terça-feira, 10 de dezembro de 2013

História trágico-marítima (C)


A história fantástica do encalhe do
vapor inglês "Douro" na barra do Porto

Sinistro marítimo
Pelas 3 horas e quarenta e cinco minutos da tarde (de 18.09.1883), o vapor inglês “Douro”, que saía a barra com destino a Liverpool, carregado com vinho, fruta e 160 cabeças de gado bovino, encostou às pedras «Forcadas», de onde safou pouco depois, indo para o meio do canal da barra e conseguindo sair finalmente.
Pelas 4 horas e dezassete minutos veio aviso que o navio tinha encalhado ao sul da barra em frente do castelo da Foz, saindo por isso imediatamente o salva-vidas a prestar os socorros que pudessem ser necessários. O mar impeliu o navio para o Cabedelo, onde ficou atravessado e por esse motivo sujeito ao embate furioso de ondas alterosas, que se lhe quebravam ruidosamente no costado.
Como já houvesse bastante água a bordo e o vapor corresse sério perigo, achando-se adornado a bombordo, trataram de passar um cabo para terra, pelo qual a tripulação pode salvar-se. Pelo mesmo cabo, porém, foram alguns dos valentes homens, que se empregam na árdua e heróica faina de salvar o que é possível das embarcações naufragadas na costa, esperando-se que na baixa-mar se pudesse salvar uma parte do gado e da restante carga que o navio conduzia.
O vapor sofreu um rombo na proa, por onde penetrava o mar, dando isto causa a morrerem afogados alguns bois; outros, porém, puderam ser trazidos para terra.
(In jornal “Comércio do Porto”, quarta, 19 de Setembro de 1883)

Anúncio da chegada do vapor "Douro" ao Porto

Identificação provável do vapor inglês “Douro”
Armador: Frederick Leyland & Co. Ltd., Liverpool
Construtor: Oswald, Mordaunt & Co., Woolston, 1880
Arqueação: 728,00 tons
Dimensões: Pp 64,50 mts – Boca 8,30 mts
Propulsão: 1 motor compósito

O naufrágio do vapor “Douro”
O vapor inglês “Douro”, naufragado ante-ontem próximo à barra, conservava-se ontem à noite na mesma posição, sobre a areia do Cabedelo, e julga-se completamente perdido, porque tem um rombo no fundo e é quase impossível arrancá-lo da areia, onde se acha enterrado.
Durante a noite e o dia de ontem foi salva de bordo grande parte da carga, que se compunha de 50 pipas de vinho, 160 bois, fruta, lã e rolhas. Até ontem à noite foram descarregados 52 cascos de várias dimensões com vinho, 62 volumes com lã e rolhas, 211 caixas com fruta e cebola, varias louças e aprestos do vapor e 140 bois, que deram entrada no armazém onde se recolhe o gado para embarque. Os 20 bois restantes foram vítimas do naufrágio. Tanto a fruta, como a cebola e a lã estão avariadas pela água do mar.
Os bois mortos ainda se conservam a bordo, mas já ontem, segundo consta, foram arrematados por diferentes preços, para lhes ser aproveitado o couro e o cebo. Hoje esperam poder salvar a carga restante que ainda existe a bordo. O serviço de fiscalização é dirigido pelo aspirante da alfândega do Porto, o sr. Luís Estevão Couceiro da Costa.
Ontem ao meio-dia, a convite do sr. chefe do departamento marítimo do norte, reuniram-se na capitania do porto o piloto-mor da barra e alguns membros da corporação dos pilotos, os quais, constituídos em tribunal sob a presidência daquele cavalheiro, foram de opinião, segundo as averiguações levadas a efeito, que o naufrágio do vapor “Douro” fôra originado pela imperícia do piloto da barra, que estava a bordo, o sr. Joaquim Rodrigues Lopes. Em vista desta deliberação, foi este senhor condenado na pena de 20 dias de prisão e 15$000 réis de multa.
O sr. Joaquim Rodrigues Lopes vai dar hoje entrada nas cadeias da Relação do Porto, para cumprir a referida pena, devendo ir acompanhado até à prisão por um dos seus colegas.
(In jornal “Comércio do Porto”, quinta, 20 de Setembro de 1883)

