentro, a lei.
- E você de onde é?
Samuel Sacramento Salvadorinho, o rapagão de botas altas e camisa de quadrados à escocesa que temos pela proa, responde, com um gesto largo, que tem o seu quê de glorioso, de triunfante, de épico:
- Eu cá sou de Ílhavo, também!
- E o resto da companha?
- É consoante… Alguns são de Setúbal. É, também, temos algarvios, mas a maior parte é de Ílhavo!
- Quantos são, ao todo?
- 28, com os oficiais, comigo e, aqui, com o João São Marcos – e amigo Samuel levanta a dextra até ao pescoço do único companheiro de bordo que está presente, que é moço do convés, que tem 22 anos de idade e que tem o carão mais sardento e o ar mais marítimo deste mundo.
E o Samuel continua, sacudido de voz como todo o marujo que se preza, a esclarecer quanto à vida de bordo e à actividade da tripulação.
Partiu o “Paços de Brandão” em 19 de Maio, do mesmo sítio em que está, agora, ancorado. Ao cabo de 12 dias de mar bom chegava ao banco. Por ali se demorou, na lufa da pesca, até 4 deste mês (Setembro). E ei-lo que está de volta, ao fim de uma viagem tão calma como a de ida. Pomos umas reticências, que não chegam a ser interrogação:
- Para cá levou mais dias…
- Pois… É que vinha carregadinho! Nestes quatro meses de mar o “Paços de Brandão” não perdeu tempo.
- Quantos quintais trazem, aí dentro?
- O Samuel Sacramento Salvadorinho, que não tem papas na língua, grita, simplesmente:
- Coisa para 3.000!
E o São Marcos, que lembra certas figuras de certas histórias nórdicas, corrobora, do lado, enterrando mais o gorro de lã que o viu limpar, durante meses, o convés encardido:
- Deve ser isso.

Foto do lugre "Paços de Brandão"
Imagem de autor desconhecido

Depois, quando a informação cronológica e mercantil está esgotada, o Samuel fala, mais pachorrentamente, da vida, das coisas, dos prazeres e das tristezas de bordo.
Quando não pescavam, passavam à brisa – a brisa é o tempo de puro lazer – de papo para o ar, chalaceando, rindo, gozando a paz imensa do Atlântico, que é pitoresco, a valer, junto dos bancos…
Uma santa comunidade a daqueles homens que andavam à cata do fiel amigo. Comia-se e bebia-se, para ter forças. Se elas faltassem…
- Nunca foi preciso médico?
O Samuel sorri:
- Isso é coisa que não há. Se algum tem qualquer maleita, bota-se-lhe tintura de iodo.
Conformado:
- O mar é que é o médico. E se algum virar, borda fora…
Depois, conta como se faz a pesca. É uma descrição pormenorizada, dum grande relevo técnico, que enfadaria o leitor. Os pescadores saem naqueles barquitos que se empilham sobre o tombadilho e passam horas e horas, deitando a linha.
Se o peixe não cai, há ralho do capitão, pela certa. E o pescador, que é, sempre, brioso, que tem, sempre, o culto da sua profissão arriscada, faz tudo o que pode para marcar a sua posição, para se impôr, para ter jus ao louvor do capitão que se traduz – findo o prazo da matricula, em remuneração mais quantiosa.
- Quantos barcos ficaram?
- Para a Terra Nova foram 7. Não tardam aí…
E o Salvadorinho explica que os outros barcos vão para a Gronelândia, onde o peixe não falta e é muito bom, também.
Depois, como não há mais por onde segurar as escoras da conversa, o rapagão, tostado do sol que apanhou, no cruzeiro da pesca, anuncia que finda a descarga, irá para Ílhavo, a sua terra querida, onde o esperam dois olhos muito meigos que se perdem, todos os dias, na visão do mar largo…
- E, depois, até ao ano, que é que se faz?
- Nada. Está-se à boa vida… Em Maio, torna-se.
E anda nisto o Samuel, que desempenha as funções de moço da câmara, há dois anos bem puxados. Já navegou no “Funchalense”, um naviozito de carga que o iniciou na vida do mar.
- Gosta dessa vida?
- A gente afaz-se. Não há remédio… E sentou-se na amurada, olhando os batéis do bacalhau, frágeis como a vida de quem anda no mar. Do porão vinha, entretanto, o cheiro forte a peixe fresco… E o Douro continuava a cintilar, alheio a tudo aquilo…
(In jornal “Comércio do Porto”, sexta, 21 de Setembro de 1934)

Para o Grémio dos Armadores da Pesca do Bacalhau o Samuel Salvadorinho, que estaria nos próximos meses prestes a completar 100 anos, se por fortuna estivesse vivo, era antes de mais o Nº 1084, conforme consta na respectiva ficha, cuja cópia me foi gentilmente cedida pelo Museu Marítimo de Ílhavo.
Mas a realidade é distinta. O moço de câmara, tal lobo do mar retratado através do texto, revelou-se ser um elemento indispensável a bordo de todos os navios onde esteve embarcado, e foram vários durante muitos anos, tais como: 1936- lugre “Palmeirinha”, moço; 1938- lugre “Argus”, pescador; 1939/1940/1941- lugre “Creoula”, 1ª linha; 1942/1943/1944- lugre “Creoula”, especial; 1945- arrastão “Pedro de Barcelos”, maduro; 1946/1947/1948/1949/1959/1951- lugre “Creoula”, especial; 1952/1953- navio-motor “Capitão João Vilarinho”, especial e 1ª linha; 1954/1955- navio-motor “Conceição Vilarinho”, 1ª e 2ª linha; 1956/1957/1958- navio-motor “Capitão João Vilarinho”, 1ª e 2ª linha e 1959/1960- navio-motor “Neptuno”, 3ª linha.
Espero que esta história se recorde por muito tempo, brilhante exemplo de pescador, mas acima de tudo, permito-me ao direito de considerá-lo como um notável “homem do mar”.

domingo, 26 de abril de 2015

Memorativo da Armada


O torpedeiro "Liz"
1921-1934

O desarmamento do “Liz”
O velho torpedeiro “Liz”, que se encontra encalhado junto à carreira do Arsenal, onde estão a construir o aviso “Infante D. Henrique”, deve ficar dentro de um mês completamente despojado de todo o seu recheio aproveitável, que recolherá aos Depósitos de Marinha. O casco do navio será depois vendido em hasta pública, para sucata.
O “Liz” foi um dos torpedeiros recebidos como indemnização de guerra. Pertencia à esquadra austríaca e veio para Portugal com os outros, a reboque do navio de salvação “Patrão Lopes”. O “Liz” esteve então, como os três restantes que com ele vieram, largo tempo abandonado, até que o sr. comandante Pereira da Silva, quando ministro da Marinha, mandou aparelhar os navios e incorporou-os na esquadra.
Estes navios têm aprovado sempre bem, demonstrando uma velocidade apreciável – 30 milhas por hora – pecando apenas por terem um pequeno raio de acção.
O “Liz” fez parte da divisão que prestou honras ao largo da costa aos restos mortais do falecido rei D. Manuel II, aquando da sua vinda para Portugal, a bordo do cruzador inglês “Concord”.
Este navio é o primeiro, destes quatro, a ser desarmado, pois os restantes – “Ave”, “Mondego” e “Sado” – continuam ao serviço em condições satisfatórias.
(In jornal “Comércio do Porto”, quarta, 15 de Agosto de 1934)

Foto do torpedeiro "Ave", navio igual ao "Liz"
Postal da Marinha Portuguesa - minha colecção

O casco do torpedeiro “Liz” foi vendido em leilão
No Arsenal de Marinha foi hoje vendido em leilão o casco do torpedeiro “Liz”, que foi um dos navios recebidos como indemnização de guerra, após o armistício.
Presidiu ao acto o director dos Serviços Marítimos, sr. capitão de mar-e-guerra Monteiro de Macedo, tendo o casco sido comprado por escudos 25.509$00, pela União de Sucatas.
(In jornal “Comércio do Porto”, quinta, 4 de Outubro de 1934)

quinta-feira, 23 de abril de 2015

História trágico-marítima (CXLVII)


O afundamento do arrastão "Cabo de S. Vicente"

A 23 milhas da Ericeira, um avião desconhecido afundou
o vapor de pesca português “Cabo de S. Vicente”
Ante-ontem, de manhã, saiu de Lisboa, para a faina da pesca, o vapor “Cabo de S. Vicente”, que deslocava cerca de cem toneladas e pertencia à firma Sociedade Comercial Marítima Lda. Comandava-o o capitão sr José Atebrêdo de Morais e levava 18 homens de tripulação. Pouco depois das 18 horas, o “Cabo de S. Vicente” pairava a 23 milhas da Ericeira. Surgiu, então, um avião de nacionalidade desconhecida, que, após ter sobrevoado o navio durante algum tempo, começou por fazer contra ele uma rajada de metralhadora.
Este súbito ataque foi tomado pelos tripulantes do pesqueiro como um aviso para abandonar o navio e meteram-se, imediatamente, dentro de um escaler, dirigindo-se ao vapor “Açor”, da Companhia Portuguesa de Pesca, comandado pelo capitão sr. Samuel Marques Damas, que estava a pescar no local. Recolhidos a bordo, foram transportados para Lisboa, onde desembarcaram ontem, de manhã.
Do avião foram lançadas, ao mesmo tempo que isto sucedia, duas potentes bombas, de forma oblonga, que rebentaram a bombordo e a estibordo do “Cabo de S. Vicente”, provocando o seu afundamento tão rápido que os tripulantes não tiveram tempo de voltar para recolher os seus haveres. Os náufragos do pesqueiro desembarcaram, ontem, de manhã, no cais do Frigorífico de Santos, onde o “Açor” atracou.

