sábado, 15 de abril de 2017

Histórias do mar português!


A vida arriscada e operosa dos pilotos do Douro e Leixões
Texto de Afonso Passos

Trinta e quatro homens, escondidos na maior modéstia, realizam, dia a
dia, trabalho perigoso, de que colhe altos benefícios o Norte do País
Há mais de um século, Feminore Cooper, espírito brilhante que cultivou, com amor e ciência, o campo das letras, deu à estampa um livro com este singelo título: «O Piloto». Embora do género romance, a ideia que presidiu à confecção do livro foi, unicamente, a glorificação do piloto, objectivo conseguido em pleno porque o autor, com larga visão da vida e das coisas do mar, focou, com maestria, o carácter, a concentração e a audácia desses admiráveis marinheiros.
Maior teria sido a sua impressão, maior seria a emoção dos leitores, se Feminore Cooper nos oferecesse, no século em que vivemos, o descritivo, por-certo envolto em ricas roupagens literárias, da entrada e saída de navios na barra do Douro e, até, no porto de Leixões. Veria, com seus olhos perscrutadores e com seu espírito perspicaz, como na era da máquina, em que o progresso se avantaja, em que a Natureza parece dominada ao poder criador do homem, como uma vaga, apenas por mais alterosa, como um rio tranquilo, apenas por aumentar de corrente e volume, desafia a eficácia da mecânica, obstruindo-lhe o caminho, relegando-a para o lugar próprio.
E, nesta emergência, é ainda o homem – o piloto que Cooper glorificou – quem vai adiantar-se a certos poderes da terra, vencendo, pela sua inteligência, forças consideradas indómitas. Sabe que assim é quem já assistiu, em dias de mar bravio, ao trabalho dos pilotos nessa «garganta da morte», que é a barra do Douro. Os seus conhecimentos, a sua tenacidade e, quantas vezes, o seu heroísmo, são constantemente postos à prova, mostrando-nos, de forma eloquente, quão arriscada e operosa é a profissão do piloto.

Navio de carga holandês "Strabo" da K.N.S.M.
Fotografia de Alberto Teixeira da Costa, Foz do Douro

A barra do Douro oferece aspecto desolador
Movidos pela leitura de Cooper e pelo conhecimento directo que temos da vida do piloto, fomos, há dias, em busca de impressões até à Corporação dos Pilotos das Barras do Douro e Leixões, instalada num prédio do Passeio Alegre, frente ao mar. Da visita às instalações, que são modelares, das palavras que trocamos com alguns pilotos de serviço, ficou-nos impressão magnífica do importante papel que desempenham na navegação e do enorme contributo que oferecem à vida do comércio e da indústria.
Mas outro motivo nos levou até à Cantareira. Arriscarmo-nos, com o piloto, se possível fosse, até um dos navios que entram ou saem a barra, assistindo, para que a impressão fosse mais viva, aos trabalhos que demonstram a perícia e os riscos do piloto. Não pôde ser satisfeito o nosso desejo. A barra, antes da guerra sempre com movimento intenso de embarcações, oferece, agora, aspecto profundamente desolador.
Que vemos? Um barquito à vela, que regressa da faina da pesca, uma fragata que um rebocador leva para Leixões… Nada mais. Dos vapores de carga, não encontramos rasto nem fumo… Disseram-nos que, de quando em vez, aparece um pela barra… E o sol, esplendoroso e magnânimo, parecia abençoar os homens e as coisas! Os pilotos da barra – os «práticos», como lhe chamam os brasileiros – são escolhidos entre os homens do mar, indistintamente, exercendo qualquer das diversas profissões marítimas.
Para que possa concorrer ao lugar, tem de conhecer, após aturado estudo, especialmente a barra, as marés, os baixios, as correntes e mil e um pormenores que a prática na vida do mar oferece. Requerida a sua admissão, o candidato é sujeito a exame, feito sempre a bordo de um navio de guerra, com o qual manobra, saindo e entrando na barra do Douro como na de Leixões, para mostrar as suas aptidões. O júri de exame é sempre composto por dois oficiais da marinha, pelo piloto-mór e pelo sota piloto-mór. Aprovado piloto provisório, faz seis meses de tirocínio, sob a vigilância dos pilotos efectivos. Decorrido esse tempo, se as informações forem abonatórias da sua competência, passa a fazer serviço sob sua responsabilidade. Continuando a ser bem-sucedido, ao cabo de 18 meses passa à efectividade. E ao fim de 7 anos de trabalho pode concorrer aos lugares superiores.