O vapor “Douro”
Durante a noite de ante-ontem para ontem foram tirados mais alguns cascos de vinho, de bordo do vapor inglês “Douro”, que se acha encalhado no Cabedelo. O vapor conservava-se ainda direito ontem ao final da tarde.
(In jornal “Comércio do Porto”, quinta, 20 de Setembro de 1883)

O vapor “Douro”
Este vapor, encalhado no Cabedelo, tem sido aliviado de toda a carga e de grande parte dos utensílios de bordo. Ontem de tarde os indivíduos que estavam a trabalhar no vapor abandonaram-no em razão do mar se tornar muito altaneiro e enfurecido.
A Junta de Saúde Pública ordenou que fosse enterrado o gado morto, que se encontrava a bordo do “Douro”. Ontem mesmo procederam a esse trabalho no Cabedelo.
(In jornal “Comércio do Porto”, sexta, 21 de Setembro de 1883)

O vapor “Douro”
Os srs. cônsul e vice-cônsul de Inglaterra, Carlos Coverley, os capitães dos vapores “City of Cork”, “Sir Walter” e “Douro”, e um operário, procederam ontem a uma vistoria ao vapor inglês “Douro”, encalhado no Cabedelo, para verem se será possível pô-lo a nado. Os vistoriadores foram de opinião que, com o emprego de bombas estanca-rios no esgoto do navio, talvez possa vir a ser conseguido o fim em vista.
(In jornal “Comércio do Porto”, Domingo, 23 de Setembro 1883)

Comunicados - Ainda o vapor “Douro”
Na notícia, relativamente ao individuo, que pilotara por saída o vapor inglês “Douro”, há uma inexactidão que, sem alterar o facto, é todavia de suma importância. Esse navio à saída nem tocou, nem pegou em areia, nem encalhou, e tão pouco encostou às «Forcadas», como posteriormente por aí se disse.
O caso deu-se assim. O vapor “Douro” era conhecido por ser de péssimo governo. Na saída, as voltas a dar eram muito curtas, e como não obedecesse ao leme, tão prontamente como o vapor “Benbow” (ágil como uma enguia), que lhe ia na proa, esteve em risco de se despedaçar contra as pedras «Forcadas»; mas só em risco, porque a sofrer por ali avaria, devia ser insignificante. Ali, e a tempo, foi largado o ferro de bombordo. O vapor portou por ele, e foi evitado o sinistro, que esteve iminente.
O “Douro” aproximou-se das duas pedras por estibordo. Se nelas tocasse, os estragos deveriam ser enormes; mas o rombo grande foi no fundo a bombordo, que, conforme o declarou perante muitas testemunhas o capitão do navio, «foi causado pela unha de ferro, que ia à garra, com seis braças de corrente, e que apareceu todo torcido e quebrado!»
Ao largar das âncoras, as amarras de ferro fizeram grande rostilhada à passagem pelos escovéns, e isto fez supor que o estampido procedia do embate do navio contra as pedras. Era ilusão!
Entre os dez pilotos chamados a depôr, seis ou sete declararam «que o navio não tocara nas pedras»; os outros pouco ou nada disseram, e o que prevaleceu para a dura punição que está a sofrer o piloto Joaquim Lopes Rodrigues, foi a parte dada pelo sr. piloto-mor.
Ninguém pode duvidar da perícia deste hábil e corajoso prático da barra, mas podia enganar-se, como parece que efectivamente aconteceu. É homem, e como homem está sujeito a iludir-se, ou poder ser iludido.
Mas, em vista destes esclarecimentos, não poderá haver qualquer procedimento, que atenue as penas, que o infeliz piloto Rodrigues está sofrendo? Severas são as leis militares, mas até ao tambor dá-se um defensor, para que seja respeitada a justiça.
A parte foi dada logo depois do acontecimento. Não houve, portanto, tempo de investigar as circunstâncias, que eram de graves consequências: como efectivamente o foram. Que a parte devia ter sido dada imediatamente, isso não carece de dúvida; mas o que não podia ou mesmo não devia fazer-se, era prejudicar-se o acusado, sem se proceder primeiramente a um rigoroso inquérito. Isto parece de razão.
Privar um homem da sua liberdade; tolher a sua carreira; tirar-lhe o pão, ainda por cima multá-lo; e tudo no máximo da pena, e sem apelação, não parece isso conforme os ditames da justiça, ou da equidade, dando lugar a poder atribuir-se a qualquer vingança.
O exmo. sr. chefe do departamento marítimo do norte é um cavalheiro muito digno, recto e honrado; e tudo deve esperar-se de sua excª., pelos seus elevados sentimentos.
S. João da Foz, 24 de Setembro de 1883 (a) M
(In jornal “Comércio do Porto”, terça, 25 de Setembro de 1883)

Vapor “Douro”
Seguiu ontem de Lisboa para o Porto uma das bombas que serviram no vapor “Earl of Dumfries”, a fim de ser empregada no vapor “Douro, ali naufragado.
(In jornal “Comércio do Porto”, Domingo, 30 de Setembro 1883)

O vapor “Douro”
Começaram ontem os trabalhos de salvamento do vapor inglês “Douro”, que se acha encalhado no Cabedelo. Esses trabalhos consistiram em esgotar a água que o vapor tem dentro, sendo empregadas nesse serviço duas bombas estanca-rios, e em tirar a areia que constituía o lastro do vapor.
Segundo consta, as bombas não puderam dar vazão à água em consequência do rombo no casco ser muito grande; de areia foram tiradas cerca de 20 toneladas.
(In jornal “Comércio do Porto”, quinta, 4 de Outubro de 1883)

Vapor “Douro”
Durante a baixa-mar de ontem, os operários que procuram restituir à flutuação o vapor inglês “Douro”, varado na ponta do Cabedelo, encontraram mais dois rombos no casco, que taparam e calafetaram. Na maré de hoje, se o mar fôr propício, há todas as probabilidades de safar o excelente navio.
(In jornal “Comércio do Porto”, sexta, 5 de Outubro de 1883)

Vapor “Douro”
Não foram completamente improdutivos os esforços envidados para pôr em flutuação o vapor “Douro”, antes deram um resultado muito lisonjeiro: foram-lhe tapados todos os rombos principais, de modo que o navio safou do sítio onde se achava encalhado, com auxílio dos rebocadores “Veloz” e “Victoria”. Todavia, por falta de água, pegou na ponta do Cabedelo, esperando-se, contudo, que na maré de hoje, com os auxílios convenientes, seja completamente salvo.
O contrato para o desencalhe do vapor foi celebrado entre os srs. Carlos Coverley & C.ª e José de Barros Freire, administrador da Companhia de Reboques. O preço estabelecido para aquele trabalho foi de 400 libras esterlinas, se o vapor pudesse ter sido desencalhado ontem e mais 100 libras caso houvesse necessidade de voltarem hoje para continuar aquele serviço. Se, porém, todo o trabalho fosse infrutífero, os rebocadores receberiam apenas 100 libras de indemnização.
(In jornal “Comércio do Porto”, sábado, 6 de Outubro de 1883)

O vapor “Douro”
Entrou ontem, finalmente, a barra do Porto, o vapor inglês “Douro”, que há dias se achava encalhado no Cabedelo.
Pouco depois das 8 horas da manhã foi para bordo do vapor toda a gente empregada na faina, e, depois de passar uma espia pela popa, para o lado de leste, decidiram alijar ao mar vários caixões e outros objectos que havia a bordo, a fim de aliviar mais o vapor.
Às 2 horas e meia da tarde os rebocadores “Veloz” e “Victoria” saíram a barra e passaram as respectivas amarretas ao “Douro”, retesando-as o mais possível, até que às 5 horas o vapor deixou o leito de areia em que jazia, fazendo-se um pouco ao largo.
Em seguida os rebocadores colheram as amarretas, e o “Victoria” veio colocar-se na proa do “Douro”, rebocando-o para dentro da barra com a maior felicidade.
A entrada do vapor foi saudada de bordo com muitos «vivas», demonstrações estas que se repetiram em terra pela enorme multidão de pessoas que se estendia desde o paredão da Cantareira atá ao quebra-mar, próximo do Castelo.
O vapor veio ancorar no sítio da Cruz, em Vila Nova de Gaia. A sua chegada ao ancoradouro foi saudada com entusiásticos «hurrahs».
(In jornal “Comércio do Porto”, Domingo, 7 de Outubro de 1883)

