domingo, 1 de julho de 2018

História trágico-marítima (CCLVII)


Porto, 1900
O temporal e a cheia no Douro
3ª Parte

Ocorrências diversas
É impossível por enquanto determinar não só o número de barcos que se afundaram, mas a importância dos prejuízos, que são enormes. No entanto, será mencionado o que foi possível averiguar:
- A barca “Asia”, pertencente aos srs. Glama & Marinho, garrou, sofrendo avarias.
- Também sofreu avarias o iate “Odília Costa”.
- Parte da tripulação do iate “Dª. Joaquina”, a esposa e um filho do respectivo capitão, que estavam a bordo, foram salvos por um cabo de vai-vem. O navio seguiu rio abaixo, levando ainda o mencionado capitão e um marinheiro, que depois conseguiram saltar para um bote em Santo António do Vale da Piedade.
- A barca “Clara” fundeada em Massarelos, partiu-se-lhe o pau da bujarrona e teve outras avarias. Pertence aos srs. José Domingues de Oliveira e José Nogueira Pinto.
- A barca “Leonor”, da firma Rocha Primo, em comandita, perdeu um ferro, ficando em perigo.
- Em frente de Santa Marinha, na margem esquerda, também está em perigo um lugre inglês.

Como fica dito, não é possível precisar o número de barcaças de carga que se afundaram. Eram numerosíssimas as que estavam amarradas entre o cais da Ribeira e o da Porta Nobre.
Em meio da faina a confusão enorme que reinava na margem do rio, a cada momento que se via largar uma barcaça ou afundar-se no próprio local da amarração, sem que houvesse meio de lhes valer. No intuito de obviar à continuação destes sinistros, trataram de alijar o carvão que constituía o carregamento de algumas delas.
Foram bastantes, carregadas de cereais e de carvão pertencentes aos srs. J.H. Andresen, que seguiram rio abaixo ou soçobraram.
Dos srs. Encarnação & Paredes naufragaram cinco barcaças, sendo duas com carga de petróleo e três com aduela; e do sr. Ambrósio dos Santos Gomes, foram perdidas duas barcaças com carvão pertencentes aos srs. H. Kendall & Cª.

- Os bombeiros voluntários da cidade, antes de terem auxiliado os seus colegas de Leça no salvamento da tripulação do patacho “Bella Rosa”, já se haviam apresentado às 5 horas e meia da manhã na rua da Nova Alfândega, por serem reclamados os seus socorros, na ocasião do abalroamento dos vapores “Sir Walter” e “H. Wicander”.
Na impossibilidade de prestar outros serviços, ofereceram archotes para iluminar o local do sinistro, onde procediam ao trabalho de reforçar as amarrações. Na ocasião, curaram na sua ambulância um bombeiro voluntário de Leça, que se ferira ligeiramente.
Ontem mesmo, o comandante interino dos Voluntários do Porto, sr. Domingos Mendes, elogiou o pessoal, pelo denodo com que acudiu aos esforços dos voluntários de Leça no salvamento dos náufragos.

- Às 9 horas da noite de ontem a água do rio já cobria os arcos mais baixos sobre que assentam as casas da rua de Miragaia. De tarde andou um barco da Alfândega naquele improvisado canal, em serviço dos moradores cujas habitações não têm outra saída, além daquela que a cheia cobriu completamente e que são obrigados a sair pelas janelas dos primeiros andares, para se abastecerem de alimentos e água.
- A corveta “Estephânia” perdeu um bote.
- Em frente do cais da Ribeira está fundeada a barca “Albatroz”, que descarregava trigo para a casa Andresen. A estibordo tinha uma barcaça carregada com aquele cereal, que, partindo as amarras, garrou.
- No mesmo sítio está fundeado, quase junto ao cais, o iate “Flor de Setúbal”, achando-se entre a barca e este iate uma fragata do sr. Andresen, em iminente risco de se despedaçar.
- Uma das muitas barcaças de carga que garraram pertencia ao sr. Joaquim Domingues Bandeira e ainda ultimamente havia sofrido concertos que importaram em 200$000.
- A escuna inglesa “Britannia”, procedente de Cardiff, com carvão, que está à descarga no Terreiro da Alfândega, está fortemente amarrada para terra. A tripulação desembarcou, estando na margem de prevenção para reforçar as amarras.