Foto do arrastão "Cabo de S. Vicente", com legenda,
conforme está publicado no jornal "Comércio do Porto"

Este atentado, tão insólito como inexplicável, que nada justifica, levou à perda de mais uma unidade, embora de pequena tonelagem, da nossa Marinha de Pesca. Eleva-se, assim, a seis, o número de navios que o País já perdeu – quatro afundados por submarinos e dois por aviões – durante o actual conflito.
O novo atentado, revoltante manifestação de força, violência injustificável, não pode passar sem o nosso veemente protesto, tanto mais que foi praticado contra gente humilde, que não se podia defender e, confiadamente trabalhava pelo abastecimento da população.
A nossa posição de neutralidade, que tem sido cumprida escrupulosamente, tem de ser reconhecida e respeitada por todos os beligerantes, para que não tenhamos a lamentar qualquer outra agressão desta natureza.
(In jornal “Comércio do Porto”, quinta, 12 de Março de 1942)

Características do navio de pesca “Cabo S. Vicente”
1924-1942
Nº Oficial: 431-E - Iic: C.S.F.S. - Porto de registo: Lisboa
Armador: Sociedade Comercial Marítima, Lda., Lisboa
Construtor: Cochrane & Sons Ltd., Selby (Glasgow), 1910
ex “H.A.L. Russel”, P. & Haldanes Steam, Hull, 1910-1913
ex “Darracq”, Equitable Steam Fishing, Grimsby, 1913-1923
ex “Cabo Carvoeiro”, -?-, 1923-1924
Arqueação: Tab 269,48 tons - Tal 103,31 tons
Dimensões: Pp 39,86 mts - Boca 6,78 mts - Pontal 3,58 mts
Propulsão: Amos & Smith 1:Te - 3:Ci - 80 Rhp - 10 m/h
Equipagem: 18 tripulantes
Capitão embarcado: José Atebrêdo de Morais

Foto do navio de pesca "Alvôr", construído no mesmo estaleiro
em Selby, em data posterior, mas muito idêntico ao "C.S.Vicente"
Imagem retirada do excelente blog "Restos de Colecção"

O capitão do navio de pesca “Cabo de S. Vicente”, criminosamente afundado na passada terça-feira, a 23 milhas a noroeste do Cabo da Roca, esteve ontem novamente na Capitania do porto de Lisboa, para relatar o sucedido.
Os tripulantes do navio residentes na Ericeira e em Cascais chegaram ante-ontem mesmo às suas terras. Devem vir a Lisboa hoje, a fim de se avistarem com os armadores do navio sinistrado para saberem da sua situação.
Os prejuízos sofridos pela Sociedade Comercial Marítima, Limitada, foram importantes. O navio havia custado cerca de 1.500 contos, mas presentemente valia muito mais, dado o aumento do preço dos materiais. O “Cabo de S. Vicente” tinha, na altura do afundamento, seis redes de pesca, que valiam hoje cerca de 100 contos, com a agravante de não haver presentemente redes no mercado. Com o afundamento do vapor, são seis os navios portugueses metidos no fundo.
O primeiro foi o “Alpha”, da Sociedade Luso-Marroquina, em 22 de Julho de 1940; depois foi o “Exportador I”, da firma Novo Horizonte, em 1 de Junho do ano findo; o “Ganda” da Companhia Colonial de Navegação, em 20 de Junho; o “Corte Real”, da Companhia Carregadores Açoreanos, em 12 de Outubro, e o “Cassequel”, em 14 de Dezembro, pertencente também à Companhia Colonial de Navegação.
O ataque de agora ao “Cabo de S. Vicente” foi feito em condições totalmente diferentes dos que têm sido feitos aos outros navios portugueses. De todos os vapores nacionais afundados, só o “Alpha” foi atacado por um avião que varreu o navio a tiro de metralhadora. O “Cabo de S. Vicente” foi atacado com bombas magnéticas e quase simultaneamente metralhado.
Duas bombas caíram no mar, uma de cada lado do navio e a pequena distância. Enquanto as bombas eram atraídas pelo pesqueiro e rebentavam contra ele, o avião varria o convés, com o firme propósito, não só de destruir o navio, como de matar os seus tripulantes.
Por isso o capitão ainda ontem confessou às autoridades: «Não sei como conseguimos escapar. As balas caíam aos nossos pés!».
(In jornal “Comércio do Porto”, sexta, 13 de Março de 1942)

O afundamento do “Cabo de S. Vicente”
Uma nota da Embaixada Britânica
Dos serviços de imprensa da Embaixada Britânica foi recebido, com pedido de publicação, a seguinte nota:
«Com referência ao afundamento do navio português “Cabo de S. Vicente”, na tarde do passado dia 10, as autoridades navais britânicas de Gibraltar informam que nenhum avião inglês ou aliado se encontravam naquelas paragens nessa ocasião».
(In jornal “Comércio do Porto”, sábado, 14 de Março de 1942)

P.S.- Com a publicação do ataque aéreo, que ocasionou o afundamento do navio de pesca “Cabo de S. Vicente”, fica quase completa a transcrição e narração no blog dos seis navios abatidos, de acordo com a informação referida no texto.

terça-feira, 21 de abril de 2015

História-trágico-marítima (CXLVI)


O naufrágio do lugre " Ilda "
1934-1934

Encalhou o lugre “Ilda” à saída da barra de Aveiro
Aveiro, 13 – Hoje, na praia-mar, da manhã, quando o lugre “Ilda” carregado de sal, com 11 pés de calado, saía a barra rebocado pelo rebocador “Vouga”, um violento estoque de água lançou-o para um banco de areia a leste da barra, onde encalhou.
Este navio destinava-se aos Açores e pertencia ao sr. Daniel da Silva, de Angra do Heroísmo.
A barra mantém, como calado 17 pés.
A tripulação, que foi salva por barcos de pescadores, pertence à vila de Ílhavo, bem como o seu comandante, sr. António de Oliveira Abelha, e piloto o sr. José Russo.
O lugre estava seguro numa companhia inglesa e foi encalhar na praia, ao sul do farol de Aveiro. Foi perdido, também, um gasolina que se empregava no salvamento da tripulação do navio.
O lugre começa amanhã a desaparelhar, pois o casco considera-se perdido.
(In jornal “Comércio do Porto”, terça, 14 de Agosto de 1934)

O "Ilda" encalhado sobre o banco de areia
Foto de autor desconhecido - imagem do A.D. de Aveiro

Dia de romaria na barra para ver o navio encalhado, com escada a permitir o acesso fácil aos proprietários, tripulantes e seus familiares para eventualmente avaliar e ajuizar dos prejuízos. Muito provavelmente terá sido, também, o tempo e a oportunidade da tripulação, para recuperar os equipamentos e as bagagens deixadas a bordo.

Características do "Ilda"
Armador: Daniel da Silva, Angra do Heroísmo
Nº Oficial: B-221 - Iic: N/s - Registo: Angra do Heroísmo
Construtor: António Dias dos Santos, Fão, 04.1906
ex “Argonauta”, Soc. Nacional Pescarias, Lisboa, 1906-1921
ex “Argonauta”, Soc. Argonauta, Lda., Aveiro, 1921-1926
ex “Elzira”, Soc. de Navegação e Pesca, Aveiro, 1926-1934
Arqueação: Tab 225,27 tons - Tal 189,30 tons
Dimensões: Pp 36,75 mts - Boca 8,40 mts - Pontal 3,47 mts
Propulsão: À vela
Capitão embarcado: António de Oliveira Abelha

Foto do encalhe do "Ilda" de autor desconhecido
Imagem (c) da colecção de Francisco S. Cabral

Em Aveiro – O encalhe do lugre “Ilda”
O lugre português “Ilda”, da praça de Angra do Heroísmo, encalhou num banco de areia, pelo sul do farol de Aveiro. O encalhe deu-se, no dia 13 do corrente, quando o lugre saía aquela barra a reboque do rebocador “Vouga I”, tendo o sinistro sido provocado por um estoque de água.
(In jornal “Comercio do Porto”, quinta, 16 de Agosto de 1934)

domingo, 19 de abril de 2015

A primeira escala do "Almirante Saldanha"


Navio-escola da marinha brasileira
O navio-escola da marinha brasileira “Almirante Saldanha”, que chega ao Tejo no dia 30, deve atracar à muralha de Alcântara.
(In jornal “Comércio do Porto”, sábado, 28 de Julho de 1934)

Navio-escola brasileiro
O navio-escola da Marinha de Guerra Brasileira “Almirante Saldanha” é esperado no Tejo pelas 19 horas de amanhã. O sr. ministro da Marinha, em seu nome e da corporação da Armada oferece ao comandante e oficiais do navio brasileiro um chá no Palácio Hotel do Estoril e no Luna-parque realizar-se-à uma festa de confraternização entre praças da nossa armada e as daquele navio.
(In jornal “Comércio do Porto”, terça, 31 de Julho de 1934)

Navio-escola "Almirante Saldanha", em 1934
Foto de autor desconhecido - Imagem Photoship.Uk

O navio-escola brasileiro “Almirante Saldanha” fundeou
hoje no Tejo, sendo saudado pela marinha e pela aviação
Está desde hoje no Tejo o navio-escola da armada brasileira “Almirante Saldanha”, que vem a Lisboa em visita oficial saudar o governo português, em nome do governo do Brasil.
Catorze anos depois da última estada no Tejo de um navio de guerra brasileiro, o navio-escola “Almirante Saldanha” vem retribuir visitas de navios da armada portuguesa a terras de Santa Cruz e fá-lo em circunstâncias especiais, duplamente honrosas para o país: vindo de Inglaterra, onde acaba de ser construído, visita Portugal antes da sua própria Pátria.
Pouco depois do meio-dia a mastreação alta do elegante navio – que se assemelha à “Sagres” – denunciava o seu avanço rumo a Cascais. Pintado de branco a rigor, o “Almirante Saldanha” oferecia, na verdade, um belo aspecto, singrando vagaroso para a baía e ostentando no penol uma grande bandeira verde e amarela do Brasil.
Não vinha à vela, mas com o auxílio dos seus motores. Entretanto saía a barra, com rumo feito ao navio brasileiro o torpedeiro “Mondego”, que ia levar aos marinheiros do “Almirante Saldanha” a primeira saudação da armada portuguesa.
O encontro dos dois navios deu-se ao largo de Cascais. O “Mondego” passou pela popa do navio brasileiro e com a guarnição alinhada em continência foi dar-lhe escolta por estibordo. No convés do “Almirante Saldanha” alinhou também a guarnição e uma luzida guarda de honra de marinheiros envergando jaquetões vermelhos, calças e barretes brancos. A charanga de bordo executou os primeiros acordes dos hinos português e brasileiro.
O navio-escola brasileiro, depois de meter piloto, tomou o rumo da barra, escoltado até ao enfiamento pelo torpedeiro português. Um hidro-avião do Bom Sucesso voava a pouca altura, em curiosas evoluções, saudando também os marinheiros do Brasil.
O “Almirante Saldanha” entrou a barra pelas 13 horas e salvou com 21 tiros em frente de Belém, respondendo-lhe o forte do Bom Sucesso. Uma vez nas alturas de Alcântara, guinou em direcção ao cais do Ginjal, indo então busca-lo o rebocador “Cabo Sardão”, que o trouxe para dentro da doca. À entrada ali, a guarnição brasileira foi saudada pelos seus camaradas portugueses do aviso “Cinco de Outubro” e do transporte “Gil Eanes”, que se encontravam atracados à muralha norte.
Depois do navio ter atracado, entrou a bordo um secretário da embaixada do Brasil, tendo trocado impressões com o comandante Sílvio Noronha acerca dos cumprimentos oficiais e outras solenidades. Cerca das 17 horas o comandante do navio brasileiro desembarcou, dirigindo-se à embaixada do seu país, onde saudou o sr. dr. Guerra Duval, que ao fim da tarde irá a bordo retribuir a visita.
Do programa de festas em honra da armada brasileira constam: um chá no Estoril, oferecido pelo sr. ministro da Marinha, em seu nome e no da armada portuguesa, uma recepção na embaixada do Brasil e outra a bordo do “Almirante Saldanha” e uma festa no Luna-parque, de confraternização entre marinheiros portugueses e brasileiros.
A oficialidade brasileira deporá uma coroa no monumento aos Mortos da Guerra e irá a Belém saudar o sr. Presidente da República, se o estado de saúde do sr. general Carmona lhe permitir conceder audiência.
Depois de amanhã o sr. embaixador do Brasil vai a bordo do “Almirante Saldanha” retribuir cumprimentos ao sr. comandante Sílvio Noronha. Na quinta-feira o sr. embaixador do Brasil oferece no Palácio da Embaixada um jantar em honra do comandante do navio.
O chá dançante que o sr. ministro da Marinha oferece ao comandante e oficiais do “Almirante Saldanha” realiza-se sexta-feira, tendo a sociedade do Estoril comunicado que manda pôr à disposição dos convidados e do sr. ministro um comboio especial com 250 lugares e oferece também aos mesmos convidados um «Porto de Honra», no Tamariz e à noite oferecerá um jantar à americana.
(In jornal “Comércio do Porto”, quarta, 1 de Agosto de 1934)

