quinta-feira, 6 de março de 2014

História trágico-marítima (CXXX)


O naufrágio da canhoneira “Guadiana”

Lisboa, 3 de Outubro – Hoje, ao meio-dia, a canhoneira “Guadiana”, do comando do 1º Tenente sr. Anadia, que estava em Cascais para o serviço de pilotagem da barra, levantara ferro para seguir para o Tejo por ter sido rendida nessa comissão pelo vapor “Lidador” e dirigiu-se para a barra, encostando a terra pela restinga denominada «Morta», perto do Monte Estoril, em frente do chalet do sr. João Henrique Ulrich, pouco distante do local onde houve ontem um simulacro de naufrágio. Ali ficou a canhoneira encalhada sobre bombordo e com a borda dentro de água, tendo um grande rombo próximo da casa da máquina. Vendo-se em risco, a guarnição desceu para os escaleres e pôs-se ao largo, com receio da explosão das caldeiras.
Acudiram vários escaleres de outras embarcações de Cascais, mas os marinheiros voltaram ao navio e em quatro horas desarmaram-no, passando para os salva-vidas e escaleres todo o material de artilharia.
Consta que o naufrágio foi devido a desarranjo no leme, mas parece que o comandante deixou aproximar o navio mais de terra, porque de outro modo não haveria a perda do navio. A pancada nos rochedos foi de tal forma violenta, que também abriu algumas pedras.
A bordo da canhoneira “Guadiana”, quando se tratava de salvar o material, ficaram feridos levemente alguns marinheiros. Sua Majestade el-Rei, que tinha ido com Sua Alteza o infante D. Afonso ao local do sinistro, também teve um ligeiro ferimento.
Há esperanças que o navio seja posto a nado amanhã.
(In jornal “Comércio do Porto”, terça, 4 de Outubro de 1892)

Foto do encalhe da canhoneira "Guadiana", no Estoril
Imagem de autor desconhecido - colecção Francisco Cabral

Identificação da canhoneira “Guadiana”
Nº Oficial: N/tem - Iic.: G.Q.H.V. - Armamento: Lisboa
Construtor: Desconhecido, Inglaterra, 20.08.1879
Inicialmente foi considerada vapor, depois transporte e finalmente canhoneira de estação em 1833.
Deslocamento: 245 tons.
Dimensões: Pp 32,94 mts - Boca - 5,36 mts - Pontal 2,44 mts
Propulsão: 1 motor compósito, 60 cavalos vapor - Veloc. 9 m/h
Superfície do velame: 284 m2
Equipagem: 38 tripulantes
Artilharia: 3 bocas-de-fogo
O navio chegou a Lisboa a 22 de Outubro de 1879, procedente de Londres, em 7 dias de viagem. Fez parte da Estação Naval de Angola e de Cabo Verde, operou na fiscalização da costa algarvia e desempenhou várias missões na Guiné e Cabo Verde.

Acabou por dar-se uma coincidência notável.
No Domingo teve lugar em frente da praia do Monte Estoril um simulacro de naufrágio para experiência dos socorros; pois no dia imediato, exactamente no mesmo sítio, naufragou, mas desta vez a valer, a canhoneira “Guadiana”, que tinha ido há dias para Cascais, para o serviço de pilotagem. Parece que o sinistro foi devido a vir a embarcação navegando muito à terra e ter dado sobre uma pedra, que lhe arrombou o casco e fez submergir-se. Ao princípio julgou-se a canhoneira completamente perdida, mas as ultimas notícias davam como provável a possibilidade de ser posta novamente a nado.
Eis como um jornal de Lisboa relata o sinistro:
«Cerca do meio-dia de ontem, a canhoneira “Guadiana” que andava bordejando na baía de Cascais, indo até ao canto da fortaleza, foi costeando até ao sítio da Moita, em direcção ao Monte Estoril, a uns 70 metros de terra. Neste lugar, que é todo eriçado de pedregulhos, o navio foi de encontro a uns grandes penedos e, fazendo rombo a bombordo e estibordo, meteu água. Imediatamente a tripulação fez sinais de socorro, subiu aos mastros, receando que pudessem explodir as caldeiras.
De Cascais os marinheiros que estavam na praia já seguiam com ansiedade a marcha do navio, prevendo aquele desastre, que ninguém supunha que se desse, pois não há marinheiro algum que conheça aquela parte da costa, sabendo-a cheia de penedos, pois o mar ali é muito baixo. No entanto, o piloto da “Guadiana”, o sr. José Maria, e o comandante, o sr. 1º Tenente Anadia parece que ignoravam este facto, pois meteram o navio a terra, tanto quanto puderam.
El-rei D. Carlos, que estava na cidadela no momento em que a “Guadiana” passava em frente dela, viu o rumo que o navio tomava, previu o desastre que ia acontecer e, ainda em voz alta, avisou para que se fizessem ao largo.
Logo que se deu o desastre acorreram em socorro da “Guadiana” os escaleres da “Zambeze” e do “Lidador”, da alfândega e as baleeiras do senhor D. Carlos e do senhor infante D. Afonso, e o salva-vidas, que ainda se encontrava no mar, e que teve ensejo de ser experimentado a sério, prestando óptimos serviços.
Todos estes barcos receberam a guarnição da “Guadiana”, conduzindo-a para bordo da canhoneira “Zambeze”, ancorada na baía às ordens de el-rei o senhor D. Carlos, bem como a mastreação do navio naufragado. Felizmente os socorros foram prestados com toda a ligeireza, não havendo nenhum desastre pessoal a lamentar, a não ser um leve ferimento que o mestre recebeu numa das mãos.
Só ao fim da tarde e depois de se reconhecer que os seus serviços eram dispensados, é que os barcos de socorro vieram para a praia, terminando a sua humanitária tarefa. A bordo da “Guadiana” ficaram alguns marinheiros da própria guarnição e também da “Zambeze”, sob as ordens dum oficial, ali permanecendo de noite a trabalhar na reparação dos rombos. Interiormente o navio não sofreu qualquer avaria.
Os senhores D. Carlos e D. Afonso, o administrador do concelho Holbeche e o ministro das Obras Públicas estiveram a bordo da “Guadiana”, assistindo a todas as manobras. À noite chegou o sr. capitão do porto de Lisboa, que se informou do sucedido. A fim de prestar socorros também partiu para o Estoril uma força da Guarda-fiscal, mas não chegou a entrar em exercício.
A canhoneira “Guadiana” devia ser rendida hoje. À noite chegou a Cascais um mergulhador que se dirigiu em seguida para o local do sinistro. É de crer que hoje por todo o dia o navio seja posto a nado.
A “Guadiana” foi construída em Inglaterra em 1879. É de 161 toneladas e tem actualmente a máquina na força de 40 cavalos.»
(In jornal “Comércio do Porto”, quarta, 5 de Outubro de 1892)

O naufrágio da canhoneira “Guadiana”
Devido ao mar estado do mar, que está imensamente agitado, perderam-se todas as esperanças de salvar a canhoneira “Guadiana”, naufragada em frente do Estoril. A vaga impetuosa vai arrastando o pequeno navio pelas pedras e dentro em pouco estará completamente destruída. É uma canhoneira a menos de entre as poucas que o país dispõe e que por certo fará bastante falta.
(In jornal “Comércio do Porto”, quinta, 6 de Outubro de 1892)

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