É evidente que a bordo reina a melhor disposição e a melhor confraternização entre portugueses e alemães, e assim se passam rapidíssimas as horas até ao momento em que todos se reúnem na ponte de comando. Vai proceder-se a uma solenidade que a todos interessa e que muito particularmente diz respeito aos portugueses.
Terminada a viagem, a todo o vapor, de seis horas, e alcançados os melhores resultados com as experiências, o “Quanza”, será entregue aos representantes da Companhia Nacional de Navegação, e, sob o comando português, içará à ré a bandeira de Portugal.
Há o silêncio pesado das grandes ocasiões, criados servem champanhe e é o sr. almirante Pinto Basto quem, em primeiro lugar, toma a palavra para agradecer à casa Blohm & Voss a forma como cumpriu o seu contrato, excedendo-o até. Declara-se satisfeito e felicita o sr. Rudolf Blohm pela forma como se dedicou à construção do navio português, pois que, declara, quem constrói transatlânticos como o “Europa” e o “Bremen” pouco lhe interessaria, porventura, a construção de um paquete de menor tonelagem do que a daqueles. Agradece, em nome da C.N.N., e termina brindando pelos estaleiros Blohm & Voss.
O sr. Rudolf Blohm agradece, depois, as palavras do sr. almirante Pinto Basto e declara-se satisfeito por haver podido contribuir para o engrandecimento da marinha mercante nacional construindo o “Quanza” que, apesar de limitada tonelagem, muito lhe interessou…
Faz amáveis referências ao sr. visconde de Atouguia e brinda pela C.N.N. e pelo comandante do “Quanza”.
Após o sr. visconde de Atouguia haver agradecido em seu nome e no da Companhia que ali representa, o sr. ministro de Portugal em Berlim ergue um viva à Alemanha e a Portugal, secundado entusiasticamente por todos, ao passo que no mastro da ré sobe orgulhosa a bandeira portuguesa.
Momento inesquecível em que o “Quanza” transitou do comando alemão para o comando português e todo aquele navio passou a ser território nacional. Silenciosos, comovidos, todos os presentes ficaram a olhar a bandeira da pátria, enquanto outra flamula era içada – a bandeira da Companhia Nacional de Navegação…
Eram seis horas menos um quarto. Todos os alemães felicitam os portugueses e assumem, com toda a evidência, a atitude de quem está em casa alheia mas se sente bem. Tão bem como os jornalistas portugueses têm sido recebidos e se encontram hospedados na Alemanha.
Uma hora mais tarde, há o jantar. Mesa de honra a que preside o sr. almirante Pinto Basto, glória da marinha de guerra portuguesa; jantar que decorre na mais franca confraternização, estabelecendo o mais intimo e sincero contacto entre um povo do norte e outro do sul. Falam, comemorando a primeira viagem de experiências do “Quanza”, os srs. almirante Pinto Basto, Rudolf Blohm, visconde de Atouguia, ministro Bartolomeu Ferreira e o cônsul Casanova.
O discurso deste ilustre diplomata era assim concebido e foi pronunciado em português:
Exmos srs. almirante Pinto Basto, capitão Correia Leal, Blohm & Voss, comandante Harberts e meus senhores – Já em território português, as minhas primeiras palavras são para saudar, como representante da República Portuguesa, todas as autoridades hamburguesas, a Câmara de Comércio e toda a imprensa que, com tanto carinho e galhardia, receberam os representantes da imprensa portuguesa, cumulando-os de distinções, tão sentidas e tão especiais, que a todos nós portugueses, muito nos sensibilizaram, e das quais, estou seguro, novos correntes de simpatia e de interesses comuns hão-de resultar para ambos os países.
A imprensa é hoje o maior e o melhor condutor para se conhecer bem os povos: é, pois, para vós, dignos representantes da imprensa do meu país, a quem saúdo e felicito muito afectuosamente, pela obra nacional que acabastes de prestar, apelando para que digam em Portugal o muito que viram, o que é e o que vale o povo alemão e descrevam as muitas, espontâneas e significativas manifestações de amizade com que foram aqui recebidos.
«Sinto deveras que a madrinha do “Quanza”, minha mulher, não esteja actualmente nesta cidade para poder assistir a esta linda festa em que a Companhia Nacional de Navegação, aqui representada pelo ilustre marinheiro sr. almirante Pinto Basto, e capitão sr. Correia Leal, membro do conselho fiscal, timbra sempre em dar a nota de patriotismo e o exemplo de quanto vale a constância, a fé e uma honrada administração».
