sexta-feira, 6 de maio de 2016

História trágico-marítima (CLXXXIX)


O encalhe e posterior destruição do casco do vapor "Inga I",
na barra do rio Douro, em 29 de Março de 1936

Outro sinistro na barra do “Douro”
O vapor norueguês “Inga I”, quando demandava a barra, bateu contra um rochedo e foi encalhar próximo do cais de Felgueiras.
Ocorreu, no Domingo, um novo sinistro na barra do Douro, que trouxe ao Porto mais umas horas de inquietação e de ansiedade. A barra maldita, no seu fatalismo de sempre, parece comprazer-se em afugentar a navegação. Tem já a sua história trágica, a barra. Ainda há pouco tempo aconteceu o naufrágio do “Gauss”, em que pereceram alguns homens. A tragédia do “Deister”, em que perderam a vida 26 homens, apesar de decorridos 7 anos, não se apagou ainda da memória de todos. Mas a história dramática da barra é um rol maior e mais extenso de angústias inenarráveis.
O sinistro de Domingo não teve, felizmente, consequências trágicas. A tripulação do “Inga I”, o vapor encalhado ao demandar a barra, foi salva pelos bravos tripulantes do salva-vidas “Carvalho Araújo”. À coragem indómita desses homens, e à sua audácia que desafia o mar na sua temerosa luta, devem esses 16 noruegueses as suas vidas. Os tripulantes do “Inga I” não esconderam, nem ocultaram a sua admiração e o seu reconhecimento pelos nossos homens do mar.

O encalhe do “Inga I”
O vapor norueguês “Inga I”, saiu, na última terça-feira, de Cardiff, com destino ao rio Douro, carregando 1.500 toneladas de carvão, consignadas à firma Gomes de Almeida & Guimarães, da rua Infante D. Henrique, 15. Vinha sob o comando do capitão Georges Bugge, e trazia como primeiro piloto o sr. Strandberg, e como segundo piloto o sr. Korsnes: como chefe de máquinas o sr. B. Ellinasen, e como segundo maquinista, o sr. C. Foss. Tripulavam também o “Inga I” os srs. E. Isaksen, O. Ikvalvik, M. Borge, O. Kristiansen, H. Michaelsen, G. Anderson, N. Lerso, H. Markussen, O. Icleiveland, A. Aase e K. Frisvold.
Ante-ontem, de manhã, o “Inga I” apareceu a certa distância da barra. O mar estava um pouco picado, e o vapor norueguês ficou muito ao largo, aguardando melhor ocasião para entrar. Em sua volta estavam, também uns 6 vapores, que esperavam demandar, no momento próprio, a barra do Douro.
O piloto-mor, como o mar estivesse mau, ordenou que seguissem para Leixões dez pilotos, a fim de tomarem uma lancha que os havia de conduzir para bordo dos vapores, que baloiçavam ao largo. Os pilotos assim fizeram. Introduziram-se nos respectivos vapores, para orientarem nas manobras de entrada da barra e as amarrações dos barcos. No “Inga I” entrou o piloto sr. Francisco Soares de Melo, que se pôs logo em contacto com a tripulação.
Às 16 horas e 35 foi içado no mastro do Castelo da Foz o sinal convencional para a entrada dos vapores, em relação aos seus calados de água. Depois de terem entrado os vapores noruegueses “Douro”, “Cresco”, “Grana” e o português “Shell 15”, coube a vez ao “Inga I”, que começou a fazer o enfiamento do canal da barra. Ao aproximar-se da «Ponta do Dente», o vapor, fraquejando à corrente do rio, desgovernou, indo bater numa pedra pelo oeste, produzindo um rombo. O “Inga I”, atravessado à corrente do rio, foi pela mesma arrastado na distância aproximada de 500 metros, indo encalhar num banco de areia ao sudoeste da barra, próximo do local onde, há 7 anos, naufragou o vapor alemão “Deister”. O vapor “Inga I” largou, nessa altura, os dois ferros.