Quando, cerca das 3 horas e meia da madrugada de ontem, os lampionistas iam apagar os candeeiros da iluminação pública da margem do rio, a polícia não o consentiu, para evitar que a escuridão aumentasse o perigo.
O fotógrafo amador sr. Aurélio da Paz dos Reis esteve em vários pontos da margem do rio recolhendo diversas imagens.
Nos carros americanos da linha marginal houve durante todo o dia de ontem um movimento extraordinário de passageiros, sendo também enorme a afluência de pessoas nos sítios onde ocorreram os sinistros.
Jornal “Comércio do Porto”, terça-feira, 13 de Fevereiro de 1900

À última da hora – A cheia do Douro
À meia hora da madrugada, a barca “Albatroz”, que se encontrava a descarregar trigo na Ribeira, garrou até em frente às escadas da Rainha, voltando a popa para o meio do rio. Nessa ocasião houve alarme entre as pessoas que se conservavam na margem. Imediatamente o pessoal da intendência da marinha deu conhecimento daquele acidente às tripulações das embarcações que estavam próximo da “Albatroz”, a fim de se prevenirem contra qualquer abalroamento.
Diziam alguns marítimos que estavam em terra, que seria difícil a “Albatroz” sustentar-se, pois parecia estar apenas segura por um ferro de proa que tinha no fundo.
A barca foi abandonada pela tripulação.
Cerca das 2 horas da madrugada, quando a maré começou a vazar, em virtude da impetuosidade da corrente, que àquela hora já se tornava mais violenta, a fragata que estava junto da barca “Albatroz” garrou rio abaixo, por lhe terem rebentado as amarras.
Cerca das 3 horas a “Albatroz” garrou mais um bocado, dando fortes guinadas e pondo em grave risco o iate “Valladares” e o patacho “Robin”, já abandonados pelas tripulações e que estavam ancorados em frente ao Muro dos Bacalhoeiros. A “Albatroz” já àquela hora tinha abalroado com o “Valladares”, danificando-lhe o pau da bujarrona.
Às 3 horas e meia ainda a “Albatroz” se conservava em frente à Ribeira, receando-se a cada momento que fosse rio abaixo. Cerca das 4 horas da madrugada rebentou a única amarra que segurava a “Albatroz”, voltando esta a proa para o cais da Ribeira.
Aquela barca encontrou apoio no iate “Valladares”, que tem carga de bacalhau, deteriorando-o pela força que contra ele está a fazer. Espera-se a todo o momento a saída da situação em que se acha.

Desenho de navio do tipo barca, sem correspondência ao texto

Características da barca “Albatroz”
Armador: Glama & Marinho, Porto
Nº Oficial: N/d - Iic: H.B.C.D. - Porto de registo: Porto
Construtor: Richou, Bordéus, Setembro de 1865
ex “Gaston”, proprietário não identificado, Bordéus
ex “Stanley Sleath”, M. Hennessy, Swansea
Arqueação: Tab 791,00 tons - Tal 741,00 tons
Dimensões: Pp 51,61 mts - Boca 10,06 mts - Pontal 6,15 mts
Propulsão: À vela
Capitão embarcado: Joaquim de Oliveira da Velha

- À 1 hora da madrugada seguiu para o cais da Ribeira o Patrão-mor, sr. Agostinho Ildefonso, acompanhado do Cabo-de-mar, a fim de providenciar sobre as amarrações a fazer na “Albatroz”.
- O iate “Flor de Setúbal”, que estava junto da “Albatroz”, parece ter aberto água por motivo dos embates que dava contra o cais.
- Segundo informaram, a tripulação do vapor sueco “H. Wicander”, tentou abandonar o navio ontem, à noite, sendo obrigada a desistir do seu intento, em função das ordens dadas pelo sr. chefe do Departamento Marítimo. Esta autoridade determinou que alguns práticos portugueses fossem para bordo, a fim de ajudar os tripulantes no trabalho de salvamento do vapor.
- O pessoal do Departamento Marítimo esteve durante a noite em serviço permanente.
- Às 3 horas da madrugada a velocidade da corrente era a mesma, isto é, 10 milhas por hora.
- Apesar da muita chuva que caiu de madrugada, tanto na Ribeira como na Porta Nobre e em Cima do Muro, havia muita gente a presenciar o que se passava no rio.
Jornal “Comércio do Porto”, terça-feira, 13 de Fevereiro de 1900

