quinta-feira, 26 de março de 2015

História trágico-marítima (CXLII)


Mais uma catástrofe marítima
O naufrágio do vapor norueguês "Jamaica"

Acabara mal o ano de 1914 para a marinha mercante na costa norte, com os naufrágios dos vapores “Silurian” e “Bogor”, em 12 e 13 de Dezembro último, e foi o primeiro dia deste ano assinalado pelo naufrágio do vapor norueguês “Jamaica”, em frente à praia de Angeiras, havendo a lamentar a perda de 13 homens, pois que da tripulação apenas se salvou um, que o mar arrastou para um areal ao sul de Angeiras.
Logo que de manhã houve alarme do naufrágio, foi afixado nos lugares do costume cartazes dando conta da perda do vapor norueguês e da situação angustiosa da tripulação e logo os jornalistas seguiram de automóvel para o local da catástrofe, de onde mandaram mais elementos para um segundo cartaz, para satisfazer a justificada ansiedade do público.

Em Angeiras – Alarme de naufrágio
A noite de quinta para sexta-feira esteve muito tempestuosa e no mar, agitadíssimo, a tormenta foi grande. Por volta das quatro horas da madrugada, uns soldados da guarda-fiscal, do posto de Lavra, extremo do concelho de Matosinhos, a ligar com o de Vila do Conde, passando à praia de Angeiras, notaram que no mar, próximo de terra, se viam os faróis de um vapor pairando naquelas alturas.
Como ainda há pouco ali se tinha dado um naufrágio, recearam os mencionados militares que o navio viesse mais à terra e se perdesse. Portanto, sofrendo os rigores do vendaval e no cumprimento do dever, ali se conservaram de vigia. O vapor navegava de manso, ora um pouco para o sul, ora mais ao norte, mas sempre próximo de terra. A sirene conservava-se silenciosa e nenhum sinal de perigo se fazia de bordo.
O sítio, porém, é perigoso por causa das rochas, como todos sabem. Num dado momento o vapor veio muito à terra e daí a pouco navegava para o norte; mas com custo e a certa altura pareceu aos soldados que o navio parava, roçando nas pedras. A breve trecho ouviram o silvo da sirene e pelos faróis pareceu-lhes que as vagas se apossavam do vapor sem governo e no qual acendiam fogachos, pedindo socorro. O navio acabava de encalhar. Dava à costa no meio do fragor da tempestade inclemente.
Passava das seis horas da manhã, estando, portanto, ainda muito escuro. As vagas alterosas apagaram rapidamente os faróis e de terra já não se podia ver o vapor, e foi nessa altura que um dos soldados da guarda-fiscal, montado em bicicleta, abalou estrada fora a caminho de Matosinhos e Leça, a fim de reclamar socorros.
A viagem foi, sem dúvida, fatigante e demorada, porque os caminhos tem os pavimentos escalavrados e àquela hora a escuridão era grande. Só assim se podia ir dar o alarme, porque os postos da guarda-fiscal não estão ligados por telefones, o que seria de grande vantagem para tais casos.
Eram oito horas e meia da manhã quando o alarme foi dado na secção aduaneira de Matosinhos, seguindo-se na estação dos bombeiros voluntários de Matosinhos-Leça, no posto de socorros a náufragos e na delegação da alfândega, em Leixões.