Navio-escola “Almirante Saldanha”
O comandante e o imediato do navio-escola brasileiro “Almirante Saldanha”, estiveram hoje no Ministério da Marinha a apresentar cumprimentos de despedida ao ministro e mais autoridades da marinha.
(In jornal “Comércio do Porto”, terça, 7 de Agosto de 1934)

sexta-feira, 17 de abril de 2015

História trágico-marítima (CXLV)


O encalhe do paquete "Ruy Barbosa"
Conclusão

Paquete “Ruy Barbosa”
O mar apresentou-se, ontem, com alguma ondulação, devido ao vento fresco que se fez sentir, dificultando um pouco a descarga da mercadoria do “Ruy Barbosa”, pois junto ao vapor fazia alguma ressaca. Contudo, ainda foram descarregadas bastantes mercadorias e transportadas para o porto de Leixões.
Conforme previamente noticiado, o vapor considera-se completamente perdido e entregue à inclemência do mar, que se encarregará de destruir, depois de serem retiradas todas as mercadorias que sejam possíveis de descarregar, bem como todos os apetrechos de bordo.
O salvadego dinamarquês “Geir” levantou ferro, ontem, de Leixões, pelas 8 horas da manhã, com destino a Gibraltar, visto os seus serviços não serem precisos para o salvamento do navio, por se tornarem dispendiosos.
Toda a tripulação do paquete “Ruy Barbosa” foi, ontem, ouvida na 3ª. secção da 1ª. vara, de que é chefe o sr. escrivão Teixeira, acerca do encalhe do navio, para efeito do protesto marítimo. Interveio nessa diligência o sr. dr. António Pinheiro Torres.
(In jornal “Comércio do Porto”, sexta, 10 de Agosto de 1934)

O paquete "Ruy Barbosa" no porto de Vitória, Brasil
Foto da colecção do sr. Edson de Lima Lucas

Ainda o encalhe do “Ruy Barbosa”
A descarga deste vapor foi activada, desde ante-ontem de tarde, pela montagem de uma nova caldeira geradora de vapor para os guinchos, devido à que estava a bordo não poder accionar os mesmos sem grandes interrupções.
Também a bomba de esgoto, que está a operar no porão nº 2, de acordo entre os representantes do Lloyd Brasileiro e o sr. Júlio Pinto, da firma Garland, Laidley & Cª., Lda., foi mudada para a amurada de estibordo do referido porão, porque a inclinação do navio sobre esse lado, juntava ali água, a qual foi ontem esgotada, ficando o porão nº 2 enxuto e a carga descoberta.
Devido, também, à potente caldeira da firma Abel Martins Pinto & Cª., que foi colocada a bordo do “Ruy Barbosa”, os serviços de descarga da mercadoria que constitui um Luna-Parque, que seguia para o Rio de Janeiro, tem decorrido normalmente. Ontem, já seguiram do paquete para o porto de Leixões, duas barcaças com diverso material do referido Luna Park, com o peso de 14 toneladas. A dirigir estes serviços tem estado os srs. Abel Martins Pinto e Armando Saldanha, que tem permanecido a bordo, visto o interesse que demonstraram em salvar todo esse equipamento, que não estava no seguro.
Tem-se notado muitíssimo o incremento que tomou, há 3 dias, a operação da descarga, apesar da dificuldade que o pessoal da estiva tem para trabalhar. O sr. António Costa, mestre estivador, tem posto à prova a sua competência e prática nestes serviços, motivo porque tudo está a ser feito com a ordem, que tais casos requer, o que muito concorre para a descarga ser mais rápida.
(In jornal “Comércio do Porto”, Domingo, 19 de Agosto de 1934)

Ainda o encalhe do “Ruy Barbosa”
Um esclarecimento
Foi recebida uma carta da agência no Porto da Companhia Lloyd Brasileiro comunicando que, de acordo com a declaração da firma Abel Martins Pinto & Cª., a permanência a bordo de qualquer sócio desta firma se destina a fiscalizar o seu pessoal, para o bom funcionamento da caldeira alugada.
Esclarece, ainda, a carta da agência da Companhia Lloyd Brasileiro, que todos os trabalhos de direcção têm sido levados a efeito pelo sr. F. Schmidt, estimado agente geral daquela Companhia, que se constitui o único salvador.
(In jornal “Comércio do Porto”, terça, 21 de Agosto de 1934)

Ainda o encalhe do “Ruy Barbosa”
Foram suspensos os trabalhos de descarga
Comentários do agente geral do Lloyd Brasileiro
O mar, nestes últimos dois dias, apresentou-se um tanto alterado, o que motivou a suspensão dos serviços a bordo do paquete “Ruy Barbosa”, para salvamento da carga que conduzia.
Num encontro agendado com o sr. F. Schmidt declarou:
- «A meu ver, desde o primeiro momento considerei o navio como perdido; pois, se tecnicamente o seu salvamento seria possível, como ainda é, não é cabível praticamente em função da soma que teria de dispender-se para o navio ser arrancado dos rochedos, no estado em que se acha, e pô-lo em condições de navegabilidade. Certamente importaria numa despesa que, por si, não compensaria esse sacrifício. Mais, os preços correntes dos navios com a idade do “Ruy Barbosa”, ou mesmo os preços correntes de navios já usados e com capacidade idêntica àquele paquete, com uso muito menor do que o dele, são de molde a confirmar o meu ponto de vista.
Nestas circunstâncias, deve-se continuar a salvar tudo quanto fôr possível (carga e apetrechos do navio), tal como vem sendo feito desde as primeiras horas. Quanto ao casco, devo esclarecer que o navio não está no seguro e, sendo assim, teremos de depender das instruções que a sede da Companhia se servir passar.
Pela minha parte, estou satisfeito com o serviço de salvamento das mercadorias. Acho mesmo que, se se atender de um modo geral às condições do sinistro, seria impossível fazer-se mais do que tem sido feito. Eu, entretanto, como salvador, posso com toda a segurança afiançar que as cargas, que respondem pelas despesas de salvamento, serão, segundo os meus cálculos, sobrecarregados de uma parcela tão pequena, que talvez não tenha até hoje havido um exemplo tão frisante, quanto ao deste, no que diz respeito ao escrúpulo em matéria de salvamento.
Tudo isto resulta de um sinistro, que se deve unicamente aos caprichos ou fortuna do mar. Se não fosse bastante a fé de ofício do sr. comandante Floquet – 22 anos de serviço à Companhia, sendo 17 anos ininterruptos de comando, sem nunca ter registado uma única avaria; se não fosse a demonstração dada com a ordem que houve no desembarque de passageiros, tripulantes, suas bagagens e malas do correio, logo ao primeiro momento; se não fosse bastante, ainda, a demonstração espontaneamente fornecida por todos os passageiros das precauções que notaram e que foram tomadas pelo comando do navio, antes do sinistro: seria mais que suficiente a declaração pública feita pelo sr. capitão do porto, no dia seguinte ao do desastre, de que o nevoeiro era denso quando se deu o encalhe.
Quero neste quadro agradecer as atenções e facilidades concedidas por parte das autoridades e da alfândega, dentro da medida do possível, estando muitíssimo grato por tudo quanto tem sido feito em favor do Lloyd Brasileiro».
Notas
- O rebocador “Mars II”, na noite de Domingo para segunda-feira, conduziu para a bacia de Leixões o comandante do “Ruy Barbosa”, dois guardas-fiscais e dois marítimos do Mindelo, bem como o barco destes.
- Se o mar o permitir, hoje recomeçarão as operações de descarga e simultaneamente o esgotamento que fôr aconselhável dos porões, que tenham agora metido água devido à violência do mar.
(In jornal “Comércio do Porto”, quarta, 22 de Agosto de 1934)

O "Ruy Barbosa" no local do encalhe com a proa alquebrada
Foto da minha colecção

Ainda o encalhe do “Ruy Barbosa”
Devido à alteração do mar nestes últimos dias, as vagas embatendo contra o paquete “Ruy Barbosa”, encalhado em frente a Pampelido, originou alquebrar um pouco a proa do vapor, conservando-se, contudo, na mesma posição. Esse alquebramento mal se nota, pouco prejudicando o navio.
A impetuosidade do mar obrigou à paralisação dos trabalhos de descarga de mercadorias e inundou mais o porão nº 2, donde foi retirada quase toda a carga que continha, faltando, apenas, retirar quatro vagões do Luna-Parque, para que fique vazio.
Ontem, procederam ao escoamento da água que novamente inundou aquele porão, tendo trabalhado a caldeira que movimentava duas bombas de escoamento do lado de estibordo. Após o escoamento, irão proceder à retirada do restante material do Luna-Parque, serviço que deve ser efectuado hoje.
Toda a carga boa que se encontrava no paquete encalhado já foi retirada, bem como muito material de bordo. A outra carga existente nos cinco porões inundados será retirada logo que seja possível, estando, contudo, já salva a carga que existia nas cobertas daqueles porões.
Os serviços de salvamento da carga tem sido esplêndidos, dada a rapidez como eles se têm efectuado, não só pela quantidade de mercadoria que já foi retirada, como pela distância a que o “Ruy Barbosa” se encontra do porto de Leixões – cerca de 3 milhas.
Muito do material do Luna-Parque, que se destinava ao Rio, bem como material do navio encalhado seguiu, ante-ontem, para aquela cidade do Brasil, a bordo do paquete “Almirante Alexandrino”, estando-se a proceder à organização do embarque da restante carga, que foi salva e que está em boas condições.
Junto do “Ruy Barbosa” tem-se conservado o rebocador “Mars II”, que serve de vigia ao navio e reboca as lanchas com a mercadoria salva para o porto de Leixões.
Se o mar o permitir, prosseguirão os trabalhos de salvamento da restante carga que está a bordo, com a mesma intensidade como até aqui, visto ter sido de molde a merecer os mais rasgados elogios pela rapidez como foram executados, sem exigências de mais ou melhor.
Ontem, o “Ruy Barbosa” foi bastante fustigado pelas vagas, tendo o navio com surpresa vindo a resistir muito à força do mar.
(In jornal “Comércio do Porto”, quinta, 30 de Agosto de 1934)

O naufrágio do “Ruy Barbosa”
A Companhia Lloyd Brasileiro, de acordo com as autoridades brasileiras, a União Internacional Marítima, de Berlim; o Verein Hamburger Assurance, e os comités dos Lloyds de Londres e Paris, encarregou o regularizador de avarias sr. Manuel Fontes, de tratar do caso do paquete “Ruy Barbosa”, pertença daquela empresa e que se perdeu num naufrágio, próximo a Leixões.
(In jornal “Comércio do Porto”, quinta, 18 de Outubro de 1934)

