quinta-feira, 5 de maio de 2011

Fala quem sabe... (2)


Mercado de pescarias

Caetano Vasques Calafate

Professor, escritor e jornalista português, Caetano Vasques Calafate nasceu a 12 de Maio de 1890, na Póvoa de Varzim. Concluiu os estudos secundários no Liceu D. Manuel II, no Porto, e foi para Lisboa, onde frequentou o Curso Superior de Letras. Exerceu o magistério no Liceu da Póvoa de Varzim e no Instituto Comercial do Porto e foi presidente da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim. Dedicou-se à defesa da classe piscatória e lançou uma forte campanha pela construção do porto de pesca da Póvoa de Varzim, concluído na década de 60 e pela construção da Casa dos Pescadores, que foi a primeira do país a ser edificada, em 1926.

....................
Apesar de o nosso mar ser abundante em peixe, este escasseia nos mercados provincianos do interior. Não é esta a impressão que nos deixa a leitura das estatísticas, se nos damos a comparar a produção dos nossos barcos com a diferença entre as quantidades importadas e exportadas de pescarias. Verifica-se um saldo avultado para o consumo. Verdade seja que o saldo, assim apurado, não se aproveita todo para a alimentação, - deve-se abater-lhe a porção inutilizada, por mau acondicionamento a bordo, demoras forçadas no mar, processos defeituosos de descarga, etc. A percentagem de peixe deteriorado é bastante elevada e o prejuízo resultante cifra-se em algumas dezenas de milhares de contos, anualmente. Só no que respeita ao porto de Lisboa, calculava-se, não há muito tempo, que os desperdícios, pelos motivos indicados, fossem de 10.000 contos, por ano, aproximadamente. As perdas devem ser maiores nos outros portos, onde, com certeza, são mais acentuadas as deficiências de ordem técnica, sanitária e económica: rarefacção de capitais, ignorância das regras higiénicas, incultura, são factores que devem contribuir, nesses portos, mais pronunciadamente para este gravame.
Admitindo mesmo que 30% (percentagem geralmente estabelecida) do peixe entrado na lota se retirem para guano, ainda resta margem apreciável para sustento da população. Simplesmente, o seu alto preço apenas é acessível a poucos consumidores, relativamente ao total dos habitantes do continente. As bolsas pobres, que constituem a grande maioria, e as remediadas, que são bastantes, não tem possibilidade de fazer face a essa despesa. Só temporariamente, como extravagancia, poderão arcar com ela: no orçamento caseiro, figuraria entre os gastos extraordinários.
Note-se que não falo do peixe graúdo, - esse é artigo de luxo, permitido unicamente às classes ricas: falo das classes vulgares, da sardinha sobretudo, cujo preço, por vezes, se torna proibitivo, até nos mercados do litoral. Abstraio também da alta provocada pelas circunstancias especiais da guerra: sabe-se que as compras absorventes da industria conserveira, antes de esta sentir a falta de matérias primas, encareceram demasiado a sardinha e, logo a seguir, outras pescarias, que passaram, por tal razão, a ter procura mais activa. Não entro em linha de conta com estas particularidades. São ocorrências excepcionais a que deve dar-se o devido desconto. Ponho-as de banda neste momento, para considerar somente as condições usuais em que se realiza o comércio de pescarias. Tendo em vista estas condições, o preço do peixe, nos mercados de venda ao público, principalmente das regiões afastadas, da costa, atinge valores excessivos, por causa dos muitos intermediários, que se escalonam por aí fora, desde a lota até ao consumidor. Por diminutos que sejam os lucros de cada um, a soma dessas múltiplas parcelas perfaz uma quantia exagerada. As classes popular e média mal podem, de longe em longe, comprar peixe tão caro: este género de alimentação é-lhes vedado, com grave risco da sua saúde.
O sr. Guilherme Salgado, numa conferência feita na Sociedade de Geografia, de Lisboa, declarou que a sardinha vendida ao público, em Setembro de 1933, no Norte, rendeu mais 28.000 contos do que na lota, «com a agravante - acrescenta - de esta importante diferença entre a lota e o consumo… ter sido paga pelas classes mais necessitadas, principais consumidores de sardinha».
De então para cá, as condições melhoraram, graças aos esforços de alguns industriais e do Governo, à bonificação das estradas e ao desenvolvimento dos meios de transporte; mas ainda é preciso andar muito, muitíssimo, no caminho duma organização comercial em termos, que ponha cobro à anarquia dos mercados, pelo que toca às cotações e ao seu abastecimento. Aquelas são, em regra, exorbitantes, mas, de vez em quando, descem a níveis inferiores ao da lota, para desbaratarem concorrentes; este caracteriza-se pela sua irregularidade, que vai de zero à super-abundância. Ambos apresentam feição ocasional, ambos padecem de oscilações bruscas, marcadas por forte amplitude, com efeitos ruinosos para o público, para o Estado, para os armadores, para os pescadores e para os próprios negociantes.
Quem tem lucrado com esta desordem são os países que nos vendem bacalhau, os quais costumavam levar-nos mais de 100 mil contos por ano (130 mil, em 1930). E digo «costumavam», porque, nos anos de 1939 e 1940, o montante das suas vendas baixou para 89 mil e 83 mil contos, respectivamente, números redondos. Creio que esta descida se deve às dificuldades nos transportes, sob pavilhão estrangeiro, criadas pela guerra, e, possivelmente, ao aumento, quase regular, com plenas inflexões, da colheita dos nossos barcos, entre 1935 (9.446 toneladas) e 1939 (19.325 toneladas).
Confesso que, nesta altura, sinto tentações de dizer, acerca da referida descida: há males que vêem por bem. Eu explico: Como aquelas dificuldades se hão-de agravar decerto, e a frota bacalhoeira portuguesa não tem capacidade suficiente - longe disso! - para suprir o déficit ocasionado pela interrupção das importações de bacalhau estrangeiro, convém ir abastecendo, desde já, o nosso mercado com pescarias sucedâneas, obtidas pelos barcos nacionais. Entre estas cabe à pescada o primeiro lugar.
Dir-se-á que o peixe caro, que de modo nenhum substituirá o bacalhau, que vai faltar-nos em breve, e na sua quase totalidade, ao que parece. Não esquecer, porém, que a sua pesca é muito limitada, em relação ao que poderá vir a ser, e que a nossa costa encerra cardumes densos dessa preciosa espécie. Temos que aproveitar ao máximo essa riqueza, - sem a destroçar, bem entendido. Não soubemos, até hoje, tirar dela o rendimento necessário, deixando que o bacalhau estrangeiro tomasse o seu lugar, absorvendo-nos, em consequência dessa intrusão, grossos caudais de ouro.
Numa memória estatística publicada em França, em 1822, e citada pelo sr. Guilherme Salgado em “A pesca e os pescadores de Portugal”, dizia-se a propósito deste assunto: «A pesca da sardinha, da pescada e do atum podiam ter sido para este país (Portugal) o que foi para a Holanda a pesca do arenque, principal causa da riqueza e do poder desta nação.
A pescada, prodigiosamente abundante em Portugal e incomparavelmente mais saborosa e nutritiva do que o bacalhau, a sardinha, com excepcionais qualidades alimentares e de preço muito diminuto, concorreriam com vantagem sobre este, se a isso os Portugueses se dispusessem. Assim, certamente, se teria impedido uma grande saída de ouro, que há dois séculos empobrece Portugal.
Estes conselhos antigos têm actualidade. Intensifique-se, melhore-se a pesca, em geral, e, em especial a da pescada, pelas razões expostas, empregando nessa indústria vapores de arrasto, - e cuide-se a valor da organização racional de todo o comércio de pescarias, que tem no país um bom mercado, por explorar em grande parte, e de fácil receptividade, desde que o preparem convenientemente.
Vasques Calafate
In (Jornal “O Comércio do Porto”, de 6 de Junho de 1941)
....................