Momento de pânico – Os primeiros socorros
A tripulação do “Inga I”, vendo a má situação em que estava o vapor, tratou de preparar os escaleres de bordo, ao mesmo tempo que envergava os coletes de salvação. Enquanto era desenvolvida esta actividade, com compreensível nervosismo, o capitão pedia socorro por meio do apito de bordo. Estabeleceu-se grande alarme, correndo a notícia célere pela cidade.
Acorreram para o local, de todos os pontos, milhares de curiosos, servindo-se de todos os meios de transporte. Ao longo dos cais e avenidas próximas a multidão, cheia de inquietação e ansiedade, tomava as suas posições, para ver os trabalhos de salvamento da tripulação do navio encalhado.
Da barra do Douro partiram para o local os rebocadores “Mars II”, “Vouga I”, “Tritão”, “Neiva” e “Lusitânia” e os salva-vidas, a remos, da Foz e da Afurada, que se dirigiram para as imediações do vapor encalhado. Momentos depois saíam de Leixões, a toda a pressa, o salva-vidas a motor “Carvalho Araújo” e uma lancha-motor dos pilotos daquele porto.
Por terra compareciam, ao mesmo tempo, as corporações dos Bombeiros Voluntários do Porto, Portuenses, Municipais, Voluntários de Matosinhos-Leça e de Leixões.
O momento era impressionante. Havia em todos uma emoção profunda, que se justifica plenamente, atendendo à tragédia do “Deister”, que se desenrolou, mais ou menos, naquele ponto onde o “Inga I” estava na mais critica situação.
Os Bombeiros Voluntários do Porto, sob o comando do sr. Capitão Miranda, e instalados no cais de Felgueiras, prepararam um foguetão, que lançaram, pelas 18 horas e 10, em direcção ao “Inga I”. O foguetão não atingiu o vapor, devido à grande distância a que ele se encontrava de terra.
A sirene de bordo continuava a fazer-se ouvir, denunciando a gravidade da situação do vapor norueguês.
De bordo, os tripulantes vendo que o foguetão não atingira o vapor, e que os salva-vidas não podiam aproximar-se, lançaram por meio de uma pipa, uma espia ao mar, no intuito de alvejar qualquer das embarcações que se encontravam próximas, e estabelecer contacto com o navio. Não conseguiram, porém, o seu intento, pois a corrente de água fez mudar de direcção a referida pipa, para um lugar onde não podia ser apanhada. A situação tornava-se, assim, mais angustiosa.