O paquete “Ruy Barbosa” começou a ser desfeito pelo mar,
sendo grande a quantidade de madeira arrojada à praia.
Foi anulada a arrematação do casco e morreu, já, o gato de bordo.
O “Ruy Barbosa”, o explêndido paquete do “Lloyd Brasileiro” há meses encalhado à vista da praia de Pampelido, continua à merce da impetuosidade do mar, sem que, desde o dia 1 deste mês tenha podido ir a bordo o pessoal, a fim de continuar os trabalhos encetados para o seu desmantelamento.
Devido aos recentes temporais, o belo paquete foi fortemente batido pelo mar, que o partiu a meio, junto à ponte de comando, numa das últimas noites.
A proa ficou mergulhada em parte, com grande inclinação e sensivelmente separada da outra parte do paquete, que se conserva na posição tomada aquando do encalhe.
Agora é o “Ruy Barbosa” atravessado de lado a lado pelas vagas, sendo considerável a quantidade de madeira arrancada ao seu interior, e que, à mistura com carvão, tem sido arrojado à praia.
Resistindo a tudo, a mastreação e a ponte de comando ainda se conservam nos seus respectivos lugares, o que é para admirar.
***
Em Pampelido foi construído um barracão para resguardo do que o mar arroje à praia, estando os salvados sob a vigilância da guarda-fiscal.
***
No paquete viajava um gato, ao que parece pertença do pessoal de bordo. Deu-se o encalhe. Passageiros e tripulantes fizeram o desembarque, trazendo para terra a bagagem e tudo mais que lhes pertencia.
No entanto, apesar da tragédia o gato foi abandonado, como coisa inútil, talvez esquecido nas primeiras horas de nervosismo por quem com ele tantas viagens tinha feito. E o gato, por estar já habituado a viver em casa flutuante, deixava-se amimar pelas pessoas que procediam ao salvamento da carga e dos restos do paquete, mas fugia sempre quando pretendiam trazê-lo para terra.
O seu corpo foi há dias arrojado à praia, tendo morrido de fome por a bordo não ir pessoa alguma, durante quase um mês, levar-lhe o alimento necessário. Foi a única vítima do naufrágio...
***
Na oportunidade dá-se conhecimento que a arrematação do casco do “Ruy Barbosa” foi anulada pelas instâncias competentes, por estar pendente dos tribunais uma reclamação.
Segundo consta, os arrematantes, considerando-se prejudicados, vão propor no respectivo tribunal uma acção por perdas e danos.
(In jornal “Comércio do Porto”, Domingo, 30 de Dezembro de 1934)

segunda-feira, 13 de abril de 2015

História trágico-marítima (CXLV)


O naufrágio do paquete "Ruy Barbosa"
2ª Parte

Ainda o encalhe do “Ruy Barbosa”
Continua a ser do interesse geral o encalhe do paquete “Ruy Barbosa”, pois à praia de Pampelido (Mindelo) tem afluído muitas pessoas, não só dos lugares próximos, como do Porto, que se transportam em automóveis, a fim de presenciarem o vapor encalhado.
As pessoas, ontem, conservaram-se na praia muito tempo na eventualidade de assistir a qualquer ocorrência, que pudesse surgir ao “Ruy Barbosa”, em virtude do mar apresentar maior ondulação. No entanto, os trabalhos para salvamento do diverso recheio do vapor puderam prosseguir durante o dia. E assim, foi possível retirar do interior do “Ruy Barbosa” vários utensílios de bordo, no valor de centenas de contos, tais como: pratas, mobiliário, ventoinhas, trens de cozinha, etc.
À noite, apenas ficaram a bordo o comandante e o imediato do vapor, um criado e um marinheiro. Os rebocadores que tem rebocado as barcaças com aqueles valores, foram o “Tritão” e o “Mars II”, tendo o salva-vidas a motor “Carvalho Araújo” feito a devida assistência aos tripulantes que, até ontem, à tarde, se conservavam a bordo e que, depois retiraram para Leixões, com ordem das autoridades marítimas.
Quanto à carga, aparte os volumes de certa importância e as malas do correio, que vinham no porão nº 1, nada mais foi descarregado, prosseguindo hoje, caso o mar permita, esses trabalhos. Além das barcaças com carga que o rebocador “Mars II” rebocou para Leixões, trouxe mais sete escaleres pertencentes ao “Ruy Barbosa”. Quando trazia estes escaleres a reboque, próximo da entrada de Leixões, rebentaram as amarrações de seis destes escaleres, ficando os mesmos à mercê da ondulação do mar, até que foram apanhados pela lancha-motor “Pátria”, que depois os rebocou, para dentro do porto.
Quanto ao outro escaler, que o “Mars II” ainda tinha a reboque, ao entrar no porto de Leixões voltou-se, seguindo submerso até ao porto de serviço.
O capitão do rebocador de alto mar “Cabo Raso”, que tinha vindo para colaborar nos trabalhos que fossem necessários ao salvamento do paquete, declarou ser esse salvamento impossível, não só devido aos rombos que o navio sofrera, como, ainda, à abundância de água que se conserva nos porões e casa da máquina, e que as bombas seriam impotentes para a esgotar.
No entanto, são ainda esperados os vapores salvadegos dinamarquês “Gier” e alemão “Seefalke”, para ser ouvida a opinião dos seus capitães, bem como a chegada de Lisboa de um engenheiro, a fim de passar uma vistoria ao vapor encalhado.
Outras notas
- A Companhia Lloyd Brasileiro resolveu que os passageiros que transitavam no “Ruy Barbosa” aguardassem nos hotéis e pensões, onde estão hospedados, a chegada do vapor “Cuyabá”, da mesma Companhia que deve chegar a Leixões, no dia 13 do corrente, a fim de prosseguirem viagem nesse vapor. E, aos passageiros que em Leixões deviam embarcar no “Ruy Barbosa”, com destino aos portos do Brasil lhes fosse dado um subsídio para poderem regressar às suas terras, onde aguardarão a chegada desse mesmo vapor.
- O posto de socorros, que a Cruz Vermelha montou na praia de Pampelido, já retirou do local por ali ser desnecessário. Apenas se conserva ainda, o cabo de vai-vem que foi montado pelos Bombeiros Voluntários de Matosinhos-Leça, estando lá um piquete de prevenção.
- O vapor que guinou um pouco para estibordo, apesar do mar se ter alterado um pouco durante o dia, não modificou a sua inclinação.
(In jornal “Comércio do Porto”, sexta, 3 de Agosto de 1934)

O "Ruy Barbosa" numa escala anterior em Leixões
Bilhete postal - Minha colecção

O encalhe do “Ruy Barbosa”
Não se deu qualquer modificação na posição do paquete
Os trabalhos de descarga – Conferências a bordo – Outras notas
Conferências a bordo
Chegou na madrugada de ontem a Leixões, o salvadego dinamarquês “Gier”, que veio para prestar auxílio. O capitão deste salvadego, acompanhado do capitão do porto de Leixões, sr. Pais do Amaral foi num gasolina a bordo do “Ruy Barbosa” e, após ter conferenciado com o capitão daquele paquete e, ainda, depois de ter verificado estar aquele paquete em más condições de se salvar, o que justificou, assim, a opinião mantida dos técnicos portugueses desde o seu encalhe, tendo retirado para Leixões para bordo do seu barco. Mais uma vez se confirma que o “Ruy Barbosa” está completamente perdido. No entanto é ainda aguardada a chegada do salvadego alemão “Seefalk” para ser ouvida, também, a opinião do seu comandante.
Várias notas
- Pelas 4 horas e meia da tarde, de ontem, os Bombeiros Voluntários de Matosinhos-Leça que se tem conservado na praia de Pampelido desde terça-feira última, dia do encalhe, e como vissem que já não era precisa a sua permanência ali retiraram o cabo de vai-vem e as espias que tinham sido lançadas para o paquete. - De noite, junto ao “Ruy Barbosa”, ficaram os rebocadores “Tritão” e “Mars II”, a fim de prestarem assistência caso seja necessária.
(In jornal “Comércio do Porto”, sábado, 4 de Agosto de 1934)

O encalhe do paquete “Ruy Barbosa”
O vapor mantém-se na mesma posição
Prosseguiram, ontem, os trabalhos de descarga das mercadorias
Outras notas
Muito tem contribuído para que o “Ruy Barbosa” não tenha sofrido mudança de posição, o facto do mar se apresentar bastante sereno. Mesmo no enchimento das marés, que ocasiona muitas vezes uma certa alteração do mar, não se tem registado grande ondulação das águas, o que muito tem beneficiado o “Ruy Barbosa”, que não se mexe do lugar onde encalhou. Essa circunstância tem permitido fazerem a descarga de muitas mercadorias que o vapor transportava. A bordo do paquete, já não existe quase nada do seu mobiliário, haveres e utensílios, pois já foi tudo retirado.
Ontem, procederam à recolha das canalizações mais importantes, que foram postas a salvo. A bordo já não existem os tanques de água, que eram utilizados para o fornecimento das comidas e para outros serviços dos passageiros e da tripulação. A água agora é fornecida de terra. Prosseguiram, ontem, normalmente, os trabalhos da descarga das mercadorias, que foram transportadas em barcaças para Leixões, e que eram rebocadas, ora pelo rebocador “Tritão”, ora pelo “Mars II”, empregando-se todo o dia nesse serviço.
Para que pudessem ser retiradas do navio as mercadorias mais pesadas, foram colocadas no convés do vapor, duas gruas que movimentavam os guindastes de bordo. Essas gruas pertencem à Administração dos portos do Douro e Leixões, tendo, ontem, funcionando uma delas, que prestou relevantes serviços, tornando-os menos morosos. Além disso, braçalmente, foi continuada a ser feita a descarga das mercadorias mais leves.
Mercadorias há que já não se podem aproveitar, pois encontram-se no porão nº 1, que está completamente inundado. Entre essas mercadorias contam-se aparelhos de rádio e dois automóveis, bem como sedas, fazendas, etc. Hoje, Domingo, prosseguirão os trabalhos de descarga das mercadorias, começando esse serviço de manhã cedo.
Ontem, a afluência de gente à praia de Pampelido, ainda foi grande, sendo que no dia de hoje também ali acorram numerosas pessoas para presenciarem o navio.
(In jornal “Comércio do Porto”, Domingo, 5 de Agosto de 1934)