70 anos depois da publicação deste texto, constatam-se varias mudanças, algumas das quais para pior, face à legislação comunitária, que contemplou o abate desenquadrado da frota de pesca costeira. Esta situação seria mais recentemente agravada, devido às limitações das quotas de pesca no Atlântico Norte (Canadá), relativamente à pequena frota bacalhoeira. Os pontos convergentes, poucos, coexistem num acréscimo do consumo de peixe, tanto no litoral como no interior do país, infelizmente, ainda com custos demasiadamente elevados, principalmente no que respeita à aquisição de peixe fresco pela população. Actualmente, estamos em crer estar estabilizado o mercado de consumo de bacalhau e o mesmo poderá estar a acontecer através da maior acessibilidade às espécies criadas em aquários e também por outras espécies de peixe congelado, na sua maior parte com origem no estrangeiro.
70 anos depois a depauperada frota de pesca, com mais ou menos dificuldade, mantém-se activa, presentemente a lutar contra a escassez de cardumes e sujeita a exagerados preços do combustível, utilizado diariamente. Naturalmente, para as necessidades de consumo, continua a justificar-se o recurso à importação, reflexo da inexplicável falta da capacidade governativa nas negociações com os parceiros europeus, apesar do país dispor de muitos pesqueiros por explorar nas 200 milhas de zona económica exclusiva (ZEE), nesse mar português, que não gerimos, nem salvaguardamos.

Sem comentários: