segunda-feira, 20 de março de 2017

História trágico-marítima (CCV)


À entrada da barra encalhou mais um vapor
Mais uma vez, a morte se ergueu, horrenda e ameaçadora, à entrada da barra do rio Douro! Uma vez mais, centenas e centenas de pessoas se foram para os cães de mãos apertadas na cabeça, os olhos postos no mar, - e os nervos a estalar enquanto um vapor, a contas com os ímpetos da corrente, se batia no estertor da morte!
Esta mole de gente angustiada, cuja alma ainda não está bem refeita das emoções sofridas aquando do naufrágio do “Deister” esteve para ali, durante três longas horas, á espera duma catástrofe como a que matou os 25 tripulantes daquele vapor desfeito.
As circunstâncias eram as mesmas; iguais eram os motivos; e até o próprio vapor, como o outro, era alemão. Simplesmente, desta vez, quis a sorte que o mar estivesse mais sossegado.
Se não fôra isso, teríamos (quem sabe) a estas horas de registar um desastre como aquele a que aludimos. Sempre a mesma coisa, Os mesmos motivos sempre! É um vapor que chega à boca da barra e um estoque de água que o faz guinar. Depois – um tombo contra as pedras e um rombo fatal ou um encalhe na areia da restinga.
Ontem, por Deus, foi na areia.

Pintura com o vapor "Stahleck", de autor desconhecido

Mas pergunta-se: porque se não evita esta desgraça?
À hora a que o vapor começou a demandar a barra, era a corrente de molde a não o deixar subir, segundo dizem os entendidos. Mal se compreende como, sendo a corrente, a essa hora, duma violência que denuncia perigo, - o vapor entrou.
É preciso, por todos os motivos, já que não se pode, de um momento para o outro, pôr a barra em condições, - ao menos vigiar com alma, competência e energia a entrada dos vapores. Se não – os desastres suceder-se-ão e, nesse caminho, a barra, em pouco tempo, passa à categoria de ponto negro e os vapores seguir-lhe-ão ao largo, como borboleta a fugir da fogueira crepitante!
Propositadamente, cingimos a notícia deste encalhe em duas dúzias de palavras para que melhor se possa ver quanto e como ele é igual ao que levou o “Deister” com os seus homens para o fundo, Sempre a mesma coisa! Vejamos:
Cerca das 7 horas da manhã, quando entrava a barra o vapor alemão “Stahleck”, procedente de Hamburgo, com carga geral e consignado à firma Burmester & Cª., Lda., devido ao mar estar um pouco agitado, desgovernou para estibordo, indo encalhar na restinga do Cabedelo.
Dado o alarme, compareceram os rebocadores “Burnay 2º”, “Pátria”, “Magnete”, “Deodato”, o salva-vidas da “Afurada” e bem assim as lanchas-motor dos pilotos. Estas últimas trataram logo de passar alguns cabos de arame da prôa do vapor para terra, sendo amarrados ao «peoris» do cais do Touro.
Passadas duas horas, o vapor, com o auxílio dos cabos e das próprias máquinas, conseguiu safar-se, seguindo barra fora, com destino a Leixões, onde entrou, aguardando a maré da tarde de hoje para entrar novamente no Douro, se tiver ocasião favorável.
Os rebocadores nada fizeram, nem o salva-vidas da Afurada por não serem precisos os seus serviços.

Foto do navio "Stahleck", de autor desconhecido
Imagem da colecção de Peter Kiehlmann

Características do navio “Stahleck”
1923-1946
Nº Oficial: N/s - Iic: Q.L.R.T. - Porto de registo: Bremen
Armador: Deutsche Dampschiffahrt Ges. “Hansa”, Bremen
Construtor: A.G. “Weser”, Bremen, 1923
Arqueação: Tab 1.663,00 tons – Tal 907,00 tons
Dimensões: Pp 73,53 mts - Boca 11,05 mts - Pontal 4,62 mts
Propulsão: Do construtor, 1:Te - 3:Ci - 165 Nhp - 10 m/h
Dp “Aardenburg”, Governo Holandês, Rotterdam, 1946-1947
Dp “Danae”, K.N.S.M., Rotterdam, 1947-1951
Dp “Danae”, Hellenic Levant Lines, Pireu, 1951-1962
Dp “Danae”, Hussein Ahmed Kassim, 1962-1965
Demolido por Massawa, em El wahabi, em 22 de Outubro de 1965

Do vapor, por precaução, foram desembarcados 4 passageiros, sendo 3 homens e uma senhora, filhos do capitão do vapor, que foram recolhidos pela lancha-motor dos pilotos, que os trouxe para terra, sendo entregues aos cuidados do sr. Burmester.
- - - - - -
Compareceram na Foz os Bombeiros Voluntários do Porto, Portuenses, Invicta e a Cruz Vermelha, que montou um posto de socorros. Neste posto foram pensados o piloto sr. Manuel Reis e o marítimo Eusébio Fernandes Amaro, feridos nos dedos da mão direita, quando passavam os cabos de arame para terra.
- - - - - -
Como antes referido, na margem da Foz, juntou-se imensa gente que, evocando a tragédia do “Deister”, estava a ver quando o “Stahleck” tinha o mesmo fim. Foram momentos de horrível ansiedade, espectativa atroz! E quando o vapor, safo da areia, seguiu mar em fora a caminho de Leixões – por entre a multidão passou uma rajada aterradora!
Todos ficaram com a impressão que o “Stahleck” ia numa marcha para a morte como acontecera ao “Deister”! E então, aquela gente toda, sobretudo as mulheres, entraram num berreiro lancinante! Felizmente, o “Stahleck” não ia arrombado e lá foi aninhar-se, com segurança na bacia de Leixões, até ver se pode entrar no Douro.
Quando terminarão estas cenas lancinantes e que tanto nos prejudicam? Dizem os entendidos que, ao menos, era possível saber quando se não deve teimar em vencer a garganta da barra!
(In jornal “Comércio do Porto”, terça-feira, 16 de Abril de 1929)

Sem comentários: