domingo, 25 de abril de 2010

Efeméride - A Marinha no 25 de Abril de 1974


O 25 de Abril de 1974
na fragata NRP “Almirante Gago Coutinho”

1.INTRODUÇÃO
Durante 25 anos quer o signatário quer os camaradas da guarnição que viveram intensamente os acontecimentos ocorridos em 25 de Abril de 74, optaram por se manterem silenciosos na apreciação daqueles factos e das "notícias" surgidas, pois embora se considerando participantes de um dos momentos vitais na viragem histórica do nosso país, sempre optaram por permanecerem anónimos, mesmo dentro da própria instituição militar.
A realidade é que 25 anos de silêncio de nada serviram para obstar a que a verdade dos factos não fosse sistematicamente deturpada, pelo que é minha obrigação intervir, pois a história não é feita de inverdades. Por um lado parece querer-se desvalorizar o papel desempenhado pela Marinha no 25 de Abril e por outro pretende-se confundir um acto revolucionário com um acto de insubordinação num estado dito de direito (quando a revolução ainda não estava consumada).

2. CARACTERIZAÇÃO DAS RELACÕES DO COMANDANTE DO NAVIO / OFICIAIS / GUARNIÇÃO
O Comandante do navio (Capitão-de-Fragata António Seixas Louçã) tinha 51 anos e o oficial a seguir em antiguidade, que era o signatário, tinha 27, ou seja havia uma diferença de idades de 24 anos. Aparentemente despiciendo este hiato, a realidade é que em termos técnico-operacionais havia um nítido desfasamento que do ponto de vista do seu comportamento técnico-militar, resultava numa profunda falta de confiança nestes domínios, bem demonstrada em diversos momentos de manobras/ exercícios, que por ainda alguma consideração me escuso a descrever. Esta falta de confiança era agravada pelo seu feitio irascível, originando em determinados momentos um comportamento histérico e desumano relativamente a oficiais, sargentos e praças.
É de realçar que a confiança, camaradagem e amizade entre o imediato e os oficiais da guarnição, a sua proximidade de idades e a sua competência técnico-operacional, permitiram por um lado níveis de desempenho profissional do navio, muitas vezes enaltecido por comandos navais estrangeiros, e por outro lado que essa união fosse transmitida ao resto da guarnição de sargentos e praças, o que permitiu evitar que situações de confronto com o Comandante a nível de sargentos degenerassem em procedimentos disciplinares.
Tínhamos conhecimento da imagem anti-situacionista do Comandante, mas a realidade é que o seu comportamento autoritário e desumano aliado à forma ambígua como analisava alguns acontecimentos de carácter político (tal como o que resultou no dia seguinte à reunião no Clube Militar Naval, onde 130 oficiais da Marinha se declararam solidários para com os camaradas do exército presos e desterrados, em que à hora do almoço na câmara questionou os oficiais do navio “sobre se teria havido algum capitãozinho naquela reunião"), nos coibiu de abordamos as questões ligadas ao Movimento.

3. RELACIONAMENTO/ LIGACÃO DOS OFICIAIS DO NAVIO COM O MOVIMENTO NA MARINHA
Sob o ponto de vista político, o signatário, o 1.º tenente Almeida Moura e o 1.º sargento ACM Edgar Conhago estavam inseridos no movimento desde Outubro de 73. Muitas vezes saímos do navio e uma hora depois regressávamos a bordo reunindo no meu camarote onde abordávamos questões de natureza militar e política que a todos preocupava.
Nas vésperas do 25 de Abril fomos informados sobre qual o papel que caberia à Marinha, e que seria o de assegurar a Neutralidade Activa, função de que garantimos vir a ser fiéis intérpretes. A Marinha não tinha missões operacionais atribuídas, não hostilizaria as operações militares do 25 de Abril e apoiá-Ias-ia sempre que oportuno.
Devido ao comportamento do Comandante sempre sentimos não estarem reunidas as condições para o pôr a par das intenções do Movimento. Mas se isso não bastasse, é estranho que até os próprios camaradas da sua idade e ligados ao Movimento também nada lhe tenham dito.

4. SITUAÇÃO DO NAVIO SOB O PONTO DE VISTA ARTILHEIRO
O navio pertencia à classe das fragatas “Almirante Pereira da Silva" e possuía sob o ponto de vista artilheiro, duas direcções de tiro anti-aéreo analógico-electromecânicas e dois reparos duplos de 76.2/50 mm (3 polegadas), um avante e outro a ré, com uma cadência de tiro de 50 por minuto. As peças de 76.2/50 estavam preparadas para fazer fogo de superfície para distâncias superiores a 7.000 metros, bem como bombardeamento de costa e por consequência também eficazes contra carros de combate, só dependendo do tipo de munição utilizada.
Nos paióis existiam munições de Alto-explosivo com espoletas VT (influência), perfurantes (Armour Piercing AP) e de Exercício (com projéctil de ferro maciço)
Não existiam munições de salva, nem as peças de 76.2/50 permitiam efectuar tal tipo de tiro.
Assim, sempre que era necessário realizar tiros de salva em cerimonial marítimo, embarcávamos as peças e munições próprias para esse efeito. Em 25 de Abril de 74 não existiam nem peças nem munições para salva.

5. DESCRICÃO DOS REAIS FACTOS OCORRIDOS A BORDO NO DIA 25 ABRIL DE 1974
Cerca das 07H00 o signatário mandou apitar à faina para a manobra de saída do navio da Base Naval de Lisboa, para se integrar na formatura de navios da STAVAVFORLANT que rumaria para Nápoles em manobras internacionais.
Quando o navio passa sob a ponte, integrado já na formatura da força naval internacional, são recebidas ordens a bordo, provenientes do Estado-maior da Armada, para o navio sair da formatura e se colocar em frente do Terreiro do Paço.
O signatário (imediato do navio) na asa da ponte de estibordo ao visualizar os tanques no Terreiro do Paço informou o comandante do navio que "se nos mandassem abrir fogo, era uma grande bronca, pois havia um comprometimento da Marinha para com o Movimento de Neutralidade Activa". A esta posição a postura assumida pelo então comandante do navio foi de concordância.
Seguidamente, o então Vice-Chefe de Estado-maior da Armada, Contra-Almirante Jaime Lopes, pela fonia dá ordem ao então Comandante do navio para disparar sobre os tanques rebeldes posicionados no Terreiro do Paço, (há testemunhas presenciais desta ordem, na altura prestando serviço no E.M.A.) ao que este se recusa, alegando que estava muita gente no Terreiro do Paço e também vários cacilheiros se encontravam nas proximidades.
Posteriormente o Comandante do navio recebe ordens do E.M.A., através do próprio Almirante CEMA para fazer fogo de salva para o ar e dá ordens para colocar as peças de artilharia de 76.2 mm/50 na máxima elevação (de realçar que o navio não possuía munições de salva e somente de Exercício, e que o Comandante do navio já tinha dado ordens para municiar as peças com munições de Alto-explosivo, o que nunca veio a acontecer pois o signatário deu ordens ao C. S. Artilharia para colocar as munições nos contentores verticais e as peças nunca estiveram carregadas. Igualmente foram dadas ordens pela mesma via para isolar o reduto das peças). É bom não esquecer que a única posição possível de travamento em elevação é a zero graus e é aquela a que corresponde a impossibilidade de fazer fogo, e por consequência dá indicação de paz.
O Comandante do navio dá ordem ao Chefe de Serviço da Artilharia (então 1° Tenente Dores de Sousa) para fazer fogo de salva: "vá lá abaixo dar dois tirinhos de salva para o ar". Este oficial recusa-se e informa o Comandante que o Imediato pretendia dizer-lhe algo. (Há que realçar que uma ordem quando é dada não se mede pela semântica utilizada.)
O signatário reafirma ao Comandante do navio a decisão dos oficiais se recusarem a abrir fogo, mesmo de Exercício, pois já havia sido informado que não existiam munições de salva a bordo. (Após o navio fundear no Mar da Palha, o Comandante solicitou o Mapa trimestral de munições e artifícios, possivelmente para se certificar do tipo de munições existentes abordo).
É bom não esquecer que, se os oficiais não se têm recusado a abrir fogo às ordens do Comandante, e se as peças têm disparado as munições de exercício para o ar com a elevação máxima em que estavam posicionadas (cerca de 85°), além do estrondo resultante dos disparos, os projécteis embora não contendo alto explosivo, cairiam no Mar da Palha com as consequentes “gerbes" (levantamento da água resultante da entrada dos projécteis na água), o que ocasionaria de certo o caos, de consequências imprevisíveis, pois se no Terreiro do Paço estavam posicionados os tanques do Salgueiro Maia no Cristo Rei estavam posicionadas baterias de Vendas Novas prontas a disparar para a Fragata.
Quase em simultâneo o signatário é chamado à cabine da T.S.F. a fim de entrar em contacto com um elemento do Posto de comando do Movimento. É confrontado com a perspectiva do navio ser a única unidade fiel ao governo, e recebe ordens para sair a barra com as peças em zero (na horizontal). O signatário informa o Posto de Comando que a situação a bordo está controlada, que a guarnição está com o Movimento e que o Comandante do navio havia dado ordens de fogo de munições de exercício para o ar, mas que os oficiais se tinham recusado.
Este contacto era assegurado pelo Comandante Almada Contreiras no Centro de Comunicações da Armada, e através da esquadrilha de submarinos.
De imediato o signatário se dirigiu para a ponte do navio a fim de informar o Comandante da comunicação ocorrida, mas foi bruscamente interrompido, tendo sido exonerado e ouvido os piores insultos resultantes de uma histeria indescritível, aliada a uma linguagem imprópria de um oficial superior, Comandante de uma unidade naval.
Durante a permanência do signatário na cabine da T.S.F., o Comandante do navio dá a 2.a ordem de abrir fogo de salva para o ar ao Chefe de Serviço de Artilharia, o qual uma vez mais se recusa a cumprir a ordem.
Na sequência da exoneração do signatário, os oficiais da classe da Marinha (1° Tenente Varela Castelo e o 1° Tenente Telles Palhinha), por ordem de antiguidade, foram convidados a substituir-me, mas recusaram.
Quando o signatário foi exonerado de imediato, o 1° tenente Almeida Moura ao circular pelo corredor junto da cabine da T.S.F. ouviu sargentos e praças da guarnição afirmarem "Se o Comandante exonerou o imediato, o imediato passará a Comandante".
A estirpe dos oficiais da guarnição da "Gago Coutinho", que tendo sido protagonistas de um acto de insubordinação, numa situação revolucionária, permitiu não só, não prenderem o Comandante do navio, o que não seria difícil dado o facto da guarnição de sargentos e praças, na sua esmagadora maioria estarem ao lado dos oficiais, mas também se predispuseram a continuar a obedecer às ordens do Comandante, reiterando apenas a desobediência às ordens de fogo.
Pelas 13H20, o então Comandante do navio já com o navio fundeado no Mar da Palha, resolve convocar uma reunião de oficiais na Câmara de Oficiais, começando por colocar sobre a mesa uma pasta de cor verde, tendo escrito na capa a palavra "REVOLUÇÃO".
De seguida, começando pelo oficial mais moderno da guarnição interroga um a um, à excepção do signatário, sobre se mantinham a sua posição de recusa em abrir fogo. Todos os oficiais, sem excepção são firmes em manter a recusa.
Logo de seguida considera um a um insubordinados todos os oficiais. No final da reunião, que terminou antes da rendição do Presidente do Conselho de Ministros, Marcelo Caetano, no quartel do Carmo, o comandante do navio ameaçou: "que nenhum dos oficiais se deveria esquecer da posição tomada, pois ele não esqueceria a dele".
Esta última atitude teria sido ao que tudo indica, de imediato esquecida pelo Comandante do navio, logo após a atracação do navio à Base Naval de Lisboa, no Alfeite, cerca das 20H00.