Na sua ausência, permita-se-me que leia parte da carta que a madrinha do “Quanza” dirigiu ao presidente de honra da referida Companhia, sr. Jaime Thompson:
«Ao baptismo do “Portugal” hoje “Quanza”, nome este ao qual hoje me acho intimamente ligada por ser sua madrinha e também minha Pátria adoptiva, desejo infinitas venturas. Português como é este novo navio para ser timonado por heróicos e gloriosos marinheiros lusitanos, os navegantes mais audazes, destemidos e os mais afamados do mundo, estou certa que a sua nova vida será mais uma poderosa alavanca e um elemento de progresso para Portugal, bem como uma indispensável artéria de ligação entre a Metrópole e as nossas colónias de além-mar. «Vai com Deus» foi a enternecida frase que eu pronunciei momentos antes do baptismo do meu afilhado; esse baptismo fi-lo com uma indivisível ternura e enlevo de alma com o delicioso vinho do Porto, néctar divino que é a sagrada seiva das entranhas da terra portuguesa. Que o Portugal altaneiro, orgulhoso do seu nome e história, que repercute por todo o mundo, quer seguindo placidamente a esteira das suas seculares rotas marítimas, quer afrontando, desafiando e vencendo sempre com a sua estóica galhardia as tenebrosas iras de Neptuno, seja para os nossos irmãos afastados da Pátria como um alado mensageiro, e nele, tripulantes e hóspedes, sob a bandeira das quinas, encontrem sempre a realização dos seus sonhos, das esperanças fagueiras e a inquebrantável fé no seu trabalho e nas sublimes qualidades para maior glória e engrandecimento de Portugal!»
Estas enternecidas palavras faço-as também minhas, comungando com fervoroso ardor na sua fé e amor pela nossa querida e grande Pátria.
O “Quanza” fica desde hoje sob o comando de um grande marinheiro, que possui já uma longa e honrosíssima folha de serviços heróicos e distintos: esse valente, esse verdadeiro lobo-do-mar, que é o nosso amigo, sr. Alberto Harberts, a quem saúdo cheio de comoção e respeito, alia às suas qualidades de audaz navegante, o dom especial de se fazer querer por todos, pelo seu grande e comprovado valor, simplicidade, lhaneza e afectividade.
Não se lhe ouve a voz firme e potente do comando, e, contudo, é cegamente obedecido: para as tripulações não é um chefe, é um grande amigo e carinhoso protector. Honra lhe seja feita!
Não posso nem devo deixar de me referir neste momento à pessoa ilustre do distinto engenheiro naval, visconde de Atouguia, que desde há longos meses aqui reside em missão especial da Companhia Nacional de Navegação, e, ao saudá-lo também com grande simpatia e afecto, devo declarar que, se por acaso desconhecesse a sua velha tradição de homem de bem, e de verdadeiro fidalgo em toda a extensão da palavra, uma prova tive há meses que só por ela se imporia à consideração, ao respeito e à nossa admiração: não narro aqui o caso para não susceptibilizar a sua excessiva e imperdoável modéstia, tão rara nestes tempos que vão correndo; seja-me apenas lícito declarar que, desse facto ocorrido entre mim, cônsul geral, e o visconde de Atouguia, dei imediato conhecimento ao meu governo e à presidência da Companhia Nacional de Navegação, para que, oficialmente, se lhe pudessem render as homenagens a que tem um forte jus pelo seu procedimento altruísta. Vejo, pois, partir com saudade tão distinto português, que só deixa admiradores, e bons amigos neste babilónico meio industrial.
Aos construtores do “Quanza”, engenheiros da casa Blohm & Voss, de reputação mundial, presto a minha homenagem de gratidão pelo magnífico paquete que nos construíram: deram-nos um novo corpo, são e viril: nós, portugueses, transmitir-lhe-emos a nossa alma, cheia de grandeza, fé e lirismo, para que, quando este hercúleo corpo se torça e gema em convulsões de raiva e luta contra os indómitos mares que há-de cortar com a sua quilha, a alma seja sempre forte, destemida e poderosa, subjugando todas as fúrias do terrível Adamastor por nós já tantas vezes vencido e humilhado no infernal Cabo das Tormentas.
Senhores, comandante, oficiais e tripulantes: que o destino e a boa estrela vos guie sempre, são os sinceros votos que faço de todo o coração. Portugal, a nossa querida Pátria, vos saúda e espera com alegria a vossa chegada aos seus portos, a chegada de mais este pedaço de terra portuguesa, deste poderoso factor que muito há-de contribuir para a grande obra do ressurgimento nacional.
. . . . . . . . . . . .
Em nome dos jornalistas portugueses, falou Benoliel, de «O Século», agradecendo e dizendo que os representantes dos jornais do seu país, quando deixassem Hamburgo, levariam consigo uma grande saudade.
Seguiu-se-lhe o nosso colega Morais Palmeiro que, em alemão e, por motivo de uma saudação recebida do sr. ministro da Alemanha em Lisboa, brindou pelo sr. barão von Balligand e pelas relações luso-alemãs. Entusiasticamente secundado, terminou no meio das mais francas demonstrações de aplauso.
. . . . . . . . . . . .
Seriam dez horas da noite - meia hora mais cedo da prevista pelos técnicos – quando o “Quanza” ancorou no porto de Hamburgo. Muito satisfeitos e louvando as excelentes instalações de bordo, todos os convidados se retiraram.
Nós, portugueses, trazíamos na alma a sincera alegria de um lindo passeio e de sabermos a marinha mercante nacional tão galhardamente representada em território estrangeiro.
(In jornal “Comércio do Porto”, quarta, 11 de Setembro de 1929)