domingo, 19 de agosto de 2018

História trágico-marítima (CCLXI)


Encalhe do lugre-escuna "Felix", na praia de Matosinhos

Momentos de ansiedade – Salvamento da tripulação
Não só em terra o mau tempo se tem feito sentir. Também no mar o temporal tem causado grossas avarias a diversas embarcações. O mar, de há dias a esta parte, está agitadíssimo, sendo uma temeridade as embarcações tentarem aproximar-se de terra.
Ontem, pelas 11 horas e meia da manhã, o lugre dinamarquês “Felix”, que se encontrava ao largo do porto de Leixões, tentou aproximar-se para via ancorar na baía, fugindo assim ao temporal. Na ocasião em que demandava o porto, ao chegar à embocadura, as vagas grossas e alterosas e a falta de vento fizeram com que fosse direito à praia.
Na iminência do perigo, a tripulação largou os ferros, conseguindo assim que a embarcação se aguentasse durante algum tempo. Como fosse grande a agitação do mar, as amarras rebentaram, vindo o navio encalhar na praia da República (antiga praia de D. Carlos).
De terra logo prestaram socorro aos náufragos, sendo, depois de alguns esforços, salva a tripulação, composta de 5 homens, incluindo o capitão, pelo barco salva-vidas, vindo desembarcar na praia.
O lugre “Felix” procedia da Terra Nova, trazendo um carregamento de bacalhau para a Sociedade Mercantil Industrial, Lda. Vem consignado aos srs. Blackett & Magalhães e pertence à praça de Marstal. O “Felix” é um lugre de 99 toneladas.

Imagem do lugre-escuna "Felix" na praia de Matosinhos
Foto de autor desconhecido - minha colecção

Matosinhos-Leça, 3 – Pelas 10 horas e meia da manhã foi dada ordem, pela Capitania do porto de Leixões para a Estação de Bombeiros de Leça para avançarem com o barco salva-vidas e o material de socorros a náufragos para o navio de vela que estava em perigo pela parte de fora do molhe sul de Leixões, defronte da praia da República.
O salva-vidas “Leixões” saiu logo, tripulado pelo patrão José Rabumba, o «Aveiro», com 12 homens de guarnição, rebocado pelo salva-vidas a gasolina, até à entrada do porto de Leixões, indo nele o sr. capitão do porto, o patrão-mor José Amaral e mais tripulação.
Não obstante a vaga alterosa e ser uma verdadeira temeridade a saída do salva-vidas, o «Aveiro», homem experiente e arrojado que é, aproveitando ocasião propícia, saiu a doca.
Neste tempo já tinham chegado ao molhe sul os bombeiros voluntários com o carro porta-cabos nº 2 da estação de Matosinhos, que iniciavam o serviço de salvamento. Quando estava pronto para ser lançado o foguetão, dobrava o salva-vidas a curva do molhe sul, pelo que foi suspenso o lançamento do foguetão até ver se o salva-vidas conseguia abordar o navio.
Depois de várias tentativas frustradas, pelo muito mar, espectáculo imponente, presenciado por milhares de pessoas, o salva-vidas sempre conseguiu encostar-se ao navio, recolhendo a sua tripulação, que era de 5 homens. A dificuldade agora era trazer o salva-vidas para terra, pois voltar pela entrada do porto era um grande perigo para os salvadores e para os salvados.
Então, com um grande lance de audácia, o salva-vidas foi levado à força de remos para a praia, o que foi feito em tais condições de coragem pela tripulação. Já próximo da praia, uma vaga muito alterosa, quase virou o salva-vidas que ficou inundado de água por uma borda, não ficando voltado completamente, por ter seguido no dorso dessa onda, que o depositou na areia.
Após um momento de indiscritível regozijo para todos quantos presenciaram o arrojado salvamento, a multidão saudou calorosamente o intrépido «Aveiro» e os seus valentes companheiros, dirigindo-se ao salva-vidas, de onde retiraram os náufragos e tripulantes, trazendo o barco para lugar seguro.
Acções desta natureza honram quem as pratica e não há recompensas que possam premiar tanto arrojo e tanta abnegação.
O sr. capitão do porto acompanhou todos esses serviços, do molhe sul, onde desembarcou o salva-vidas motorizado, que estava pronto a socorrer o outro, caso fosse preciso.
O serviço do carro porta-cabos, dos bombeiros voluntários foi dirigido pelo seu prestigioso comandante, sr. coronel Alberto Laura Moreira.
Prestou, também apreciados serviços o condutor Manuel Augusto Valente, com a camionete da Fabrica de Conservas de Casebre & Cª., Lda., de Matosinhos, prestando-se espontaneamente, a rebocar para o molhe sul o carro porta-cabos, e conduzir para a capitania e para o hotel, aonde foram mandados hospedar os náufragos, e a conduzir da estação o salva-vidas e o material para o seu encalhe na praia.
O navio, que pouco depois das 2 horas da tarde, foi arrojado à praia, defronte da Fabrica de Conservas de Brandão, Gomes & Cª., por se ter partido a corrente de ferro que tinha no fundo, era o lugre-escuna dinamarquês “Felix”, que está completamente perdido bem como a sua carga, que era de bacalhau.
Consta que da tripulação do navio faltam dois homens, que há dias uma volta de mar arrebatou sendo um deles o capitão. O “Felix”, cujo casco é de madeira, vinha da Terra Nova. É da praça de Marstal, Dinamarca, e tem 99 toneladas brutas de registo.
Vinha consignado à firma desta praça Blackett & Magalhães e a carga era destinada à Sociedade Industrial Mercantil, Lda.
(Jornal “Comércio do Porto”, sábado, 4 de Fevereiro de 1922)

O naufrágio do lugre “Felix”
Pormenores
Matosinhos-Leça, 4 – O lugre-escuna “Felix”, naufragado ontem ao sul do porto de Leixões, mantem-se no mesmo estado. Em vista do mar o permitir, foram já hoje retirados, por ordem da Alfândega, vários apetrechos de bordo, como sejam velas, barricas, etc., ficando tudo na praia, convenientemente arrumado, sob a vigilância da Guarda-fiscal.
Como constasse que o mar tinha arrojado à praia o bacalhau, que constituía o carregamento do navio, apareceram lá diversos indivíduos que se tornaram suspeitos e que a guarda-fiscal tratou de dispersar.
Durante o dia tem ido à praia muitas pessoas que são mantidas à distância pela guarda-fiscal, esperando-se que amanhã a concorrência seja maior em virtude de ter terminado a greve da Carris.
(Jornal “Comércio do Porto”, Domingo, 5 de Fevereiro de 1922)

O navio foi posteriormente desencalhado, seguindo para o rio Douro em 21 de Junho, a reboque da traineira “Mediterrâneo”, entrando em estaleiro a fim de realizar os necessários trabalhos, pelo que depois de reparado regressou ao serviço comercial.

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