Temporal – Sinistros no rio
A situação anormal das embarcações fundeadas no rio permaneceu ontem a mesma do dia anterior, sem alterações sensíveis. Há, porém, esperança de que as coisas melhorem rapidamente, porque o temporal, violento ainda nas primeiras horas da manhã de ontem, amainou para a tarde, parecendo que ainda se acentuará mais essa melhoria.
A notícia de tão grandes sinistros e da situação critica em que se encontram muitos navios da cabotagem fluvial e de alto mar, provocou ontem uma excepcional concorrência a toda a margem direita desde os Guindais ao Bicalho. Do outro lado também era enorme a afluência a presenciar a imponência da cheia e os navios que correm maior risco.
Continuou incessante e afadigosamente a faina para o salvamento das embarcações ancoradas nos locais mais expostos. Grupos de trabalhadores preparavam fortes antenas, passavam ferros e espias de arame, de bordo dos navios para terra, numa palavra, trabalhavam denodadamente, encharcados muitos deles, especialmente no cais da Ribeira, onde a “Albatroz”, magnifico navio de ferro, o iate “Valladares” e o patacho “Robin”, tendo todos pela proa o iate “Flor de Setúbal”, se tem mantido a custo.
A cheia
As águas vindas de cima não avolumaram mais o rio nem lhe aumentaram a impetuosidade da corrente. Ao contrário, verificou-se ontem de tarde que o volume da água havia diminuído um pouco e que a velocidade se mantinha entre 9 e 10 milhas.
Como a diminuição foi mínima, o rio oferecia ainda o aspecto imponente do dia anterior, permanecendo alagados todos os locais de uma e outra margem e, consequentemente estão paralisadas as transacções comerciais ribeirinhas e os trabalhos industriais nas oficinas das margens.
As águas correm barrentas e formidavelmente revoltas, formando redemoinhos a meio do rio. No dorso vão, de quando em quando ramos de árvores, paus, tudo quanto na sua marcha desordenada para o mar encontra no caminho.
Ontem registou-se um volume de água acima do nível ordinário de 2 metros e meio, tendo vindo para o Departamento Marítimo do Norte telegramas de Barca d’Alva, Régua e Foz Côa e de outros pontos, dando notícia de ali terem avolumado as águas. Isto, porém, pouco influirá se porventura não sobrevierem chuvas incessantes.

Os navios em perigo na Ribeira
Os srs. Glama & Marinho contrataram por 500$000 o trabalho de segurança da barca “Albatroz”, com os srs. Encarnação & Paredes. Na “Albatroz”, uma partida de trabalhadores da firma Encarnação e Paredes, ocupou-se ontem em amarrá-la com fortes cabos de arame, dispondo as coisas de modo a evitar que ela venha sobre o cais.
O iate “Valadares” que se encontra entre aquele navio e o patacho “Robin” é o que se nos afigura pior situado, correndo o risco de ser estilhaçado entre os dois, tendo mesmo sofrido já algumas avarias na proa. Tratava-se ontem de lhe salvar o velame, cordame, tudo quanto era susceptível de fácil remoção.
O “Robin” tem ainda pelo lado de terra e sobre o cais algumas barcaças de carga do sr. José de Sousa Faria. Todos estes navios, muito juntos, a ponto de se poder passar de uns para os outros, não estão em boa posição, ameaçando cair sobre o cais ou bater nele.
O iate “Flor de Setúbal”, que se acha na proa daqueles três navios, continuou pousado sobre o cais da Ribeira, contra o qual sofre pequenos embates.
A escuna “Britannia”
A tripulação deste navio voltou ao seu posto, auxiliando ontem alguns trabalhadores na colocação de duas antenas para se obstar ao choque contra o cais da Estiva, onde se encontra fundeada. Também lhe foram reforçadas as amarras.
O lugre “Hossana”
Depois de muitos esforços pôde ser salvo este navio dinamarquês, encostando mais a terra, próximo ao estaleiro de Gaia, onde se encontra com boas amarrações. Ontem, às 2 horas da tarde, içou no mastro da ré os sinais «C.L.B.K.» e «D.R.S.” que, pelo Código Marryat, de sinais marítimos, se verificou dizer: Houve furto a bordo.
Efectivamente, desapareceram do navio várias louças, mantimentos, etc., supondo-se que o assalto ao navio se deu na noite de ante-ontem para ontem. É pena que se não descubram os ratoneiros para terem a devida correcção.