Paquete “Ruy Barbosa”
É a mesma a situação do vapor – Chegada do salvadego alemão
Os trabalhos de descarga de mercadorias prosseguem normalmente
Depois da leve inclinação para estibordo do paquete “Ruy Barbosa”, não se deu qualquer alteração na sua posição, atendendo às circunstâncias do mar se ter mantido calmo, até à presente ocasião.
Deu entrada no último Domingo, à tarde, para a bacia do porto de Leixões, o salvadego alemão “Seefalke”, procedente de Bremerhaven, e que já, há dias, era aguardado a fim de ser ouvida a opinião do seu comandante, sr. Reents, sobre a possibilidade de salvamento do “Ruy Barbosa”. A meio da tarde, de ontem, aquele senhor dirigiu-se, num barco a gasolina, a bordo do paquete no sentido de averiguar da gravidade das avarias sofridas aquando do seu encalhe.
Ao fim da tarde, porém, regressava a Leixões, sem ter, contudo, tornada pública a sua opinião, que, no entanto, é ansiosamente aguardada por todos aqueles que se interessam pela sorte do vapor.
Os trabalhos de salvamento da carga, existente nos porões não inundados, têm continuado normalmente, tendo de lá sido retirada grande quantidade das mercadorias, no valor de alguns milhares de escudos. O mar continua a favorecer estes trabalhos e a poupar o vapor encalhado.
No transporte das barcaças com as mercadorias retiradas do “Ruy Barbosa”, continuam a ser utilizados os serviços do rebocador “Mars II” e da lancha-motor “Pátria”, deixando o rebocador “Tritão” de prestar esses serviços, bem como o salva-vidas “Carvalho Araújo”.
No Domingo, acorreu numeroso público à praia de Pampelido, a fim de presenciar o navio encalhado, contando-se em centenas as pessoas que afluíram ao local, vendo-se vários grupos com merendeiros. Ao fim da tarde, a chuva que caiu fez dispersar todas essas pessoas, depois de uma boa molhadela.
(In jornal “Comércio do Porto”, terça, 7 de Agosto de 1934)

Ainda o encalhe do “Ruy Barbosa”
Prosseguiram ontem, os trabalhos da descarga do “Ruy Barbosa”, que foram dificultados, devido à forte ondulação do mar. Apesar disso, ainda procederam à remoção de bastante mercadoria para Leixões, que foi transportada nas barcaças rebocadas pelo “Mars II” e pela lancha-motor “Pátria”.
Os salvadegos dinamarquês “Gier” e alemão “Seefalke”, que estão ancorados em Leixões, ainda não procederam a qualquer trabalho para safarem o “Ruy Barbosa”, do local onde está encalhado. Segundo consta, esses serviços ficariam tão dispendiosos, que não valeria a pena realizá-los, em função das despesas que já foram feitas, pela perda das mercadorias que estão nos porões inundados, que ascendem a algumas centenas de contos, e também pelas grandes reparações que o vapor precisaria fazer. Contudo, o sr. Reents, capitão do salvadego alemão “Seefalke”, está a elaborar o seu relatório para o apresentar à Companhia Lloyd Brasileiro que, em seguida decidirá sobre a sorte do paquete. São aguardadas estas resoluções, para ser tentado o desencalhe do navio, visto que o capitão do salvadego alemão, ter declarado ser possível retirar o navio daquele local.
Entretanto, no caso de o mar permitir, os trabalhos da descarga da mercadoria dos porões não inundados prosseguirão durante o dia de hoje, com a mesma actividade como até agora tem sido feitos.
(In jornal “Comércio do Porto”, quarta, 8 de Agosto de 1934)

sexta-feira, 10 de abril de 2015

História trágico-marítima (CXLV)


O naufrágio do paquete "Ruy Barbosa"
1ª Parte

Paquete encalhado
Na praia de Pampelido (Mindelo), encalha o vapor “Ruy Barbosa”
Os rápidos socorros – Os passageiros e a tripulação são salvos
Ignora-se, ainda, se o navio se salvará – Outras notícias
A cidade foi, ontem, alarmada com a notícia de ter encalhado ao largo de Leixões um paquete, ignorando-se o risco que corria por falta de pormenores concretos. Já no local, averigua-se que o encalhe ocorreu na praia de Pampelido, em frente à memória dos bravos do Mindelo, próximo do sítio onde desembarcaram as tropas liberais, comandadas por D. Pedro IV.

Um pouco da história deste navio
Características do vapor “Ruy Barbosa”
(1923-1934)
Nº Oficial: n/s – Iic: n/s - Porto de registo: Rio de Janeiro
Construtor: Estaleiro Bremer Vulkan, Vegesack, 21.06.1913
ex “Bahia Laura”, Hamburg Sudamerikanische, 1913-1917
ex “Caxias”, Governo do Brasil- Lloyd Brasileiro, 1917-1923
Arqueação: Tab 9.791,00 tons - Tal 6.172,00 tons
Dimensões: Pp 149,71 mts - Boca 18,00 mts - Pontal 10,85 mts
Propulsão: Do construtor - 2:Te - 6:Ci - 602 Nhp - 12,5 m/h
Equipagem: 125 tripulantes

O paquete “Ruy Barbosa”, ex “Bahia Laura”, foi um navio mandado amarrar pelo governo da Alemanha, num porto do estado brasileiro de Pernambuco, em Agosto de 1914, praticamente no início das hostilidades relacionadas com a Iª Grande Guerra, para que fosse evitado o seu afundamento ou a sua captura por um qualquer navio das marinhas dos países aliados.
Por força da mudança de política em relação à Alemanha, devido aos ataques e afundamentos por submarinos germânicos de diversos vapores brasileiros, entre os quais o “Rio Grande”, o “Paraná” e o “Tijuca”, entre outros, o governo do Brasil ordenou em 1 de Junho de 1917 a captura de 45 navios alemães, que se encontravam amarrados nos portos brasileiros.
A partir desta data o navio é propriedade do governo do Brasil, e entregue à operação através da Companhia Lloyd Brasileiro, período em que navegou com o nome “Caxias”. A alteração do nome para “Ruy Barbosa” tem lugar durante o ano de 1923, passando à propriedade definitiva da Companhia Lloyd Brasileiro, no decurso de ano de 1927, efectuando viagens redondas a partir dos portos brasileiros para a Europa, e respectivo regresso, conforme se constata na notícia do jornal.

Anúncio relacionado com a chegada do navio, nos jornais,
publicado poucos dias antes da ocorrência do sinistro

Como se seu o encalhe
Cerca das 5 horas da tarde, navegava com rumo a Leixões, o paquete “Ruy Barbosa”, pertencente à Companhia de Navegação Lloyd Brasileiro, que tem a sua agência no Porto, à rua Mouzinho da Silveira, representada pelo sr. Elias Pinho.
Num dado momento deu-se uma forte cerração no mar, que não deixava ver o caminho que o navio havia de percorrer. Este denso nevoeiro, que durou poucos minutos foi o causador do paquete desviar a sua rota, originando o encalhe sobre umas pedras denominadas “Grifas”, ficando metade do vapor sobre areia, do meio até à proa, e a outra metade sobre a rocha.
Mal este sinistro se deu, a sirene de bordo começou a silvar, sendo ouvida logo pelos srs. Ortélio e Vitor Martins, bem como pelos tripulantes de dois barcos, sendo um de Vila do Conde, e duma catraia, que andavam na praia.
Esses tripulantes, que logo se dirigiram a bordo do vapor encalhado, eram os seguintes: António Francisco Ribeiro, Albino Gonçalves, Albino Pereira dos Santos, Manuel Gonçalves, Francisco Pereira Ramos, António Silva e Sousa, António Francisco Ribeiro, Zeferino Pereira da Silva, Agostinho Gonçalves, Zeferino Gonçalves, António Gonçalves e Manuel Gonçalves Bouças.
A informar-se do que havia a bordo, subiu ao vapor o tripulante António Francisco Ribeiro, de 22 anos, casado, de Pampelido, a quem os tripulantes disseram não estarem em perigo, pois estava tudo bem e tendo declarado que não havia água aberta o que justificava não ter sofrido qualquer rombo, devido talvez, à precaução em que o paquete navegava.
Calcula-se em 4 braças o espaço compreendido entre o cabeço da rocha, que deu origem ao encalhe, e o fundo do mar. O paquete tem a proa voltada para Leixões, isto é, está na posição em que seguia, e afastado de terra cerca de 200 metros, não sendo muito critica a sua situação, pois está quase direito, a não ser que, na baixa-mar, se incline para um dos bordos.

Os rápidos socorros
Assim que o sinistro foi conhecido pelas entidades marítimas, seguiram, logo para o local, os rebocadores “Lusitânia”, que transportava pilotos; o “Mars II”, que levava o sr. Elias Pinto, agente da Companhia Lloyd Brasileiro, e o sota-piloto-mor, sr. António de Matos; os salva-vidas “Carvalho Araújo” e o de Angeiras; rebocadores “Neiva”, Áquila”, “Tritão” e a lancha-motor dos Pilotos da Barra, a fim de prestarem os socorros que fossem necessários.
Ao mesmo tempo chegavam, também à praia de Pampelido, os bombeiros de Matosinhos-Leça, com todo o seu material de salvamentos, Voluntários de Leixões, S. Mamede de Infesta, Portuenses e do Porto, não tendo sido utilizados os seus serviços.
Compareceram, ainda, o sr. tenente Américo Pinto da Silva Oliveira, comandante do posto da Guarda-Fiscal, patrão-mor Eduardo de Jesus, cabo-de-mar Alexandre Lopes da Silva, cabo de marinheiros Artur de Almeida e remador José Moreira, que estiveram a bordo.
É justo salientar a prontidão como compareceram no local aquelas briosas e beneméritas corporações que, apesar de não terem sido utilizados os seus serviços, por desnecessários, podiam ser valiosos, como já o tem demonstrado em idênticos sinistros.

O salvamento dos passageiros
O paquete “Ruy Barbosa”, de que era comandante o sr. Francisco Flocket, de 42 anos, procedia de Hamburgo e Antuérpia, onde embarcou os passageiros que trazia em número de 100 aproximadamente, tendo tocado em Vigo, de onde saiu às 11 horas da manhã, com destino a Leixões, onde devia embarcar 240 passageiros, com destino aos portos do Brasil.
Os passageiros são, quase na sua totalidade, judeus que foram expulsos da Alemanha, dirigindo-se três desses passageiros para Leixões e os restantes seguiam para o Brasil.
A tripulação do navio era composta por 125 pessoas, entre elas a enfermeira de nome Carmen de la Costa Fernandes, de 24 anos, brasileira, que era a primeira viagem que fazia, e a camareira Anita Rocha, de 25 anos, também brasileira.
Pelas 7 horas da tarde, como se visse a impossibilidade de safar o navio, foi começada a ser feita a mudança dos passageiros para bordo dos salva-vidas “Carvalho Araújo” e “Angeiras”, transportando essas pessoas para Leixões, onde fizeram o seu desembarque, sem que tivesse havido novidade de maior.
Mais tarde, foi feito também o transporte dos tripulantes do paquete e, bem assim, da carga que conduzia, a fim de aliviar o navio a ver se conseguiam safá-lo do local onde encalhou. Esses trabalhos devem ser prolongados durante a noite, esperando a maré cheia. Ignora-se por enquanto, se será possível safar o “Ruy Barbosa”, e consequentemente o seu salvamento.

