quinta-feira, 16 de agosto de 2018

História trágico-marítima (CCLIX)


O naufrágio do vapor "Santa Maria"

Naufrágio do vapor português "Santa Maria"
Tripulação e passageiros salvos
Naufragou nas proximidades do cabo Finisterra, ao norte da costa de Espanha, o vapor português "Santa Maria", pertencente à Companhia de Navegação Carregadores Açoreanos, com sede em Ponta Delgada.
Sabendo que é seu agente no Porto o Sr. David José de Pinho, procuramos contactá-lo no seu escritório, na rua Nova da Alfândega, no sentido de obter algumas informações.
Amavelmente, os esclarecimentos surgiram, mas não tanto quanto seria para desejar. As informações do naufrágio eram poucas e estas, rápidas e breves. Constavam dum «rádio» do capitão do "Santa Maria" e de um telegrama proveniente de Leixões, tudo num laconismo impressionante.
Ficamos sabendo, no entanto, que o vapor naufragou, encalhando em pedra pelas 5 horas da manhã de ontem, quando navegava entre os cabos Vilano e Torinana.
A cauda do encalhe é ainda ignorada, depreendendo-se do radiograma enviado à agência desta cidade pelo capitão do navio, ter este sido abandonado pela tripulação, em auxílio da qual seguiram para o local do sinistro diversas embarcações.
O vapor "Santa Maria" procedia de Antuérpia, com carga e passageiros, cujo número não foi possível averiguar, considerando-se salvos, m virtude do rápido auxílio que lhes foi prestado.
A carga era de 900 toneladas, para o Porto e Açores.
Estava previsto ter entrado ontem na barra do rio Douro.
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O vapor "Santa Maria" era o antigo navio marroquino "Koutoubia", tendo sido construído em 1906, nos estaleiros de North Shields, Inglaterra, e ultimamente adquirido pela Companhia de Navegação Carregadores Açoreanos, que tem sede em Ponta Delgada, e o utilizava em carreiras entre o arquipélago dos Açores e portos no norte da Europa, Havre, Londres, Hamburgo e Antuérpia, com escalas por Lisboa e Porto.
Tinha 210.1 pés de comprimento, 32.1 de largura e 11.1 de pontal, deslocando 1.104 toneladas brutas e 750 toneladas liquidas.
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O Sr. David José de Pinho, agente no Porto da Companhia a que pertencia o referido vapor, seguiu ontem, à tarde, para o norte de Espanha, a fim de obter informações sobre o naufrágio.
(Jornal "Comércio do Porto", sexta-feira, 28 de Setembro de 1923)

Imagem do vapor “Santa Maria”
Desenho de Luís Filipe Silva

Características do vapor “Santa Maria”
26 de Janeiro de 1923 - 27 de Setembro de 1923
Armador: C.N. Carregadores Açoreanos, Ponta Delgada
Nº Oficial: N/d - Iic: N/d - Porto de registo: Ponta Delgada
Construtor: Smith’s Dock & Co., Ltd., North Shields, 1906
ex “Libertad”, S.A. Lloyd Bahia Blanca, Argentina, 1906-1908
ex “Libertad”, M.M. Argentina, S.A., Buenos Aires, 1908-1920
ex “Koutoubia”, S.M. Protect. Maroc, Casablanca, 1920-1922
Arqueação: Tab 1.104,00 tons – Tal 750,00 tons
Dimensões: Pp 64,02 mts - Boca 9,81 mts - Pontal 3,37 mts
Propulsão: McColl & Pollock, Ltd. - 1:Te - 127 Nhp - 8 m/h
Equipagem: 33 tripulantes
Capitão embarcado: Francisco José de Brito

O naufrágio do vapor “Santa Maria”
Apesar de todas as diligências empregadas para conseguir informações mais detalhadas a propósito do naufrágio do vapor português “Santa Maria”, na costa norte de Espanha, nada mais foi possível saber, além do que está confirmado através do seguinte telegrama, enviado de Vimianzo, Corunha:
«Vimianzo, 28 – A tripulação e passageiros do vapor “Santa Maria” encontram-se salvos e sem novidade».
Todavia, a causa do sinistro é por enquanto desconhecida.
(Jornal "Comércio do Porto", sábado, 29 de Setembro de 1923)