No mar, estão já sepultados muitos pilotos
O pessoal encarregado da pilotagem nas barras do Douro e de Leixões está assim distribuído: na secção da Foz do Douro, há 26 pilotos, incluindo os graduados e um escrivão; e em Leixões prestam serviço 8 pilotos. Na secção da foz, o pessoal está dividido em duas esquadras, estando uma, durante quinze dias, ao serviço de entradas, e a outra ao serviço de saídas, findos os quais alternam.
O piloto, além das responsabilidades técnicas, tem outras referentes às autoridades aduaneira, policial e sanitária, visto que sendo a primeira autoridade a entrar a bordo toma sobre si todos os encargos, até que aquelas, já dentro do porto efectuem as suas visitas.
Os pilotos da barra do Douro, atendendo à situação do seu porto, têm de ser marinheiros muito hábeis, pois é uma das barras mais difíceis, atendendo à tonelagem da navegação que a demanda. Indagando dos momentos que consideram mais difíceis para a sua vida profissional, todos os pilotos são de opinião que o acto mais arriscado é o de saltar, fora da barra, da lancha para bordo ou de bordo para a lancha, operação que o mar, quando alteroso, torna difícil ao máximo.
E recordaram-nos, a propósito, alguns desastres sucedidos a colegas seus, muitos deles mortais. Há anos, existia em Carreiros um posto suplementar, onde estavam atracadas várias catraias. Uma delas, quando em serviço, voltou-se, morrendo afogados, muito perto de terra, todos os pilotos que levava. Também uma outra catraia, destinada a «assistir», que estava em serviço de sinalização da barra, voltou-se no momento em que um vapor holandês demandava o porto, perecendo sete dos seus ocupantes.
É, assim, cheia de perigos, a vida dos pilotos na barra do Douro, que se continua a manter num estado luminoso. Quem não se recorda do trágico naufrágio do vapor alemão “Deister”, ocorrido mesmo à entrada do porto, sem que milhares de pessoas, que presenciaram, horrorizadas, da margem, os diversos passos da catástrofe, pudessem valer a duas dezenas de vidas que o mar sepultou? Foi neste desastre pavoroso que um piloto, Jacinto José Pinto, encontrou a morte.

Os pilotos têm salvo muita gente da morte
Existe lamentavelmente um equívoco que vem a propósito esclarecer. Quando se dá qualquer naufrágio em que aos pilotos não é possível actuar, quer por ignorância do caso ou porque o facto sé dá em ocasião que o material mais apropriado está em serviço, certo público, injustamente, critica-os asperamente, quando, na verdade, esquece que não sendo a sua função propriamente a de salvação, visto que exercem uma indústria distinta, que é a pilotagem das embarcações, e, contudo, a Corporação de Pilotos do Douro e Leixões a entidade que mais gente tem salvo, não só aquela que arranca da água, como dos múltiplos naufrágios que evita quando se apercebe que uma embarcação corre risco e, caso interessante, raro é o piloto que possui uma medalha do Instituto de Socorros a Náufragos e nem a Corporação foi, ainda, condecorada pelos poderes públicos, o que, aliás, era justíssimo.
Não sucede isto, porém, com outras corporações de interesse público, tais como os bombeiros, que, pelo menos em matéria de socorros a náufragos, são sempre, e muito bem, premiadas, assim como os seus componentes.
Não se tem isto em vista, não só quanto à parte crítica de certo público, mas também às distinções honoríficas que a Corporação de Pilotos, não tendo nenhum subsídio especial do Estado, justamente merecia, pois danifica o seu material flutuante e gasta combustível. Como os casos de socorros a barcos de pesca e de recreio se dão frequentemente, no fim dum ano pode avaliar-se o quanto afecta a economia da Corporação e dos pilotos, pois que os proventos dependem, em parte, da referida economia. Ora para bem de todos convém explicar que a entidade dada aos serviços de socorros a náufragos é o Instituto de Socorros a Náufragos.
A Corporação de Pilotos intervém, pronta e voluntariamente, já por iniciativa própria dos sentimentos dos seus incorporados, já porque isso é dever de todo o cidadão, sempre que pode, quando tem conhecimento dos factos. Nos naufrágios desta área quase sempre comparece uma ou mais lanchas ou o rebocador “Comandante Afonso de Carvalho”, mesmo nos casos em que o salva-vidas sai.
Quando se trata do salvamento de propriedades de valor apreciável, não de vidas, a Corporação tem de ser remunerada porque vai danificar o seu material e fazer despesas com pessoal, combustível, etc.
Há quem julgue que devido à pilotagem ser um serviço oficial, existe obrigação de fazer gratuitamente os serviços de salvação dos navios, mas, na verdade, esquecem que a Corporação compra o material que adquire, paga os carburante e lubrificantes, pessoal, reparações e seguros, como qualquer entidade particular, comercial ou industrial.