Os socorros em Angeiras
Logo que foi dado o alarme, seguiram para Angeiras os bombeiros voluntários de Leça com o seu material; o pessoal e material de socorros a náufragos da estação da Cantareira, à Foz, os bombeiros voluntários e a Cruz Vermelha do Porto; e a carreta com o barco salva-vidas “Leixões”, tirada por três juntas de bois.
Quando em Angeiras apeamos do automóvel e chegamos à praia, sentimos uma tristeza imensa ao deparar com o quadro comovente que se nos apresentava, ao primeiro golpe de vista. A uns duzentos metros da praia, entre as vagas espumando iradas, estava ainda o casco do vapor “Silurian” com a chaminé tombada sobre a ponte, que tem resistido ao embate das ondas; e mais além uns 300 metros, sobre as pedras denominadas “Leixão do Norte da Forcada” com a popa um pouco submersa e com a proa voltada ao mar, o vapor “Jamaica”, no qual o mar indomável batia com ímpeto e varria o convés.
O céu estava cor de chumbo e a chuva era abundante. Na praia, animada de gente, viam-se todos a postos com os seus materiais; mas ninguém podia prestar socorro aos desgraçados tripulantes que diziam estar a bordo e em tão angustiosa situação, que nem sequer o mais leve sinal, pedindo socorro, podiam fazer!
Um drama pungente! E o que mais contristava era ver como que manietados, sem poderem prestar socorro aos inditosos tripulantes, todos os valiosos elementos que ali afluíram pressurosos, cheios de coragem e abnegação.
Os bombeiros e pessoal de socorros a náufragos não podiam despedir por foguetões um cabo sequer, porque o “Jamaica” estava a 500 metros e o barco salva-vidas “Leixões”, nem tentavam deslocá-lo do areal, porque as vagas opunham uma resistência invencível e o vapor naufragara num ponto perigoso, cercado de rochas.
E foi assim, sob um pesar enorme, que vimos os bombeiros e os tripulantes do salva-vidas “Leixões”, tendo à frente o valente e arrojado cabo-de-mar José Rabumba o «Aveiro».
O desânimo entre toda aquela boa gente, cheia de abnegação, era grande por não poder prestar socorro, tanto mais que o sargento sinaleiro Ivo Dias Maia, afirmava ter visto um homem a bordo, por volta das 11 horas e meia da manhã e que não mais tornou a ver depois que uma grande vaga galgou o navio e arrebatou um escaler que pendia dos turcos.
Na praia de Angeiras lembra-nos ter visto os srs. chefe do departamento marítimo do norte, capitão de mar-e-guerra Cunha Lima; capitão do porto de Leixões, capitão-tenente Manuel Adelino de Sousa; adjunto do mesmo chefe, tenente Queiroz; cônsul da Noruega, Klaus St. Jervell; drs. António Gonçalves de Azevedo, Sousa Feiteira, Queiroz de Magalhães e Fernando da Silva; administrador do concelho de Matosinhos, dr. Teixeira Rego; Rodrigo Guedes de Carvalho; major Alberto Laura Moreira e os comandantes e 2ºs. comandantes dos bombeiros voluntários de Leça e do Porto, etc.
Ante-ontem também foi ao local da catástrofe o governador civil do distrito, sr.dr. Pereira Osório, que ali este a inteirar-se do ocorrido. Esteve igualmente ali o sr. Alberto Botelho, informador da Sociedade Humanitária que, por incumbência do presidente da direcção, sr. Conde de Samodães ofereceu vários reconfortantes à Cruz Vermelha e bombeiros voluntários para o que fossem necessários.

Retirada de parte dos socorros
Medidas preventivas durante a noite
À tarde retiraram de Angeiras todos os materiais da estação de socorros da Cantareira e dos bombeiros, que não podiam ser utilizados de terra, ficando o semáforo, o salva-vidas “Leixões” com a sua tripulação, a Cruz Vermelha e alguns bombeiros voluntários de Leça e Porto, de prevenção durante a noite, para acudirem de pronto, no caso que fosse possível valer a algum naufrago que viesse a terra.
Assim o combinara o sr. capitão do porto de Leixões que ali se manteve toda a noite e que mandara seguir para Angeiras o barco salva-vidas “Cego do Maio”, da Póvoa de Varzim.
O sargento sinaleiro Dias Maia, que se conservou sempre vigilante no seu posto, viu às nove horas e meia da noite que havia uma luz a bordo, parecendo-lhe que era na câmara junto da chaminé. Essa luz foi de curta duração; mas ainda assim, de terra foram feitos sinais com lanternas, incitando a tripulação a esperar pelo dia e a ter esperança de socorro. Não se sabe se tais sinais foram entendidos.
Aí pelas 2 horas da madrugada, em que o luar descobriu um pouco, pode ver-se pelo óculo de grande alcance que o mar tinha derrubado a chaminé e o mastro grande, tendo a proa virado um pouco para nordeste. O mar tinha embravecido mais e causava maiores danos no navio. E assim foram todos passando a noite, sempre atentos e de vigília, a ver quando podiam prestar os seus serviços.