O naufrágio do “Santa Maria”
Continua a falta de pormenores completos sobre o naufrágio do vapor português “Santa Maria”, cujo encalhe se deu na «Costa da Morte», perto de Corme, ao norte do cabo Vilano, ao sul da Corunha.
É de crer que a causa do sinistro obedeceu por força do intenso nevoeiro, que surpreendeu o vapor quando navegava naquela parte do norte de Espanha.
A tripulação do “Santa Maria” era composta por 33 homens, sendo comandado pelo capitão Sr. Francisco José de Brito. Tanto tripulantes como passageiros salvaram-se nos botes de bordo e nos navios que imediatamente acorreram a socorrer o vapor naufragado.
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Ontem correu a notícia de que os passageiros do “Santa Maria” chegaram ao Porto, no comboio correio do Minho, motivo que levou muitas pessoas a acudir à gare de S. Bento para esperá-los.
Tal, porém, não aconteceu, aguardando-se, no entanto, a todo o momento, ansiosamente, a sua chegada, que segundo se antecipa, será ainda hoje.
(Jornal "Comércio do Porto", Domingo, 30 de Setembro de 1923)

O naufrágio do vapor “Santa Maria”
A falta de informações sobre o naufrágio deste vapor português, ao norte da costa da Galiza, continua martirizando a curiosidade dos interessados, naturalmente desejosos de conhecer, em todos os seus pormenores, as circunstancias em que se deu o encalhe do “Santa Maria”, nas rochas de Corme.
À agencia do Sr. David José de Pinho, representante no Porto da Companhia de Navegação Carregadores Açoreanos, têm afluído muitos pedidos de informações sobre o assunto, mormente das pessoas que têm parentes entre os tripulantes e os passageiros.
Estes, segundo telegrama recebido ontem do Sr. David José de Pinho, encontram-se bem, não tendo regressado ainda em virtude de circunstancias diversas, cujas explicações não foram apuradas.
(Jornal “Comércio do Porto”, terça-feira, 2 de Outubro de 1923)