6. CONSIDERACÕES FINAIS
Logo após o aparecimento na RTP dos elementos da Junta de Salvação Nacional, o signatário que se encontrava no momento no refeitório das praças, chamou a atenção da guarnição para o facto de "termos sido uma guarnição insubordinada, mas que a partir daquele momento voltaríamos a ser uma guarnição disciplinada, e até que o Comandante fosse exonerado deveria continuar a receber as honras da Ordenança do Serviço Naval".
No dia 26 de Abril, quando o Comandante abandona o navio, o signatário e o 1.º Tenente Almeida Moura que era o oficial de serviço, prestaram-lhe as honras ao portaló, e quando aquele ia a meio do trajecto, virou-se para nós e disse" ainda um dia se vão arrepender".
É importante não esquecer que quando o Comandante dá as ordens de fogo, no Terreiro do Paço, a situação militar não estava ainda definida.
Poucos dias depois do 25 de Abril, é levantado um processo no qual são ouvidos o Comandante, o signatário, os oficiais da guarnição e o sargento Edgar Conhago, o qual foi arquivado.
Em Junho de 76, quase um ano após os acontecimentos de 25 de Novembro de 1975 é reaberto o processo a pedido do Comandante, com o claro objectivo de salvaguardar a atitude por ele assumida visando a sua apreciação militar sob o ponto de vista do cumprimento integral das ordens recebidas da hierarquia no quadro da legalidade existente, e a condenação dos oficiais (todos) que se recusaram a cumprir a ordem de fogo de munições de Exercício para o ar por si determinadas, e em circunstâncias de confronto evidente entre forças militares antagonistas e tendo conhecimento pelo signatário da posição assumida pela Marinha para com o Movimento (embora continue a afirmar o desconhecimento)
De realçar que no decorrer do processo e a quando da audição de uma das testemunhas apresentadas pelo signatário, o oficial instrutor do processo permitiu a presença do ex-Comandante do navio, o qual tentou questionar o referido oficial mas este recusou-se a responder. Eis uma demonstração clara da pouca fiabilidade do processo.
Não posso esquecer o dia em que o Almirante Santos Silva me questionou com 52 perguntas escritas, em que aproveitei a oportunidade, pois sabia da sua verticalidade e integridade, para lhe colocar a seguinte questão: "Se o 25 de Abril tem falhado e o signatário pedisse para lhe reabrir o processo o que teria sucedido". A resposta do Almirante Santos Silva foi imediata:"Não seria autorizado, pois estaria no Tarrafal".
Durante o dia 25 de Abril, a bordo da fragata Gago Coutinho os elementos ligados ao Movimento cumpriram com o seu compromisso, materializado não só pela recusa em abrir fogo mas também através de outras medidas, que salvaguardariam sempre a posição do navio para com o movimento.
Este é o meu primeiro depoimento público sobre a realidade dos factos ocorridos no dia 25 de Abril de 1974 a bordo da fragata NRP "Almirante Gago Coutinho" (F473).
Demorei 26 anos a tomar esta decisão, pois sempre procurei defender a Marinha como instituição e não quis transformar publicamente este episódio, de que todos os que viveram Abril se orgulham, naquilo que o então Comandante do navio o tem feito.
Cada um tem que ter a coragem de assumir as suas responsabilidades, houve uma revolução e não é justo que aqueles que humildemente contribuíram para que ela transformasse este país num estado de direito sejam vilipendiados.
Faço este depoimento na convicção de que quem o vier a ler fique esclarecido sobre a verdade dos factos.