O vapor “Jamaica”
O vapor norueguês “Jamaica” foi construído em 1892 e pertencia a H. Westfal Larsen, da praça de Bergen. Tinha 407 toneladas de registo e era tripulado por 14 homens, sendo capitão o sr. Vik Torbjorn. Tendo vindo numerosas vezes ao rio Douro, saíra de Cardiff em 25 de Dezembro, consignado a Jervell & Knudsen, transportando cerca de 800 toneladas de carvão para a firma J.H. Andresen, Sucessores, do Porto.
O vapor foi visto ao fim da tarde de quinta-feira em frente a Leixões, mas não quis entrar, e à noite fez-se ao mar, afastando-se para um pouco ao norte.

Características do navio
Nº Oficial: N/s - Iic: J.V.B.W. - Porto de registo: Bergen
Armador: Westfal-Larsen & Co. A/S, Bergen, 1909-1915
Construtor: Bergens Mekaniske Verksteder A/S, Bergen, 1892
ex “Jamaica”, Adolph Halvorsen, Bergen, 1892-1909
Arqueação: Tab 721,00 tons - Tal 514,00 tons
Dimensões: Pp 60,96 mts - Boca 8,53 mts - Pontal 4,02 mts
Propulsão: 1 máquina do construtor (BMV) - 1:Te - 100 Nhp
Equipagem: 14 tripulantes

Um náufrago salvo a nado
Das 4 e meia para as 5 horas da madrugada de ontem, apareceu na praia de Angeiras um pescador, alarmando toda a gente com os seus brados, dizendo que ao sul, no areal, havia aparecido um estrangeiro todo encharcado, que caminhara, em grande gritaria, para a povoação de Lavra, onde fora recolhido em casa do proprietário sr. Manuel João.
Imediatamente para ali seguiram algumas pessoas e o pessoal da Cruz Vermelha, que, guiados pelo mencionado pescador, verificaram que era verdade o aparecimento de um sobrevivente, que na aludida casa do sr. Manuel João havia recebido carinhoso agasalho e onde já lhe tinham dado alguns reconfortantes.
O pobre náufrago escapara, porque o mar o arrastara para uma praia de areia. Ainda assim, apresentava um ferimento na cabeça por ter batido em alguma rocha, da qual se pudera libertar, nadando. O náufrago foi transportado para o posto da Cruz Vermelha, instalado em Angeiras, onde lhe fizeram curativo.
Velou ali carinhosamente pelo sobrevivente a srª D. Maria de Noronha Menezes Portugal (Prelada) e o sr.dr. Rodrigues Pereira. Passado algum tempo, esteve ali a falar com o homem o sr. Jervell, cônsul da Noruega.

Um cadáver à praia
Mais tarde, o mar arrojou à praia o cadáver de um homem, que apresentava alguns ferimentos, sem dúvida por ter andado aos baldões sobre as rochas. Quando o náufrago sobrevivente estava um pouco mais bem-disposto e pronto para seguir para o Porto, foi com o sr. cônsul da Noruega até à praia e ali reconheceu o cadáver como o de um seu companheiro de nome Vik.
O cadáver foi removido para o cemitério de Lavra, e o fogueiro sobrevivente veio em automóvel para o Porto, recolhendo a um quarto do Hotel Europa, à praça da Liberdade.