O encalhe do “Santa Maria”
O sinistro contado por um dos passageiros
Ante-ontem, chegaram ao Porto, vindos de Espanha, os passageiros do vapor português “Santa Maria”, naufragado no dia 28 do mês passado, entre os penedos terríveis da «costa da Morte». Todos o sabem, mas o que desconhecerão ainda é a forma como o sinistro se deu e as circunstâncias que o motivaram.
Continuada a procura de informações esclarecedoras, encontramos o Sr. Mário de Pinho, um dos passageiros do “Santa Maria”, filho do consignatário no Porto, da Companhia proprietária daquele vapor, o Sr. David José de Pinho.
Aquele senhor recebe-nos com uma amabilidade distinta. Tinhamos enfrentado uma enorme falta de pormenores.
- Compreendo a vontade de ver esclarecido este sinistro. A povoação onde desembarcamos dista três léguas da mais próxima caixa do correio… Já vê!
- A povoação chama-se?
- Arou. Um isolamento total, absoluto… Daí a falta de comunicações.
- Queríamos tê-las agora. Pode relatar como se deu o encalhe?
- Eram 3 horas e meia da madrugada do dia 28, quando, casualmente, subi à ponte de comando do navio a informar-me com o piloto do navio – o oficial que então se encontrava de quarto – da posição em que o navio se encontrava. Respondeu-me que, cerca das 3 horas, calculara a posição do vapor por meio de dois faróis, pelo que nos devíamos encontrar, naquele momento, muito perto do cabo Vilano. Apresentou-se-nos então uma nevoa cada vez mais densa e cerrada, tendo o piloto, que momentos antes havia diminuído a velocidade do navio, descido aos aposentos do comandante a comunicar-lhe o estado do tempo.
- E o que fez o capitão? – interrompemos.
- Este oficial, meu amigo pessoal, deu ordem imediata para que se fizessem rapidamente os sinais de nevoeiro, a fim de ser evitado qualquer abalroamento. Ordenou também que fosse alterado o rumo para posicionar o navio absolutamente safo dos escolhos, que tanto abundam nas costas da Galiza…
Quando foram dadas estas ordens, encontrava-me na casa de navegação, diligenciando ver a posição do navio em função da carta marítima. O piloto subiu para dar cumprimento às manobras quando, subitamente, decorridos dois minutos apenas, se deu o embate.
Imediatamente, o capitão, já vestido, apareceu no convés, berrando para a ponte que abrissem a máquina a toda a força à ré. A ordem foi cumprida, mas o navio não cedeu.
- Que fizeram, nesse caso?
- O comandante, em seguida, subiu à ponte e com energia mas calmo em absoluto, chamou a tripulação e ordenou-lhe que arreasse as baleeiras como medida preventiva.
- E os passageiros?
- …calmos, tranquilos, com um sangue frio inimaginável… Mas não só os passageiros. Todos o mantiveram, oficiais e pessoal da tripulação, constantemente, obedecendo, sem hesitação, a todas as ordens que, para bem comum, eram dadas pelo comandante, sr. Francisco Brito.
Arreadas as baleeiras, operação coadjuvada pelos próprios passageiros, que já então haviam afluído ao convés, o vapor começou a pedir socorro, quer pela telegrafia sem fios, quer por meio da sirene, que nunca deixou de apitar. O nevoeiro era então densíssimo, duma espessura profunda e negra…
Como eram desconhecidos os escolhos, pouco mais podia ter sido feito, além de tomar as medidas necessárias para evitar a perda de vidas. Porém, cerca das 4 horas e um quarto da madrugada, o vapor que até aí só tocava em rochedos à proa, e por vezes a meio do navio, começou também a bater de popa com tal violência, ocasionando novos rombos por onde a água começou a entrar com abundância, inundado dentro em pouco a casa das máquinas. O capitão ordenou imediatamente ao 2º maquinista de serviço que abrisse o vapor das caldeiras, para assim evitar uma explosão horrível.
Desta forma, a situação do navio tornou-se crítica, receando-se a todo o momento que os mastros desabassem, em virtude da extraordinária violência dos embates no casco resultantes da ondulação do mar.
- Em face disso, o capitão ordenou que os passageiros abandonassem o navio, o que foi feito na melhor ordem. Cada oficial tomou o comando da sua baleeira. Estas pairaram até ao amanhecer junto do navio encalhado. Quando era já dia claro, apareceram uns pequenos barcos de pesca, aos quais pedimos um «prático», que nos indicou um bom local para atracarmos na costa de Arou.
- Não ficou ninguém no vapor?
- Ficou o comandante a bordo, juntamente com o seu criado, que se negou a abandoná-lo. Uma vez desembarcados os passageiros, as baleeiras voltaram para o local do sinistro. Mais tarde, aproveitando a maré baixa, tratou a oficialidade e os tripulantes de atender ao salvamento da bagagem. O capitão continuou a bordo, de onde, até ante-ontem, não havia retirado, visto terem estado a tratar de salvar toda a carga possível e estancar os rombos.
- Será possível salvar o navio?
- Não creio. Para isso, já foram solicitados os socorros necessários. Mas parece-me impossível. À data da minha partida de Arou, já se encontravam descarregadas 300 toneladas de carga.
- A que atribui o encalhe?
- Na minha opinião, não houve o mais pequeno descuido que motivasse o sinistro, mas julgo-o devido a um grande desvio na agulha, sobre a qual aquelas costas têm grande influência.
Ultimamente, um navio de guerra espanhol andou a estudar as influências magnéticas da costa sobre as agulhas.
Em seguida, o Sr. Mário de Pinho refere, cheio de admiração, os actos de coragem e de abnegação, de que os oficiais deram provas, tal como o comandante, o telegrafista, e todo o pessoal do vapor.
Embebemo-nos também da mesma veneração por esse grupo de portugueses, valentes, disciplinados e generosos, que nos momentos de perigo sabem sacrificar-se por um dever de completa beleza moral.
(Jornal “Comércio do Porto”, quarta-feira, 4 de Outubro de 1923)

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