segunda-feira, 25 de junho de 2018

História trágico-marítima (CCLVII)


Porto, 1900
O temporal e a cheia no Douro
1ª Parte

Em todo o dia de ante-ontem caiu sobre a cidade um forte temporal, com ventos variáveis, de sul e sudoeste. A ventania desabrida, destruidora, acompanhada de chuva incessante, começou a fazer-se sentir na madrugada de Domingo, destelhando casas, deslocando clarabóias e deitando à terra os arvoredos dos sítios mais expostos.
Todavia, onde o temporal actuou mais, causando prejuízos avaliados em centenas de contos de réis, foi no rio. À ventania vieram juntar-se as águas do alto Douro, em volume extraordinário, de sorte que na noite de Domingo, quando quiseram acautelar os valores constituídos em navios e cargas muito importantes, já mal lhes puderam valer.
A faina foi enorme durante a noite, não em procura dos ancoradouros mais abrigados, porque a cheia e a corrente de água, intensíssima, o não permitia, mas sim em proceder-se a amarrações sólidas, em revestir os costados dos navios com resistentes troncos de madeira para não se escangalharem de encontro aos cais, e, finalmente, reforçá-las com potentes antenas.
No entanto, valha a verdade, era de prever um estado anormal no rio, visto a experiência ter demonstrado por muitas vezes a série de factos que agora se deu. A neve caiu abundantemente na segunda quinzena de Janeiro e primeiros dias do corrente mês de Fevereiro, cobrindo todas as eminências. É claro que com as primeiras chuvas abundantes e quentes, a neve, descendo das montanhas, iria aumentar imensamente os caudais, e as inundações seriam um facto. Foi o que sucedeu. Não obstante, as prevenções foram tardias e os resultados tristes patentearam-se e patenteiam-se ainda aí.

Vista panorâmica do Porto, cidade e rio, cerca de 1900
Postal ilustrado da série "Estrela Vermelha"

A cheia
Às 10 horas da noite de Domingo começou o rio a sair do leito. Dados os primeiros rebates do facto, muitas pessoas da população ribeirinha e trabalhadores fluviais afluíram às margens, a despeito da chuva e do vento. A inundação ameaçadora oferecia esse espectáculo belo-horrível que tanto impressiona o espírito. O sussurro da corrente, dos cachões e dos redemoinhos, as vozes de comando a bordo das barcaças e dos navios de alto mar; a gritaria que sempre acompanha as manobras marítimas, tudo isto era um espectáculo intraduzível.
À 1 hora da madrugada já os cais de Gaia estavam alagados, como o estavam a rua de Miragaia e Monchique, tentando a água galgar o cais da Ribeira. Duas horas mais tarde já a inundação chegava aos arcos da Ribeira e à entrada da rua Direita em Vila Nova de Gaia. De enchente tão acelerada, tão rápida, não há memória.
Quando amanheceu viu-se então a imponência da cheia e registaram-se os desastres. Toda a avenida Diogo Leite, em Gaia, todos os caminhos marginais até ao Cabedelo e do lado do Porto os locais já indicados, inundados! É claro que paralisou todo o comércio e o trabalho ribeirinho nas duas margens.
Na eventualidade de ainda avolumarem mais as águas, os habitantes da rua Direita até à do Sacramento, em Gaia, tomaram logo precauções, sucedendo outro tanto do lado do Porto.
Vem a propósito dizer que a polícia da 6ª esquadra (Ferreira Borges), ao ter notícia da rápida inundação percorreu os estabelecimentos do cais da Ribeira prevenindo os respectivos donos, para que pusessem a salvo os seus haveres, prevenindo também os proprietários das barracas, da venda de sardinha salgada, proximamente aos Guindais, para o mesmo efeito. Porém, nem tudo pôde ser salvo, tão vertiginoso foi o avanço da água.
O volume desta acima do nível ordinário era ontem de mais de 2 metros, e a velocidade da corrente de 10 milhas por hora, sendo ainda esperada alteração nestes números, visto aguardaram-se novas águas vindas de cima, nomeadamente de Espanha.
Às 5 horas e meia da madrugada os bombeiros municipais prestaram bons serviços no cais da Porta Nobre, iluminando-o com seis faróis de petróleo, a fim dos trabalhadores fluviais poderem trabalhar.