Outras notas
- Dos contactos havidos, em Leixões, com alguns passageiros, com a enfermeira Carmen Fernandes, com a camareira Anita Rocha e com o único português que vinha a bordo, o sr. Artur Azevedo, de 32 anos, solteiro, que embarcara em Hamburgo e se dirigia para Pernambuco, donde devia seguir depois para Manaus, declararam nada terem sentido quando o “Ruy Barbosa” encalhou, e que este sinistro se deve ao densíssimo nevoeiro que se formou no mar e que, em breve tempo se dissipou. A viagem que tinham feito até ali foi admirável.
Também declararam que, assim que tiveram conhecimento do encalhe, não houve a bordo qualquer pânico, visto se verem próximos de terra e, por isso, o seu possível salvamento por serem relativamente poucos passageiros.
- O “Ruy Barbosa”, que saiu de Hamburgo no dia 26 do mês findo, esteve seis dias naquele porto a efectuar umas reparações, tendo saído para Antuérpia, onde este dois dias, e dali para Vigo, seguindo deste porto rumo a Leixões.
- O transporte para a alfândega de Leixões dos passageiros do “Ruy Barbosa”, foi feita rapidamente e sem novidade, pois às 7 horas e meia já o navio não tinha a bordo qualquer passageiro, sendo feita, em seguida, o transporte dos tripulantes de bordo e procedido o aliviamento da carga. Vai ser apreciado, durante o dia de hoje, se o navio sairá da crítica situação em que se encontra, ignorando-se se tem qualquer rombo originado pelos trabalhos de salvamento.
- De madrugada chegou a notícia que o “Ruy Barbosa” apresenta vários rombos à popa, o que tornará mais difícil o seu salvamento, visto começar a meter água. Os trabalhos continuam, estando junto do navio alguns rebocadores a fim de prestarem qualquer auxílio, caso seja necessário.
- Próximo do “Ruy Barbosa” estão os vasos de guerra “Zaire” e “Carvalho Araújo”, que estavam ancorados no rio Douro, tendo recebido ordem para seguirem para o local do sinistro.
- Da tripulação, ficaram 40 homens a bordo, tendo os restantes vindo para Leixões.
- Como a notícia do encalhe correu célere, juntaram-se na praia, onde se deu o sinistro, inúmeros automóveis e bicicletas, bem como muito povo. Era interessante ver muitas pessoas palmilharem a estrada, em direcção à praia de Pampelido, para presenciarem o vapor e assistirem aos trabalhos de salvamentos, em terra, caso estes fossem precisos. Milhares de pessoas ali se juntaram.
- De madrugada formou-se, novamente, um denso nevoeiro, que faz demorar os trabalhos de salvamento do navio, que, devido a ter água aberta, se considera quase perdido.
(In jornal “Comércio do Porto”, quarta, 1 de Agosto de 1934)

O encalhe do paquete "Ruy Barbosa"
Na notícia publicada ontem, os leitores foram informados pormenorizadamente do sinistro. E, acompanhando as fases do encalhe, para das mesmas dar conhecimento, foram afixados de manhã e de tarde os seguintes cartazes:
O encalhe do “Ruy Barbosa” - Pormenores do acidente
Vistoria à quilha do paquete que se considera perdido
Foram infrutíferos os trabalhos de salvamento
Características do “Ruy Barbosa” - Outras notas
Já ontem noticiado, o sinistro ocorrido na praia de Pampelido (Mindelo), ao paquete “Ruy Barbosa”, motivado pelo denso nevoeiro que se formou no mar. Felizmente não se registou, por enquanto, qualquer desastre pessoal, o que contribuiu, para isso, a mansidão em que o mar está, porque se assim não fôra, talvez, nesta hora, já teríamos referido graves ocorrências, apesar do paquete se conservar, relativamente, próximo de terra.
O capitão do paquete, sr. José Guerreiro Flocket, que viaja há 14 anos, após o encalhe tem estado debaixo de grande tensão nervosa, que o tem inibido de dar explicações sobre o sinistro. Ontem, que já estava um pouco melhor, disse que o encalhe se deu devido ao fortíssimo nevoeiro que àquela hora fazia, e por julgar, pelo tempo decorrido, que já estaria próximo do porto de Leixões, motivo porque se aproximou de terra.
Não é conhecido, de facto, se foram estes os motivos do encalhe porque essas explicações não saíram da boca do comandante do paquete, mas a ser assim, é porque os aparelhos de bordo não funcionavam, pois deviam marcar a latitude e longitude em que o “Ruy Barbosa” se conservava. O que se sabe é que encalhou e, se o mar estivesse agitado, as consequências do acidente poderiam ser trágicas. Felizmente tal não sucedeu, e antes assim.

Foto do paquete "Bahia Laura" em Hamburgo
Imagem da Photoship.Uk

O paquete “Ruy Barbosa”
- Conserva-se na mesma posição, mas metendo água, o paquete “Ruy Barbosa”. Ainda não é possível prever inteiramente a sorte deste vapor, continuando os trabalhos de salvamento. A bordo está, apenas uma parte da tripulação.
- O paquete “Ruy Barbosa” considera-se perdido. A água já entrou na casa das máquinas tendo a altura de 6 metros. Ao fim da tarde, chegou ao local do sinistro, vindo de Lisboa, o salvadego “Cabo Raso”.
- A carga do vapor está a ser retirada. A bordo ainda está parte do pessoal do paquete. O rombo no casco, do lado de bombordo, é grande e foi verificado pelos mergulhadores. Se o mar se altera o vapor será desfeito pelas vagas.

O rombo no paquete
De manhã, chegaram ao “Ruy Barbosa”, dois mergulhadores do porto de Leixões, que foram verificar os estragos produzidos no casco pela rocha onde assenta metade do paquete, do lado da ré, pois da outra metade para a proa o navio está a flutuar.
Constataram os mergulhadores que o rombo era grande e fora produzido a bombordo do vapor, entrando por ali a água, que já inundou a casa das máquinas e alguns porões.
Devido à água existente no vapor, aquela obrigou-o a inclinar um quase nada para a proa e levantando um pouco da ré. Como não foi ainda reparado aquele rombo e as bombas de bordo serem impotentes para o escoamento da água, o “Ruy Barbosa” considera-se perdido.
Por este facto, já procedem à retirada da bagagem dos passageiros, das malas do correio e alguns volumes de valor, que estavam no porão nº 1, o único aonde não entrou ainda a água.
Toda esta carga foi recolhida no rebocador “Mars II”, que deu entrada em Leixões cerca das 5 horas e meia da tarde. Este rebocador conduziu, também, a reboque, 3 baleeiras do “Ruy Barbosa” e uma barcaça. Pouco depois deu, também, entrada naquele porto o rebocador “Tritão”, que conduzia a bordo 17 tripulantes do vapor sinistrado.
Também veio para terra o músico de bordo, sr. Rafael Lobianco, de 22 anos, violinista, que foi conduzido num bote para a praia de Pampelido, pelo bombeiro voluntário do Porto, sr. Macedo, sendo recolhido no posto da Cruz Vermelha, que ali foi montado e onde aquele pernoitou.

Os trabalhos de salvamento
Foram infrutíferos todos os trabalhos executados para o salvamento do “Ruy Barbosa”. Pelas 5 horas da tarde, de ontem, e procedente de Lisboa, chegou junto do paquete o salvadego “Cabo Raso”, que se conservou junto do barco sinistrado até às 7 horas da tarde, retirando para Leixões vista a impossibilidade de prestar quaisquer socorros. Hoje, deve ali voltar para prestar auxílio, caso este se torne possível.
Pelos Bombeiros Voluntários de Matosinhos-Leça foi montado de terra para bordo, à proa, um cabo de vai-vem para ser utilizado em caso de qualquer eventualidade, que possa surgir de momento. Estes bombeiros têm sido incansáveis, merecendo elogios pela tenacidade e boa vontade que tem demonstrado.
Os Bombeiros Voluntários do Porto, que também foram incansáveis, retiraram do local ontem, à tarde, depois de terem deixado também colocada uma espia de terra para a ré do navio.
A Cruz Vermelha, que tem sido também duma dedicação em extremo, montou na praia um posto de socorros, tendo prestado os seus serviços aos marítimos que tripulam os barcos que vão a bordo e aos bombeiros que ali se conservam, tendo fornecido café, vinho do Porto, queijo, etc. Naquele posto de socorros, que tem estado sob a direcção do 1º sargento enfermeiro Oliveira e do seu colega, 1º sargento Barros, que não arredaram pé do local, o que prova a sua dedicação pela obra tão meritória e benemérita daquela instituição, também estiveram os srs. tenente dr. Guilherme Braga e alferes Arnaldo Silva, com o fim de prestarem o seu auxílio no caso de necessidade.

Características do “Ruy Barbosa”
O “Ruy Barbosa”, que era alemão, foi lançado à água em 1913, tendo sido baptizado com o nome de “Bahia Laura”; deslocava 11.780 toneladas brutas e 9.691 toneladas líquidas. Tinha 149 metros de comprimento e utilizava 125 tripulantes. Tinha lotação para 650 pessoas e trazia 2.000 toneladas de carga com destino aos portos do Brasil, na sua maioria mecanismos. É seu comandante o sr. José Guerreiro Flocket e seu oficial adjunto o sr. Damião.
Mais tarde, o “Ruy Barbosa” foi adquirido pelo Brasil, adoptando o nome de “Caxias”. Depois, em homenagem ao sr. Ruy Barbosa, distinto orador e ilustre jurisconsulto brasileiro, que gozava da maior reputação no Brasil, passou a usar o nome daquele estadista, nome com que, talvez, deve terminar, por se ver a impossibilidade, por enquanto, de ser retirado da crítica situação em que se encontra.

Outras notas
- Os noventa passageiros que o “Ruy Barbosa” trazia a bordo e que desembarcaram ante-ontem em Leixões, vieram para o Porto, ficando alojados em diversos hotéis, aguardando instruções quanto ao seu embarque para os portos a que se destinavam.
- Na praia de Pampelido esteve ontem durante a tarde, o capitão do porto de Leixões, sr. Capitão-tenente Manuel Caldeira Pedroso Pais do Amaral e a bordo do “Ruy Barbosa” estiveram alguns oficiais da capitania do porto de Leixões e pessoal da Companhia Lloyd Brasileiro.
- Está previsto virem a caminho de Leixões três salvadegos, sendo dois alemães e um dinamarquês, que não foram requisitados pela Companhia Lloyd Brasileiro, mas que vem na expectativa de safar o “Ruy Barbosa”.
- No entanto é dado como adquirido que o vapor encalhado está completamente perdido, visto um dos rombos ter a extensão de 4 metros.
- A Companhia está tratando com todo o interesse sobre a partida dos passageiros, que haviam de embarcar em Leixões a fim de não serem prejudicados.
- Ontem, acorreram ainda ao local, para ver a situação do vapor, inúmeras pessoas, que se serviram de vários meios de transporte. Próximo da praia de Pampelido, viam-se também, muitos automóveis.
(In jornal “Comércio do Porto”, quinta, 2 de Agosto de 1934)

terça-feira, 7 de abril de 2015

Navios com história!


O "Empress of Britain"

Bilhete postal do navio - minha colecção

Considerado um dos últimos navios de linha muito rápidos a operar na carreira para o Canadá, tinha disponíveis acomodações para transportar 310 passageiros em 1ª, 470 em 2ª e 770 em 3ª classe, e estava comparado de modo favorável a muitos dos bons navios, que operavam regularmente na ligação entre a Inglaterra e o porto de Nova Iorque. Muito embora tivesse existido alguma demora face ao contrato de construção, ficou pendente a decisão subjacente ao tamanho que permitiria o acesso até ao porto de Montreal.