O que diz o sobrevivente
Do horroroso naufrágio que tantas vidas roubou, pondo um denso véu de tristeza na alegria do dia de ante-ontem, salvou-se, lutando corajosamente contra a morte, no cimo das vagas alterosas e enraivecidas, o fogueiro Nils Frederiksen, de Christiania, que veio para o Hotel Europa, à praça da Liberdade.
Encontrámo-lo graças à amabilidade do sr. Alfredo César Coutinho, empregado superior da casa Jervell & Knudsen, conseguindo falar-lhe no pequeno quarto do hotel, onde o vimos, no leito, sob o abalo do perigo porque passara, tendo ainda diante dos olhos a trágica visão da morte, a dois passos, surgindo para o empolgar do seio negro das ondas enraivecidas.
Começou a viagem debaixo de um temporal desfeito. Ao aproximarem-se da barra do Douro, na noite de 31, viram ser impossível o seu acesso, devido ao estado do mar, cada vez mais alteroso e ameaçador. Foi assim que o capitão, vendo que não podia entrar na barra se fez mais ao largo, indo pairar nas alturas de Vila do Conde.
Depois, explica o fogueiro Frederiksen, um moço norueguês de 20 anos, louro e imberbe, que conseguiu salvar-se da morte traiçoeira, no naufrágio do dia 1 de Janeiro, às 5 horas da manhã.
Foi nesse momento, disse, que o vapor tocou numa rocha em frente a Angeiras, como depois disseram chamar-se a costa onde naufragara; apesar da noite tempestuosa, da chuva que caía, fora-se deitar e dormia quando um forte embate o acordou. Levantou-se de um salto, espavorido e tateando, através da escuridão que envolvia o vapor, e veio para a tolda que as vagas iam invadindo.
À volta, a escuridão era mais densa, e as vagas rugindo, como uma alcateia de lobos ferozes acossados pela fome, iam estreitando o seu círculo de morte, esmagando no seu ímpeto o vapor que lentamente se afundava. Olhou em volta. A terra era um ponto negro distante.
Alguns dos companheiros, o primeiro maquinista, o primeiro piloto, dois fogueiros e dois marinheiros tinham já morrido. Arrebatara-os as vagas da fonte onde se encontravam juntos. Ele então, com os outros sete sobreviventes, o capitão, o segundo maquinista, o despenseiro, o cozinheiro e três marinheiros refugiaram-se no rancho da proa, acossados pelo mar que invadia o navio.
Ali, viam a cada momento a morte surgir como para empolga-los. Foram momentos de angústia infinda e de agonia atroz entre o céu e o mar revolto, e não estando longe a terra como a miragem do deserto fulgindo aos braços erguidos para ela aflitivamente.
Os sinais de socorro que via fazer da praia ainda mais ansioso o tornava. Veio um foguetão cair perto do vapor sem poder atingi-lo, tornando ainda maior o desespero de todos os pobres náufragos, tiritando no exíguo compartimento e não podendo corresponder àqueles sinais por a água ter invadido já o porão.
E diz-nos ainda uma coisa admirável que só as almas dos marinheiros habituados ao perigo sabem compreender, a abnegação de todos eles indo buscar à força o capitão que se encontrava na ponte e que resistia, no cumprimento do dever que ali o prendia.
Mas o mar implacável ia avançando sempre, acabando por arrombar as frágeis portas do rancho dos marinheiros, onde se encontravam. Atiraram-se então às vagas, como último recurso. Não se lembra como isso se fez, nem o que sucedeu aos outros. Ele e o cozinheiro foram os primeiros a atirar-se à água, perdendo de vista, por entre o fragor das ondas e o assobiar do vento, o seu companheiro.
Lutando, disputando a vida, veio nadando, ora por cima das ondas, ora resvalando pelo dorso das montanhas de água, ora ferindo-se nas arestas das rochas, até à praia, a uns mil metros um pouco para o sul, quase roto, tendo conseguido trazer ainda consigo uma carteira com alguns xelins, diversos papeis e vários retratos, entre eles o da noiva, que o espera lá ao longe, nos fiordes distantes, suspirando pela sua volta.
O mar atirou-o, enfim, contra a praia, a que ele se agarrou com desespero, lutando ainda contra o mar. Levantando-se, caindo aqui e além, a escorrer água, lá seguiu pela praia escura, até o povoado de Lavra, onde encontrou uma pessoa que o recolheu caridosamente.

O vapor desfeito – Treze mortos
Logo que amanheceu, viu-se que o vapor “Jamaica” estava a desfazer-se e que pouco a pouco mergulhava, tendo as vagas impetuosas partido a proa. Às dez horas da manhã apenas se viam fora de água os topos dos turcos e o mar atirava à praia alguns destroços do navio naufragado.
Assim todos se convenceram de que a bordo já não podia haver uma única pessoa viva e que tendo-se salvo o fogueiro morreram, portanto, treze pessoas, que compunham o resto da tripulação, incluindo o capitão.
(In jornal “Comércio do Porto”, Domingo, 3 de Janeiro de 1915)

O naufrágio do “Jamaica”
Do vapor “Jamaica” naufragado no dia 1 do corrente, em frente à praia de Angeiras, já nada se vê e o mar, que se tem conservado agitado, vem arrojando à praia destroços do navio, que se está desfazendo a pouco e pouco.
O fogueiro, único sobrevivente desta grande catástrofe, que se encontra hospedado no Hotel Europa, está restabelecido e já tem passeado pela cidade.
A Angeiras foram ante-ontem e ontem alguns capitães e oficiais de vapores estrangeiros surtos no rio Douro, a fim de ver o ponto em que se deram os últimos naufrágios.
(In jornal “Comércio do Porto”, terça, 5 de Janeiro de 1915)

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