Comunicados – Desmentido
Na carta do correspondente desta cidade para o «Comércio de Portugal», de 9 do corrente mês, referindo-se à corporação dos pilotos da barra do Porto, vem uma verrina contra o chefe do departamento e piloto-mor, que não posso deixar de a vir refutar por menos verdadeira; e parece incrível que um correspondente de um jornal como aquele se prestasse a escrevê-la meramente por informações que obteve de pessoa que as deu por paixão ou por vingança.
Principia o mesmo correspondente por dizer que na corporação se dão factos de uma prepotência inaudita e que parece que o chefe do departamento e o piloto-mor querem retrogradar aos tempos do quero, posso e mando.
Primeiro erro em que cai o referido correspondente; para o serviço desta barra há um regulamento, o qual é cumprido na sua íntegra, e tanto um cavalheiro como outro não alteram nenhuma das suas disposições.
O piloto que causou o encalhe do vapor inglês “Douro”, quando o pilotava por saída, foi condenado na pena de cadeia e multa por não justificar perante a respectiva autoridade que o acontecimento procedeu de incidente imprevisto ou de força maior e não de erro ou falta de zelo e atenção (artigo 64.º do regulamento).
Este acontecimento foi devido unicamente ao piloto não navegar o vapor pelo canal, pois afastou-o demais para o sul do que devia, e foi esta a principal causa do vapor bater nas pedras.
Quando este vapor safou no primeiro dia do Cabedelo, e que mais tarde tornou a encalhar, nenhuma culpabilidade teve neste incidente o piloto que estava a bordo, porque não era a ele a quem estava encarregado o desencalhe do dito vapor, mas sim a pessoa encarregada pela Companhia; o piloto estava ali para o conduzir à amarração, caso safasse.
O piloto-mor não tem afeiçoados ou desafeiçoados em serviço, mas tem em muita atenção os seus serviços e antecedentes, casos que o levam a considerar mais uns pilotos do que outros. Ainda assim não desconsidera em público a nenhum, e estas considerações que tem por alguns não lhe servem para os desculpar, quando eles cometam alguma falta pela qual deem lugar a sofrer qualquer correctivo. Com relação ao facto novo da suspensão do piloto Almeida, que o referido correspondente taxa de injusto, em tudo se afastou da verdade como passo a demonstrar e que se pode provar com testemunhas.
Eis como se passou o facto:
Eram 10 horas e trinta e cinco minutos da manhã do dia 5 do corrente mês quando este piloto tomou a água da escala da barra na baixa-mar, e em seguida foi escrevê-la na tabela da casa da consulta, pedindo nesta ocasião ao cabo de pilotos licença para ir jantar; licença que lhe foi concedida com a recomendação de se apresentar breve por estar a preferir para serviço.