Bilhete postal do navio - minha colecção

Nesse sentido, as dimensões adoptadas limitaram a possibilidade de poder navegar para além do Quebec, até que o canal de acesso fosse convenientemente aprofundado.
Colocado no serviço postal para o Canadá, que dividia em conjunto com alguns vapores da Allan Line, por diversas vezes fez escala nos portos de St. John’s e Halifax e, durante os anos da sua existência regista-se uma colisão com o vapor “Helvetia”, ao largo do Cap-de-la-Madeleine, Quebec, em 27 de Julho de 1912, daí resultando diversas avarias.
No início das hostilidades da Iª Grande Guerra foi armado em cruzador mercante, tendo terminado o período da sua requisição pelo almirantado britânico como transporte de tropas. Em 1934, ainda mantinha uma notável velocidade, resultando na travessia do Atlântico, em tempo recorde, desde o Quebec até ao porto francês de Cherbourg, em 4 dias, 6 horas e 58 minutos.

sexta-feira, 3 de abril de 2015

História trágico-marítima (CXLIV)


O naufrágio do vapor “Roumania”
2ª Parte

O naufrágio do “Roumania”
O “Times”, chegado ontem, refere-se largamente ao naufrágio do vapor “Roumania”, perto de Peniche. O “Roumania” havia saído de Glasgow para Liverpool em 19 de Outubro para meter carga e embarcar passageiros. Na sua viagem para Bombaim deixou o Mersey (rio) em 22 de Outubro, à noite, tendo embarcado todos os passageiros em Liverpool. O piloto que deu saída ao navio em Liverpool deixou o vapor em Point Lynas e o que morreu talvez seja de Lisboa.
O “Roumania” era um vapor de 3.387 toneladas. Foi construído em Glasgow, em 1880, por David & William Henderson & Co. Ltd.; as máquinas eram da força de 480 cavalos, o comprimento mais de 364 pés (111 metros), largura de 38 (12 metros) e altura de água de 28 (9 metros).
O capitão G.F.D. Hamilton, um dos dois europeus sobreviventes, pertence ao Bengal Staff Corps. Tem 32 anos de idade. Tendo obtido licença, foi para Inglaterra e durante a sua estada neste país contraiu matrimónio e agora, acompanhado de sua esposa, voltava novamente para Kurvachee, via Bombaim.
O naufrágio do “Roumania” produziu muita sensação em Plymouth, pelo facto de uma das pessoas que ia a bordo, a sra. Burgess, era muito conhecida ali. A sra. Burgess, que com um filhinho e a ama deste foi vítima do naufrágio, era filha do rev. Hay, que por alguns anos foi ministro de uma igreja nessa cidade.
O marido, rev. John Burgess é missionário na Índia. A sra. Burgess há poucos meses que viera de lá no “Roumania” e regressava agora no mesmo vapor. Era uma senhora de muitos conhecimentos linguísticos e também cantora, sendo os seus talentos geralmente apreciados.
(In jornal “Comércio do Porto”, quinta, 3 de Novembro de 1892)

O naufrágio do vapor “Roumania”
Peniche, 2 de Novembro – Dos náufragos do “Roumania”, que deram entrada no hospital, só um se encontra ainda em estado grave. Tem aparecido mais cadáveres, sendo alguns deles reconhecidos pelo capitão Hamilton e pelo tenente Rooke. Dois deles diz-se serem das filhas do capitão Tower.
O tenente Rooke está ferido nas pernas, mas tem andado a cavalo a reconhecer os cadáveres que vão aparecendo. O capitão Hamilton tem uma ferida num dos joelhos e outra num pé, além de contusões pelo corpo.
No enterro dos cadáveres o cortejo tem sido grande, tomando parte nele as autoridades civis, administrativas e militares, além de muitos ingleses, crescido número de populares e a filarmónica desta vila.
A força militar que aqui estava a fim de evitar o roubo dos objectos arrojados à praia, não era suficiente para conter os larápios e por isso foi reforçada com mais outra, que chegou das Caldas da Rainha.
Tem estado aqui o correspondente do “Times” a colher informações sobre o naufrágio. O sr. governador civil do distrito veio aqui, a fim de inquirir do modo como se portaram as autoridades por ocasião do naufrágio, tendo ordem de demitir as que não cumprissem com os seus deveres, perseguindo os larápios.
Lisboa, 2 de Novembro – O capitão do porto de S. Martinho desmente que tenham sido tiradas joias aos cadáveres das vítimas do naufrágio do “Roumania”; e diz que os roubos têm sido somente de objectos arrojados à praia.
(In jornal “Comércio do Porto”, quinta, 3 de Novembro de 1892)

O naufrágio do “Roumania”
O “Times” continua a trazer largas informações sobre o naufrágio do “Roumania”. O número chegado ontem, entre as informações fornecidas pelo seu correspondente em Lisboa, faz algumas referências, bem desagradáveis para nós, às cenas de pilhagem que diz terem-se dado na costa. Entre outras afirmações encontram-se as seguintes:
«Sir George Petre pediu já formalmente ao governo português que adote providências imediatas para proteger os mortos e seus haveres. As autoridades de Gronho e circunvizinhanças parecem-lhes ser completamente indiferentes. Os habitantes que são surpreendidos nas pilhagens não são presos, em parte porque não há prisão para os encarcerar nem para isso se tomaram providências e também porque a opinião pública vê na espoliação dos salvados uma legítima fonte de receita. Estão-se vendendo abertamente em Gronho e imediações objectos pertencentes às vítimas».
Como se vê na carta do nosso correspondente de Lisboa, publicada em outro lugar, foi dirigido ao sr. ministro da marinha um telegrama oficial, declarando que não tinha havido nem os roubos nem as espoliações de cadáveres que certos jornais noticiaram.
É, pois, conveniente que lá fora se saiba que Portugal não é um país de canibais, onde fossem praticadas cenas tão repugnantes como aquelas que erradamente narra o correspondente do “Times”.
O mesmo jornal refere também que foram tiradas fotografias dos cadáveres sepultados para haver mais facilidade no reconhecimento das vítimas. Diz ainda que um dos naufragados, F. Littlewood, era filho de uma senhora viúva, de Dover, tinha 20 anos e saíra recentemente de um colégio daquela cidade, seguindo para a Índia em serviço do Estado.
O capitão Hamilton, que perdeu a sua jovem esposa, e que é um dos sobreviventes do naufrágio, afirma que não sairá de Peniche sem que encontre o cadáver da sua extremosa companheira.
(In jornal “Comércio do Porto”, sexta, 4 de Novembro de 1892)

O naufrágio do “Roumania”
Os passageiros que o vapor inglês “Roumania”, naufragado há dias na costa de Óbidos, conduzia a bordo, eram os seguintes:
Capitão J.E. Barry e sua esposa, senhora Barry, senhora Beathy, senhora Edith B. Bouthflower, menina Catherine Bouthflower, três crianças e uma aia, menina Burbridge, senhora Burgess, uma filha e aia, senhora Dunlop, senhor Malcolm Fleming, capitão George Frederick Hamilton e sua esposa, senhora Hamilton, senhor A.E. Heald, senhora J.G. Heaton, senhor J.H. Holroyd, senhora Horsford, lady Johnson, uma filha e ama, senhora Keily, menina Kiermander, senhora De Lange, senhora E.A. Lee, senhor F. Littlewood, rev. J.H. Malkin, menina M. George, menina Gertrude Murray, senhor S. Nichol, menina Ida M. Pisani, senhora W.C. Pollard, dias filhas e aia, capitão B.H. Randolph e esposa, tenente B.P.S. Brooke, senhor A.H. Rooper, tenente E.W. Thompson e esposa. Dos 46 passageiros, 26 eram mulheres, 13 homens e 7 crianças.
A tripulação era assim composta:
W.S. Young, capitão; A.W. Loutitt, imediato; John Stuart, 2º oficial; J. McMillan, 3º oficial; James Mecreadie, engenheiro-chefe; dr. Ginders, médico; John Ross, chefe dos criados; senhora Bald, chefe das criadas; W. Bone, carpinteiro; J. Bjorkman, Edward Murphy, James Watson e Angus Kennedy, oficiais de quarto; J. Russel, 2º engenheiro; Ernest Brown, 3º engenheiro; Henry McKay, 4º engenheiro. O resto da tripulação era composta por 22 indianos e vários criados ingleses. A bordo havia ainda os praticantes T. Bowman e J. Hughes.
O piloto que deu saída ao navio em Liverpool desembarcou em Point Lynas. Devia tomar novo piloto em Lisboa. No sábado 22 de Outubro, deixou o Mersey, dando início à viagem.
O capitão do porto de S. Martinho mandou ante-ontem para a capitania do porto de Lisboa o seguinte despacho:
«Cheguei aqui ontem à noite, tendo acompanhado o bispo de Gibraltar a percorrer a costa, em busca dos seus parentes naufragados. Apareceram ontem à tarde nove cadáveres na praia inferior à serra do Bouro; não foi possível reconhece-los, por estarem ainda flutuando; um deles parece ser o da esposa do capitão inglês Hamilton. Tenho recebido bastantes pedidos para fazer o reconhecimento de cadáveres. Vou para a praia do Bouro, com o sacerdote inglês e parentes das vítimas».
O sr. administrador do concelho de Peniche recebeu um ofício muito honroso do sr. cônsul inglês, em Lisboa, testemunhando a sua gratidão e em nome do capitão Hamilton e tenente Rooke e de toda a colónia inglesa de Peniche, pelo interesse, cuidado e dedicação que tem mostrado no lamentável naufrágio do “Roumania”. Pede no mesmo ofício para ser interprete para com o governador militar, oficiais, empregados e povo de Peniche. O administrador mandou já relatório circunstanciado para o governo.
O sr. cônsul inglês encarregou um fotógrafo de tirar vistas do local onde se deu o naufrágio e fazer reproduções dos retratos que tem aparecido dentro de álbuns ou em caixas.
Eram ontem esperadas em Lisboa muitas famílias que tinham parentes entre os náufragos.
(In jornal “Comércio do Porto”, sábado, 5 de Novembro de 1892)

O naufrágio do “Roumania”
O “Times”, chegado ontem, refere-se ainda largamente ao naufrágio do “Roumania” e insere um telegrama da rainha Vitória dirigido ao bispo de Gibraltar, que se acha no nosso país. Esse telegrama é assim concebido:
«Balmoral – Tenho por vós grande pesar depois da perda de vossa esposa e do vosso sobrinho. Vitória R».
Diz ainda o “Times”:
«Tem arrolado à praia alguns cadáveres mais e bastante carga. Os cadáveres acham-se em adiantado estado de decomposição e muito mutilados. O dr. Bellingham Smith, cunhado do capitão Hamilton, esteve em Peniche, mas já seguiu para Lisboa, acompanhado pelo capitão, a quem foi custoso persuadir a abandonar o local do sinistro, esperançado, como estava, de descobrir o cadáver da esposa».
Os sete indianos lascares que se salvaram do naufrágio já foram de Lisboa para Gibraltar. O cônsul inglês, sr. Cooper, que tinha ido a Peniche e povoações marginais da costa a fim de colher informações, voltou para Lisboa.
O capitão do porto de S. Martinho andou com dois sacerdotes ingleses, os rev. Bacon e Morton, à margem da costa, a ver se encontravam cadáveres, descobrindo alguns que, pelo seu estado de decomposição, não puderam ser reconhecidos.
(In jornal “Comércio do Porto”, Domingo, 6 de Novembro de 1892)