Registo dos sinistros
Os vapores “Sir Walter” e “H. Wicander”
O vapor inglês “Sir Walter”, de 298 toneladas, entrado na barra no dia 9 do corrente, procedente de Leith, com carregamento de carvão para os srs. C. Coberley & Cª., achava-se fundeado próximo da ponte D. Luiz I, do lado de Vila Nova de Gaia, onde procedia à descarga.
Parece que um barco rabelo viera, impelido pela corrente do rio, quebrar-lhe dois cabos de arame que lhe serviam de amarração. O vapor garrou, correndo rio abaixo até ao antigo sítio do Postigo dos Banhos, indo bater de encontro ao vapor sueco “H. Wicander”, que igualmente havia sido arrastado até ali, arrancado do seu ancoradouro, na margem esquerda, defronte da rua Direita, de Vila Nova de Gaia.
Do choque entre os dois vapores resultou o “Sir Walter” ir a pique, depois de ter feito dois rombos no casco do “H. Wicander”, do lado da proa. Como, porém, essas aberturas ficavam acima da linha de água, o referido navio sueco pôde resistir e conservar-se direito. Turmas de trabalhadores ocuparam-se logo depois em reforçar-lhe a amarração.
Quanto ao “Sir Walter” tinha fora da água os mastros e a chaminé. Às 3 horas e meia da tarde a fragata de carga “Dª. Anna”, levada pela corrente, despedaçou-lhe o mastro da ré e a chaminé, quedando-se enrascada com o “H. Wicander”, submergindo pouco depois.
Este vapor que é de 770 toneladas, viera de Estocolmo e Memel (porto actualmente identificado por Klaipéda, na Lituânia), com carregamento de ferro e aduela à firma Jervell & Knudsen, tendo entrado a barra no dia 6 do corrente.

O patacho inglês “Bella Rosa”

Desenho de navio do tipo patacho, sem correspondência ao texto

Características do patacho inglês “Bella Rosa”
Armador: A. Goodridge & Sons, St. John’s, Terra Nova
Nº Oficial: N/d - Iic: N/d - Porto de matrícula: St. John’s
Construtor: Upham, Brixham, Inglaterra, Junho de 1874
Arqueação: Tab 149 Tons
Dimensões: Pp 29,90 mts - Boca 6,81 mts - Pontal 3,84 mts
Propulsão: À vela
Equipagem: 8 tripulantes

Este navio inglês, de 149 toneladas, vindo da Terra Nova, no dia 30 de Janeiro findo, com bacalhau para os srs. Martins de Sousa & Cª., largando também o ancoradouro em que estava, no Terreiro da Alfândega, desceu até à Porta Nobre, onde os ferros se pegaram no fundo, quase a meio do rio. A tripulação içou sinais pedindo correntes e ferros. Como não houvesse meio de os levar a bordo, pela Alfândega foi requisitado o auxílio dos bombeiros voluntários de Leça e Matosinhos, que se apresentaram com a máxima celeridade, depois das 10 horas da manhã, com o seu carro porta-amarras, salva-vidas e foguetões.
Foram lançados dois destes sem resultado; mas o terceiro pôde deixar entre os mastros do navio um chicote, por meio do qual foi estabelecido o serviço de salvamento dos tripulantes, que eram em número de oito. Neste trabalhão, seguido com ansiedade por milhares de pessoas que se comprimiam de encontro às grades da rua da Nova Alfândega e se aglomeravam nas janelas dos prédios daquela rua e no cais da Alfândega, foram os bombeiros voluntários de Leça auxiliados pelos voluntários desta cidade e alguns populares.
Como é natural, houve tristes peripécias, que por vezes fizeram estremecer de pavor os espectadores desta cena, como sucedeu quando rebentou o cabo por onde corria o saco salva-vidas, que, felizmente, tinha deixado já a pé e enxuto o marinheiro que conduzia. Por duas vezes também, os náufragos, na sua viagem aérea, pousaram na água, em razão do afrouxamento dos cabos pelas guinadas do patacho. Completamente encharcados, foram, como os seus outros companheiros de desventura, socorridos depois pelos consignatários do navio, srs. J.T. Costa Basto & Cª.
O capitão do “Bella Rosa”, sr. Coward, enquanto os marinheiros foram salvos pelo cabo de vai-vem, conservou-se ao leme, para atenuar o efeito da violência da corrente. Quando mais ninguém restava a bordo, veio por seu turno para terra.
Aos bombeiros voluntários de Leça foram dirigidos calorosos elogios pelos seus humanitários serviços, principalmente ao seu comandante efectivo, sr. José Luiz de Araújo, ao comandante honorário sr. José Adrião da Rocha e adjunto de comando, sr. Alfredo de Vasconcelos.

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