Voltando eu ao Cabedelo pelas 11 horas, encontrei no local das consultas os pilotos Domingos Pereira da Silva e José Jeremias dos Santos e aí me demorei algum tempo; vindo os referidos pilotos pedirem licença para irem jantar, eu concedi-lha e recomendei-lhes que voltassem o mais breve possível; em seguida fui eu e o meu colega também jantar e quando regressei encontrei já no referido local os dois pilotos a quem havia concedido licença, e aquele que tinha ido meia hora mais cedo e que primeiro tinha de entrar de serviço ainda não se tinha apresentado, regressando só à 1 hora da tarde ou para mais.
Pela 1 hora menos 10 minutos, dirigiu-se-me o mestre do rebocador “Veloz” requisitando-me piloto para o dito rebocador, e como pertencesse ao referido piloto Almeida ir pilotá-lo, por não se achar presente, foi substituído pelo piloto Domingos Pereira da Silva, indo para o “Victoria” o piloto José Jeremias dos Santos; o “Veloz” foi rebocar por saída a escuna francesa “H.P.” e o “Victoria” para ir mais breve para a proa do vapor inglês “Douro”, para o auxiliar no desencalhe.
Como o piloto-mor fosse em seguida para a barra e eu para o Cabedelo, só depois que o piloto-mor chamou o brigue português “Boa Sorte” para entrar e que veio à terra, é que se lhe apresentou o piloto Almeida; o piloto-mor estranhou-lhe por essa ocasião o seu procedimento de não se apresentar a tempo para fazer o serviço que lhe estava detalhado. Na ocasião de se detalhar o serviço para o dia seguinte, e próximo da noite, o piloto-mor ordenou ao cabo de pilotos, que o piloto Almeida devia ir transferir o brigue português “Bertha” no dia imediato para outro ancoradouro e que quanto à falta que tinha cometido por aquela vez ficava impune, mas que a não repetisse, e que não dava parte ao chefe do departamento, fazendo-lhe o cabo aquela advertência e nomeando-o para o dito serviço, ele, piloto, disse que ia fazer um serviço que não lhe pertencia e que depois se ia queixar; e dando o cabo esta resposta ao piloto-mor, foi então que visto ele ainda por cima dizer que se ia queixar, o piloto-mor resolveu dar a parte do sucedido ao chefe, porque tendo de chegar aquela ocorrência ao seu conhecimento devia tê-la comunicado em primeiro lugar ao piloto-mor.
Pela exposição que faço e de que apresento provas se necessário fôr, provo que tudo quanto o correspondente do «Comércio de Portugal» informa, ou qualquer outra pessoa que se apresente a desmentir-me, é falso; porém, como estes senhores que escrevem ou assinam os seus nomes por iniciais ou mesmo nem estas mesmas apresentam, eu desde já declaro que não respondo a outra qualquer correspondência sem que ela seja firmada, porque quero saber com quem tenho de tratar.
S. João da Foz do Douro, 16 de Outubro de 1883 (a) Joaquim Luiz de Sousa Monteiro, Cabo de pilotos da barra.
(In jornal “Comércio do Porto”, quarta, 17 de Outubro de 1883)