Agradecimento do governo inglês
Lisboa, 2 de Dezembro – No ministério dos negócios estrangeiros foi recebida uma nota do sr. Petre, na qual o representante da Inglaterra participa que Lord Roseberry manifesta ao governo português os agradecimentos da Grã-Bretanha pela forma como as autoridades e o povo de Peniche auxiliaram os náufragos do vapor “Roumania”.
Os termos na nota são extremamente lisonjeiros não só para as pessoas que praticaram actos de verdadeira abnegação por ocasião daquele lamentável sinistro, mas ainda para o nosso país.
(In jornal “Comércio do Porto”, sábado, 3 de Dezembro de 1892)

quarta-feira, 1 de abril de 2015

História trágico-marítima (CXLIV)


O naufrágio do vapor “Roumania”
1ª Parte

Horroroso naufrágio - 120 mortos
Leiria, 28 de Outubro – Naufragou ontem (28.10.1892), há 1 hora da noite, na Foz do Arelho, praia do concelho de Óbidos, o paquete inglês “Roumania”, procedente de Liverpool e com destino a Bombaim. Morreram 120 pessoas, escapando apenas dois passageiros e sete homens da tripulação, que chegaram hoje, ao meio-dia, a Peniche. O vapor trazia a bordo 55 passageiros e 74 tripulantes.
(In jornal “Comércio do Porto”, sábado, 29 de Outubro de 1892

O naufrágio do paquete “Roumania
Horrorosos pormenores
Leiria, 29 de Outubro – Ignora-se por enquanto a causa do naufrágio do vapor “Roumania”. Ontem apareceram nove cadáveres e uma criança no berço.
A carga do vapor constava de fazendas, cerveja e vinhos. Na lagoa de Óbidos andam à tona de água muitos barris. Os guardas-fiscais têm apanhado poucos despojos e algumas peças de pano-cru.
Foram arrebatados pelo mar três homens que andavam apanhando despojos. Os náufragos que se salvaram estão no hospital de Peniche.

Peniche, 29 de Outubro às 7 horas e 53 minutos da tarde – O paquete inglês “Roumania”, procedente de Liverpool e com destino a Bombaim, naufragou, pela 1 hora da madrugada, no sítio denominado «Gronho», completamente despovoado e a 15 quilómetros de Peniche. A noite estava tempestuosa.
Vinham a bordo 77 tripulantes e 55 passageiros. Apenas se salvaram o capitão Hamilton e o tenente Rooke, das tropas da Índia, e sete índios lascares, que faziam parte da tripulação. O sinistro foi causado por desvio de rumo, devido à cerração e mar de grossa vaga.
A carga, que era importante e que se compunha de muitos fardos de tecidos, máquinas industriais e agrícolas, algodões e outras fazendas várias, foi quase toda ao fundo do mar com o paquete e as 123 vítimas!
Neste importante ponto da costa não há salva-vidas nem serviço montado de socorros a náufragos. Em compensação a natureza dotou esta população de muito arrojo, humanidade e carinho. Todos acorreram para tratar dos náufragos, protege-los e curar-lhes os ferimentos que todos mais ou menos receberam no desastre quando lutavam com o elemento imenso da água para salvar as suas vidas.
O sr. Ministro da Guerra mandou recolher ao Hospital Militar os oficiais salvos, que estão sendo cercados dos maiores cuidados prodigalizados pelos médicos e oficiais ali destacados.

Peniche, 29 de Outubro às 8 horas e 15 minutos da noite – Vão aparecendo os cadáveres das vitímas do horroroso naufrágio do paquete “Roumania”. Está vindo também à praia alguma carga, que vai sendo arrecadada pela guarda-fiscal.
(In jornal “Comércio do Porto”, sábado, 29 de Outubro de 1892

O grande naufrágio em Óbidos
Publicam-se hoje novos pormenores do horrível naufrágio de um paquete, ocorrido na costa do concelho de Óbidos e no qual morreram 123 pessoas. Os correspondentes de Leiria e de Peniche ampliam as notícias a respeito de tão horrível catástrofe.

O naufrágio do vapor “Roumania”
Peniche, 31 de Outubro – Do vapor “Roumania” apenas se vê parte da proa e da popa. O casco tem sido desfeito pelas vagas e têm sido arrojados à praia muitos artigos que faziam parte da carga, dos quais o povo também se tem aproveitado. O valor da carga deve ser superior a 400:000$000 réis.
O capitão do vapor chama-se W.S. Young e já há anos havia naufragado quando comandava o vapor “Anaulia”. Conta a tripulação salva que estavam todos recolhidos quando se ouviu um choque seguido de outros. O capitão ainda veio ao convés, mas o vapor submergiu-se logo.
Tem aparecido alguns cadáveres de homens, senhoras e crianças, que não se puderam reconhecer. Apenas um deles, diz-se que é de uma senhora chamada Lellie.
As fazendas salvas e que constam de fardos de chitas e outros tecidos de algodão, barris de cerveja, etc., tem sido conduzidas para a alfândega de Peniche. Para ser evitado o roubo de salvados o administrador do concelho requisitou uma força de cavalaria. A guarda-fiscal tem tido denúncia de várias casas onde existem salvados já subtraídos e, por isso, vão ser feitas algumas buscas.
São aqui esperados o cônsul inglês em Lisboa, o engenheiro Douvers e o aspirante da alfândega Marcolino de Almeida, e o representante da Anchor Line, à qual pertencia o vapor “Roumania”. A firma Mascarenhas & Cª. declarou que era representante do capitão do navio, e que desejava por isso assumir a direcção dos trabalhos de salvamento.
Tem sido expedidas de Inglaterra para aqui muitas comunicações, pedindo notícias sobre os passageiros do paquete. Algumas dessas comunicações patenteiam bem o desespero das famílias dos infelizes vítimas do horrível naufrágio. Há uma comunicação que verdadeiramente compunge: Um indivíduo de Manchester, sabendo que morreram dois irmãos que vinham a bordo, pede notícia do aparecimento dos corpos dos infelizes e solicita encarecidamente que sepultem os cadáveres reverentemente, prontificando-se a pagar todas as despesas e indicando que o capitão Hamilton poderá reconhecer esses cadáveres.
Idênticas solicitações têm sido dirigidas não só às autoridades de Peniche como, especialmente, ao capitão militar Hamilton, que se salvou do naufrágio e que aqui permanece ainda, para reconhecer os cadáveres e dar informação sobre os objectos que o mar arroja à costa. No naufrágio morreram umas poucas de criancinhas que o mar devorou abraçadas às mães. A sra. Burgess e uma filhinha ali morreram.
O capitão Hamilton relata cenas verdadeiramente lancinantes, passadas, em alguns segundos, no meio do bramir do mar e no seio da escuridão de uma noite de tempestade.
(In jornal “Comércio do Porto”, terça, 1 de Novembro de 1892)

O naufrágio do paquete “Roumania”
São verdadeiramente horrorosos os pormenores que vão sendo conhecidos acerca do sinistro com o vapor inglês “Roumania”. Publicamos em seguida alguns desses pormenores, ampliando as notícias sobre a catástrofe, que tem chegado desde Leiria e Peniche.
Na praia da Junceira apareceram quatro cadáveres, um de mulher e três de crianças, que teriam uma 7 meses, outra 4 anos e a terceira 10. Na praia do Gronho apareceram mais 6 cadáveres, sendo 4 de mulheres, entre as quais uma indiana, e dois de homens.
Na margem da lagoa apareceram os cadáveres de duas meninas de 3 e 4 anos, de uma mulher adulta e de um negro indiano. A mulher e as crianças, pelos fragmentos do vestuário, anéis e cuidado de unhas, deviam ser pessoas finas. O negro seria tripulante; apenas vestia uma tanga. De umas feridas na senhora vertia sangue. Seguindo, na costa do oceano (praia de banhos), apareceram mais três cadáveres de mulheres, sendo um de preta, também indiana, um pouco mais bem vestida, com bom fato, um botão de ouro encravado numa venta e as mãos e cara pintadas com alguma arte. Tinha furos nas orelhas, mas os brincos e um cinto com moedas de ouro e prata dizia-se que foram roubados. Os cadáveres das duas outras mulheres, pelos fragmentos do vestuário, anéis, e por tudo o mais, levam a crer que eram pessoas de fino trato. Na camisa da mais nova, de uns 30 anos, lia-se a marca a tinta - «Ida Pizani».
Apareceram também algumas folhas de um álbum de retratos, sem estes, de grande formato e luxuoso; numa das folhas, em que devia estar um retrato, lia-se em inglês e com os caracteres bem traçados: «A minha preciosa filha Lillie Burgess, do seu extremoso pai John Hay. Edimburgo, 14 de Outubro de 1892».
Dizia o jornal “A Tarde”, de Lisboa, recebido ontem:
«Por pessoa que hoje chegou do local onde se deu o naufrágio do paquete “Roumania”, sabe-se que tem dado à praia da Junceira (Foz) grande número de cadáveres que se acham ainda cobertos com trapos, sem estarem enterrados.
Tem sido roubadas quase todas as bagagens e mais objectos que aparecem na praia, havendo casas que se acham cheias desses objectos. Foi preciso por algumas vezes a guarda-fiscal abrir fogo sobre os indivíduos que pelos matos e em carros levam os fardos roubados.
Dos 9 náufragos que estavam no hospital já faleceram 3. Apareceu o cadáver do comandante. Está junto de um rochedo, na praia de Gronho, meio enterrado na areia e horrivelmente desfigurado.
Uma senhora, que estava a tomar banho na lagoa da Foz, próximo da praia de Gronho, encontrou com os pés um cofre, que foi depois apreendido pelo capitão da guarda-fiscal.
Não se descrevem as cenas de vandalismo que se tem dado na praia. Os cadáveres estão insepultos desde o dia 27».
(In jornal “Comércio do Porto”, quarta, 2 de Novembro de 1892)

O naufrágio do vapor “Roumania”
Peniche, 1 de Novembro – Chegou aqui o rev. Pope, capelão da igreja inglesa, que vem acompanhar e rezar os ofícios religiosos às vítimas, cujos cadáveres foram encontrados e vão ser enterrados em Óbidos.
Foi feita hoje autópsias aos cadáveres. O governo ordenou que se façam enterros decentes. Consta que serão feitos caixões funerários, sendo forrados internamente de zinco e por fora de paninho.
Dos náufragos sobreviventes o capitão Hamilton está enfermo e muito abatido, o tenente Rooke ferido e coxo, e dois indianos gravemente feridos e com muita febre. Um dos indianos salvos é natural de Salsete, Índia portuguesa.
(In jornal “Comércio do Porto”, quarta, 2 de Novembro de 1892)