Fernando Luís Caldeira Ferreira dos Santos
Capitão-de-Fragata (Reformado)
Imediato do NRP "Alm. Gago Coutinho" em 25 de Abril de 1974

O nosso comentário
Acho que somos todos gratos à participação do oficial Ferreira dos Santos, no movimento militar do 25 de Abril e pela oportunidade de esclarecer publicamente aspectos menos conhecidos, quanto aos procedimentos adoptados pelos militares da Marinha, enquadrados na defesa da liberdade.
Se por um lado, nunca foram postos em causa a excelência da sua carreira militar, parece-nos faltar no texto um rasgado elogio, aos sargentos e praças, que em absoluta comunhão de ideais, se opuseram às ordens do Comandante António Seixas Louçã, supostamente conhecedor da capacidade destrutiva do navio, quando chamado a intervir.
Reflectindo sobre o incidente 36 anos depois, fica-nos a convicção que o Comandante, apesar da discordância camuflada contra o anterior regime, foi o espelho do “medo” imposto pelo governo sobre a esfera militar, acobertada pelos seus principais representantes.

A fragata F473 NRP “Almirante Gago Coutinho”

A fragata "Almirante Gago Coutinho" - imagem Photoship.Uk

Este navio foi mandado construir nos estaleiros da Lisnave, em Lisboa, com início das obras a 2 de Dezembro de 1963. Foi lançado a 30 de Agosto de 1965 e considerado pronto a 29 de Novembro de 1967. Projecto co-financiado pelo governo Americano, foi o segundo navio integrado na classe de fragatas “Almirante Pereira da Silva”. Tinha de deslocamento 1.450 tons., 95,90 mt de comprimento fora-a-fora, 93,90 mt de comprimento entre perpendiculares e 11,20 mt de boca. Utilizou um motor de turbinas a vapor, assegurando uma velocidade na ordem das 25 milhas/ hora. Foi abatido ao serviço da Armada durante o ano de 1989.

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