Comunicados – A questão dos pilotos
Sr. redactor,
Visto o sr. Joaquim Luiz de Sousa Monteiro ter escolhido esta folha para vir libertar seu pai o sr. piloto-mor da barra e o sr. chefe do departamento marítimo, de arguições que lhes dirigi, em uma das minhas correspondências diárias para o «Comércio de Portugal», conceda-me que aqui mesmo eu corrija os pretextos de defesa do sr. Monteiro, e mantenha intactas todas as afirmações que fiz na referida correspondência, devolvendo desde já a este senhor, com a mesma urbanidade de frase que usa, os epítetos de mentiroso e de falseador da verdade, que me dirige.
Na qualidade de correspondente do «Comércio de Portugal» aludi há dias às arbitrariedades e prepotências que se tem praticado ultimamente na corporação dos pilotos da barra, chamando para esses factos a atenção do sr. ministro da marinha.
Não me admirava que qualquer daqueles cavalheiros viesse justificar-se pela imprensa das acusações que lhe eram dirigidas, mas o que nunca supus foi que eles delegassem em um seu subordinado o encargo da defesa, apresentando-se esse subordinado, com toda a sua autoridade de cabo de pilotos, a julgar uma causa em que ele, mais do que juiz, pode também ser réu.
Não deixarei passar despercebida a maneira como o sr. Monteiro usa da procuração que lhe foi dada, chegando a sua familiaridade para com os chefes que defende, ao ponto de se referir sempre a eles em um documento público e oficial com uma sem cerimónia que não está de modo algum em harmonia com o respeito que se deve aos superiores, dando-se ainda a circunstancia agravante de um deles ser duplamente seu chefe e progenitor. Uma questão de disciplina e de boa educação, que os srs. chefe do departamento marítimo e piloto-mor não deixariam passar sem o devido correctivo se o facto se desse com outro que não fosse o sr. Monteiro, que, pelo modo como fala, parece até ter encarnado em si as atribuições daquelas duas autoridades marítimas. Deixemos, porém, estas questões de forma e vamos ao assunto principal.
O sr. Monteiro chama verrina ao ponto da minha correspondência que alude à corporação dos pilotos e custa-lhe até a acreditar que o correspondente de «um jornal como aquele» se prestasse a escrevê-la meramente por informações que obteve de pessoa que as deu por paixão ou por vingança. O sr. Monteiro pode chamar o que quiser a essas arguições, mas o que eu repelo são as frases – se prestou a escreve-la – com que pretende manchar sub-repticiamente o meu carácter de homem e a minha dignidade de jornalista.
As frases amargas que usei ao relatar os factos de que tive conhecimento, foram inspiradas unicamente por um sentimento de moralidade e pelo desejo de ver terminadas as irregularidades de uma repartição pública, que está sujeita, como os seus membros, à crítica da imprensa, quando nela se exorbita. Nenhuma, absolutamente nenhuma influencia estranha – declaro-o aqui ao sr. Monteiro bem alto e em muito bom som – actuou sobre as ponderações que fiz. Soube dessas irregularidades, procurei informações fidedignas, e no desempenho da minha missão e segundo o meu modo de pensar, pedi, no uso pleno dos meus direitos, providencias quanto aos abusos que apontei, que confirmo, e cuja lista argumentarei no decorrer desta discussão, que me congratulo ter levantado, para ver se afinal se consegue fazer entrar a corporação dos pilotos no caminho recto de que tem andado transviada. Quanto a paixão e a vinganças, não é o sr. Monteiro que tem o maior direito de ver nos outros esses sentimentos. Os telhados de vidro são sempre maus.
Diz o sr. Monteiro que não há irregularidades na corporação a que pertence, porque existe nela um regulamento, que é «cumprido na íntegra», e porque nem o sr. chefe do departamento nem o sr. piloto-mor alteram nenhuma das suas disposições.
Como conheço o regulamento de que se trata apontarei por agora o modo como alguns artigos são cumpridos na sua íntegra:
O regulamento manda que o serviço de pilotagens seja determinado pelo piloto-mor. Quando se dê, porém, o impedimento deste, cumpre naturalmente esse serviço ao sota-piloto-mor, seu imediato. Faz-se isto? De modo algum; o serviço é determinado, mesmo sem impedimento do chefe, pelos cabos de pilotos, praticando-se com isto até uma grave desconsideração para com o sota-piloto, que sei não se achar nas boas graças do sr. piloto-mor por motivos que virão a público quando fôr necessário.