O piloto não enfrenta apenas os perigos do mar
A continuar assim, não surpreenderá ninguém que a barra do Douro venha ser ainda sepultura de muitas vidas. Disse-nos um membro da corporação, quando lhe apontamos essa possibilidade: «Sim, porque o piloto, aqui, é como um artista a trabalhar com fraca ferramenta».
Porém, os pilotos não enfrentam apenas os perigos do mar. Pela natureza da profissão, a mortalidade entre eles, é enorme, causada, especialmente, por doenças do coração, tuberculose, resfriamentos, etc. Para corroborar essa afirmação, basta citar a sua Caixa de Pensões, que possuindo 34 sócios, em 7 anos tem já 11 viúvas a sustentar.
Não obstante as crises dos últimos anos e a actual, que a todas supera, a Corporação dos Pilotos está apetrechada com material mecânico moderno para o serviço de pilotagem e outros, material esse que fica bastante oneroso. Para o serviço de amarrações, possui 50 assalariados, aos quais tem dispensado bastantes regalias, não obstante a Corporação viver presentemente em regime de «deficit».
Na secção de Leixões, o serviço de pilotagem é também pesado e difícil, visto que é permanente, de noite e de dia, e especialmente devido às más condições do porto, que foi feito para abrigo dos antigos navios de vela e, hoje, é demandado por verdadeiras cidades flutuantes. Estes navios, pelo seu tamanho como também pelo seu enorme calado, tornam-se de difícil manobra, devido às dimensões acanhadas da bacia.
Hoje, graças à aquisição, por parte da Corporação, do rebocador “Comandante Afonso de Carvalho”, o serviço é feito em melhores condições, facilitando não só o acto de pilotar, que, anteriormente, em dias de muito mar, não podia efectuar-se, como ainda o recurso de assistência permanente, visto que o rebocador está sempre em Leixões e, portanto, pronto a actuar na emergência de qualquer sinistro.
Há, na vida dos pilotos da barra do Douro, um facto que demonstra claramente a ponderação com que efectuam os seus serviços. Quando o mar, embravecido, dificulta a entrada ou saída de embarcações, os pilotos reúnem-se, em conselho, numa casita, junto ao mar, na Cantareira, para deliberarem sobre a melhor forma de conduzir o navio com segurança ao seu ancoradouro. O piloto-mór ouve as opiniões, muitas vezes divergentes, dos seus subordinados. Se o acordo, para tal fim, não é unânime, procedem à votação – e o serviço é feito segundo o critério da maioria.
Da vida dos pilotos, da sua profissão arriscada e operosa, muito haveria a dizer. Ainda bem que Feminore Cooper o fez, embora noutra época e com outros motivos, porque nós, sem o recurso de impressões vivas em que nos possamos escudar, apenas repetiremos que os portos do Douro e Leixões, por imperativo da guerra que assola o mundo, oferecem aspecto triste, desolador, embora o Sol por lá ande a abençoar os homens e as coisas…
(In jornal “Comércio do Porto”, quinta-feira, 1 de Agosto de 1940)

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