Os navios ancorados no Postigo dos Banhos
Não mudou ontem a situação do vapor “Sir Walter”, que permanece afundado, do “H. Wicander” e enfim de um rebocador e várias barcaças, que se encontram quase encostados uns aos outros.
No “H. Wicander” estavam a tripulação e alguns trabalhadores a proceder a diversos serviços de segurança e defesa contra qualquer eventualidade que possa surgir.
Nas barcaças houve grande faina, tratando-se com actividade intensa descarregá-las do carvão, algodão e cereais que continham. Algumas sacas de trigo, pertencentes aos srs. Andrades Villares, ficaram depositadas e guardadas pela polícia no largo fronteiro à igreja de S. Francisco.
E, já que falamos destes pequenos barcos, que tão grandes serviços prestam ao tráfego fluvial, acrescentamos que ontem desapareceram mais alguns, sendo dois pertencentes ao sr. José de Sousa Faria. Tinham carga de carvão.
A barca “Glama”
A barca “Glama”, dos srs. Glama & Marinho, garrou, indo encostar-se a outras embarcações no cais de Massarelos. O navio oferecia grande risco de perder-se, tanto mais que havia adernado muitíssimo para estibordo.
Logo de manhã, o sr. António Glama e um troço de trabalhadores trataram de lançar fortes amarras ao navio, procurando também, por meio de espias, evitar que ele adernasse ainda mais. Esses trabalhos, deveras fatigantes, demoraram até à noite, melhorando pouco a situação daquele navio, pois continua adernado.
Neste sítio havia grande aglomeração de povo a presenciar os trabalhos, sendo custoso o trânsito.

O patacho “Bella Rosa”
Este navio, que largou do ancoradouro em que estava, no Terreiro da Alfândega, achava-se ontem em frente da Porta Nobre. Pelo Departamento Marítimo foram ordenadas diversas providências, a fim daquele navio se sustentar na posição em que ficou. Por esse motivo foram lançados mais dois cabos para terra, ficando assim o patacho seguro.
A barca “Ligeira”
Ontem, foram substituídas as amarras que sustém a barca “Ligeira”, fundeada próximo a Massarelos, e que estavam prejudicando bastante as embarcações que lhe ficam próximo. As amarras foram mudadas para terra, oferecendo desta forma maior segurança.

A galera “América”
Continua encalhada no mesmo sítio. Ontem foi amarrada mais fortemente para evitar que se perca este navio de vela, um dos melhores da praça do Porto.

A barca “Ásia”
Correu ontem algum risco no seu fundeadouro em Massarelos. Cerca das 3 horas da tarde, na ocasião em que procediam a novos trabalhos de amarração, o tripulante Manoel dos Santos Saltão, de 18 anos, foi apanhado por um moitão, que o feriu na cabeça. Recebeu o primeiro curativo no hospital da Misericórdia, voltando para bordo.

Cálculo dos prejuízos
Estão calculados os prejuízos de todos os sinistros no Douro em 600:000$000, aproximadamente. A maioria desses prejuízos, porém, são cobertos por Companhias de seguros estrangeiras.

Diversos
- Para bordo do patacho inglês “Robin” foi hoje, de madrugada, um piloto da barra, com o respectivo pessoal, a fim de prevenir qualquer eventualidade.
- O iate “Flor de Setúbal” garrou mais para o cais da Ribeira, ficando assim um tanto afastado da forte corrente da água.
- Ao fim da tarde, compareceu no cais da Porta Nobre, como na noite anterior, um piquete de bombeiros municipais, incumbidos da iluminação daquele sítio com barricas de alcatrão. Os bombeiros conservaram-se ali toda a noite, continuando o serviço de prevenção a ser feito entre a Porta Nobre e Massarelos, onde rapidamente seriam postas barricas a arder, se fosse necessário.
- Às praias de Matosinhos e de Leça da Palmeira continuaram ontem a serem arrojadas pelo mar grandes porções de aduela e vigas de Riga.
- Desde Sobreiras até ao molhe de Carreiros, a polícia do posto da Foz auxiliou a guarda-fiscal na remoção e vigia dos fragmentos de barcos e grande quantidade de aduelas que ali eram arrojadas à praia.
- Nos carros americanos da linha marginal continuou ontem a haver extraordinária concorrência de passageiros. Pela mesma estrada transitaram muitos trens conduzindo pessoas que andavam presenciando os estragos causados pela cheia.
Jornal “Comércio do Porto”, quarta-feira, 14 de Fevereiro de 1900

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