O regulamento não exime os cabos de pilotos do serviço das pilotagens, e no entanto estes não o fazem. Eu conheço o despacho que o sr. chefe do departamento deu ao recurso que a tal respeito lhe foi apresentado pela corporação, mas esse despacho não tem autoridade suficiente para revogar as disposições da lei. Foi… um erro de interpretação esse despacho, mas não será preciso recorrer ao conselho de Estado para o revogar.
O regulamento manda, que quando houver consulta, a deliberação será sempre pela pluralidade de votos, e o sr. Monteiro deve lembrar-se de um caso, por exemplo, em que sendo toda a corporação unânime em que podia entrar um lugre italiano, de que não me recordo agora o nome, s.s.ª contra essa unanimidade e quando já seu pai se dirigia a bordo de uma catraia para a barra, fê-lo retrogradar, porque entendeu de per si e com uma supremacia de autoridade que o regulamento lhe não confere, que o lugre não devia entrar.
Como são cumpridos os artigos 108.º, 116.º, 117.º e 119.º do regulamento? Ficará para outra vez dizê-lo, para não me alargar agora demasiado.
Mas abstraindo mesmo do regulamento. Será regular, será até disciplinar, que um membro da corporação, um cabo de pilotos de que não digo agora o nome, se arvóre em agente ou comissário de um rebocador, recebendo por isso gratificações? Será regular que o sr. piloto-mor receba ordens de particulares, como o mostra um documento que tenho aqui sobre a minha banca? Adiante.
Diz o sr. Monteiro que o piloto que causou o encalhe do vapor “Douro”, foi condenado «por não justificar perante a respectiva autoridade que o acontecimento proveio de incidente imprevisto ou de força maior», etc.
Isto não é verdade (permita-me o sr. Monteiro que use das suas frases). O piloto justificou-se perante a respectiva autoridade que o encalhe foi devido ao vapor não obedecer de pronto ao governo, sendo-lhe já conhecido esse defeito pela corporação. O piloto foi justificado pelas dez testemunhas, todas pilotos da barra, que não só confirmaram as más condições do vapor, comprovando assim a alegação do acusado, como alguns deles retorquíram até às objecções feitas pelo sr. chefe do departamento. Pois apesar de tudo isto e de se ter cumprido o regulamento em toda a sua plenitude, o piloto foi condenado porque na imparcialidade deste julgamento, foi apresentado ao júri este dilema: «Mas podia ou não entrar o vapor sem encalhar?». De certo que podia; logo, cadeia com o homem! O quesito equivaleria perguntar a um sujeito qualquer; «a sua casa nunca ardeu, mas poder-se-à ela incendiar»?
Isto realmente seria cómico, se não fossem as consequências lamentáveis do facto. O acusador do piloto era o sr. piloto-mor; pois s.s.ª, apesar dessa circunstância, era um dos membros do júri, facto que se repetiu na questão do piloto Almeida! Em que legislação se permite ao acusador a faculdade de exercer cumulativamente a autoridade de juiz?
Agora a defesa do sr. Monteiro relativamente ao facto do mesmo vapor ter encalhado de novo quando era posto a nado. Diz s.s.ª que o piloto que estava a bordo não teve culpabilidade alguma no incidente, porque não era a ele a quem estava encarregado o desencalhe do mesmo vapor, mas sim a pessoa encarregada pela Companhia; o piloto estava ali para o conduzir à amarração, caso safasse. Estes argumentos são realmente jocosos. O sr. Monteiro, certamente por devoção, achava-se a bordo do vapor com outro piloto da barra, ordenando as ultimas manobras do desencalhe. Tudo lhes obedece; o vapor é posto a nado e quando aos dois pilotos cumpre traze-lo à amarração, visto ter safado, pespegam com ele outra vez na areia! Excelente trabalho.
Ora eu não sou forte em náutica, mas como também não sou fraco em investigações quando preciso delas, posso dizer a causa do novo encalhe. A causa foi dos dois pilotos procurarem uma restinga que se vê na baixa-mar, em vez de deixarem ir o vapor para onde os rebocadores o queriam levar. O vapor demandava de 10 a 10 e meio pés de água, e no sítio não a havia não só por causa da restinga como pela maré fraca da ocasião. O sr. Monteiro e o seu companheiro é que deviam saber o caminho que tinham a seguir logo que o vapor desencalhou. Eu conheço uma desculpa a respeito de correntes, mas o sr. Monteiro que se justifique com ela, porque lhe responderei.
Diz o sr. Monteiro que o seu pai não tem afeiçoados ou desafeiçoados no serviço, que não desconsidera em público nenhum dos seus subordinados, mas «que há serviços e antecedentes que o levam a considerar mais uns pilotos do que outros».
Sobre esta última parte não preciso de mostrar, visto o sr. Monteiro o fazer, que ali não são tratados todos igualmente, havendo preferências sempre más para a disciplina de uma corporação. Quanto a não desconsiderar em público nenhum deles, toda a gente sabe como o sr. piloto-mor costuma tratar alguns dos seus subordinados e o próprio sr. Monteiro deve recordar-se, com relação à sua pessoa, do dia em que em plena Cantareira e diante de quem quis ouvir, achando-se presente o seu chefe e pai, disse para dez ou doze pilotos a quem se dirigia, que eram todos um bando de tratantes, de garotos e não sei de que mais, insulto que só um piloto teve a hombridade de repelir, porque os outros nem sequer se atreveram a abrir a boca, tal é a pressão autoritária sob que se acham.
Vamos agora à questão do piloto Almeida. O sr. Monteiro deturpa os factos a seu modo, dizendo que eu faltei em tudo à verdade, e chega até a insinuar que se fôr preciso apresentará testemunhas que o garantam. Não me admira nada que o sr. Monteiro apresente as tais testemunhas; eu sei de que qualidade elas serão e quando aparecerem eu tratarei de as avaliar. Por agora, confirmando quanto referi na minha correspondência, direi apenas o que se passou com toda a fidelidade. O piloto Almeida, acusado pelo piloto-mor de faltar ao serviço e de insubordinação, pedira licença às 11 horas da manhã para ir jantar, o que lhe foi concedido, visto não haver serviço designado para ele; ao meio-dia estava na Cantareira, dizendo-lhe os seus colegas que já tinham sido nomeados pilotos para os rebocadores; perguntou pelo piloto Duarte, que também tinha ido jantar e disseram-lhe que fôra mandado chamar a casa para pilotar o “Elbe”, tendo-lhe sido mandado esse recado às 11 e 35. Achando-se lesado no seu turno, visto ter chegado a tempo de desempenhar qualquer serviço, dirigiu-se ao piloto-mor, queixando-se, ao que aquele funcionário respondeu, palavras textuais:- «Você é muito letrado, mas eu embrulho-o em uma folha de papel» - ao que o piloto retorquiu que não era letrado mas sim um servo como os outros.
À noite o cabo de pilotos nomeou o piloto Almeida para um serviço do dia seguinte, objectando ele que esse serviço não lhe competia, e que não lhe fazendo justiça o sr. piloto-mor, se ia queixar ao chefe do departamento marítimo, o que fez.
Nem houve as recomendações a que o sr. Monteiro se refere, nem as faltas que diz terem sido praticadas, e tanto assim que as três testemunhas chamadas a depôr no julgamento, o cabo de pilotos Manuel Moreira e os pilotos Domingos Pereira da Silva e José Jeremias, confirmaram plenamente as declarações do acusado, comprovando deste modo a sua inocência.
O acusador e um dos juízes era, porém, o sr. piloto-mor, e, apesar de todas as provas o piloto foi condenado a 20 dias de suspensão. Aqui temos um dos tais casos de mais consideração a uns do que a outros, de que fala o sr. Monteiro. Os três pilotos a que ele se refere tinham ido jantar antes do piloto Almeida, como se provou, mas como um deles era dos considerados, mandaram-no chamar a casa, que não fica longe da casa do piloto Almeida.
A questão, em resumo, é que as Companhias de reboques costumam gratificar os pilotos que fazem serviço neles, e como se tratava de serviço remunerado, houve preferências. E, basta, que já vão longos os esclarecimentos.
Agora a resposta ao último período do comunicado do sr. Monteiro: Nós, «os senhores que escrevemos» diariamente em um periódico, não somos anónimos. Usamos sempre de uma ou duas iniciais, que representam a responsabilidade plena de um nome; mas para que o sr. Monteiro conheça perfeitamente o autor das ponderações feitas a respeito da corporação a que pertence, declaro-lhe, para todos os efeitos, que o correspondente no Porto, do «Comércio de Portugal», é o que se subscreve
De v., sr. redactor, amigo e colega, (a) Manuel M. Rodrigues
(In jornal “Comércio do Porto”, quinta, 18 de Outubro de 1883)

1 comentário:

JHA disse...

Muito interessante toda a descrição do drama do Douro. É quase possível ver a tragédia do gado encerrado, sujeito ao mar. Aprendi bastante com toda a polémica entre os pilotos e o jornalista. Costuma dizer-se que quando se zangam as comadres se descobrem as verdades. Serviu aqui para, na boca dos próprios, vir à luz a dificuldade da vida de todos os dias, entre quem se dedicou à vida do rio e da barra. Apareceu mais uma, ainda que pequena, referência ao brigue Bertha, que penso ser o mesmo da companhia Andresen.

Obrigado