O salva-vidas “Carvalho Araújo” em plena luta
com o mar, consegue salvar a tripulação
O salva-vidas “Carvalho Araújo”, tripulado pelos bravos homens do mar, srs. António Rodrigues Crista (patrão), Aristides Moleta da Silva (maquinista), Jaime Serafim Bessa, António Francisco da Silva e Ricardo Rodrigues da Costa, começou a rodear o vapor, procurando manobrar no sentido de o poder abordar.
O momento é de uma emoção singular. A multidão, silenciosa, fixa os seus olhos no pequeno barco, que, em plenas vagas, luta temerosamente para atingir o “Inga I”.
Há momentos em que parece que o “Carvalho Araújo” vai submergir-se. Mas em breve, o salva-vidas endireita-se, como triunfante numa luta formidável e vai direito ao vapor norueguês, fazendo a abordagem. Os corajosos homens, habituados ao mar, afeiçoados a esta luta sem igual, nada temendo, nem a própria morte, não largaram o local, pouco convidativo, enquanto não tiveram a bordo da sua frágil embarcação as 17 vidas que estavam a bordo do “Inga I”.
Pelos milhares de pessoas passou uma sensação de alívio e de singular admiração pelos bravos e indómitos homens do “Carvalho Araújo”.
Havia, porém, outra grande dificuldade a vencer. A situação do “Carvalho Araújo” não era boa, porque estava um pouco encostado ao vapor norueguês e as vagas eram alterosas, e por vezes saltavam a popa daquele vapor, correndo sobre o casco. O patrão do salva-vidas, senhor do leme, lutando contra os vagalhões, fez-se a terra. Foi um momento de heroísmo.
O barco tomou, depois, rumo em direcção à barra, trazendo a bordo os náufragos. Ao entrar a barra, triunfante na guerra dos elementos, a multidão, emocionada, acenava milhares de lenços, e batia palmas de contentamento e de admiração pelos bravos marítimos.
Foi um espectáculo empolgante e grandioso. Os homens do “Carvalho Araújo”, olhavam a multidão com aquela simplicidade e rudeza que lhe são peculiares. Para eles fora apenas um serviço feito com certa felicidade, e que lhes dera satisfação por poderem salvar aqueles 17 vidas – aqueles companheiros das mesmas fainas do mar.
O barco seguiu até ao cais do Marégrafo, onde já se encontravam os srs. Carlos Gonçalves Guimarães e José Gomes de Almeida, aos quais vinham consignados o vapor e a respectiva carga.
Desembarcaram ali os náufragos, alguns dos quais traziam sacas com as suas roupas. Outros nada traziam, porque não tiveram tempo de salvar as suas coisas.
O último a saltar para terra foi o comandante do “Inga I”. O sr. capitão Bugge, embora um pouco extenuado, teve palavras de exaltação e simpatia para a acção dos tripulantes do “Carvalho Araújo”, «a quem – acentuou - todos nós devemos a vida».
Apareceu ali, também, uma camioneta com guardas da P.S.P., sob o comando do sr. tenente Rogério Abranches. Os tripulantes do “Inga I”, seguiram, naquela camioneta para o Hotel da Boavista, onde ficaram hospedados. Os tripulantes do “Carvalho Araújo”, acompanhados pelo seu arrojado patrão António Crista, dirigiram-se para a Capitania de Leixões, a fim de se apresentarem ao sr. Capitão do Porto.
A notícia do salvamento dos tripulantes do “Inga I”, espalhada pelos cartazes noticiosos, causou a mais agradável sensação.

O reconhecimento dos tripulantes do “Inga I”
Estivemos no hotel onde estão hospedados os náufragos. Tinham passado os maus momentos, e, entre novos e velhos, havia grande satisfação e uma viva alegria. O 1º piloto, sr. Strandberg, um rapaz alto e louro, cheio de vida e de bom humor, acolhe-nos com um sorriso franco.
Perguntamos-lhe se estavam satisfeitos com os socorros rápidos que lhes foram prestados, ao que nos declarou:
- Estamos contentíssimos. Não podemos esquecer o que os tripulantes do “Carvalho Araújo” fizeram por nós. A sua bravura impressionou-nos profundamente, e nunca os esqueceremos. São uns grandes camaradas.
Os outros tripulantes acompanhavam e aprovavam as expressões de simpatia que o sr. Strandberg teve para com os tripulantes do salva-vidas “Carvalho Araújo”.
O capitão do vapor, que fora expedir telegramas, ao chegar ao hotel, manifestou-nos, também, a sua grande admiração pelos bravos homens daquele barco salva-vidas.

Outros pormenores
O “Inga I” foi construído em 1918, nos estaleiros Mosse, e pertence à Sociedade Eliassen, de Bergen, Noruega. Desloca 1.183 toneladas brutas e 689 toneladas liquidas. Mede 226 pés de comprimento e 36.6 de pontal.
O vapor norueguês manteve-se, durante a noite, na mesma posição. Ontem, durante o dia pouco se alterou a sua situação, havendo ainda esperança do seu salvamento.
Os tripulantes do “Inga I” andaram ontem pela cidade. O sr. Cônsul da Noruega visitou-os, logo após o salvamento, e ontem, de manhã.
Apesar da fraca visibilidade, na Foz, afluíram, ontem, ali, numerosas pessoas, a fim de verem o “Inga I”.
A entrada da barra está, ainda, livre, pois o “Inga I” não estorva o seu acesso, pela distância a que se encontra.
(In jornal “Comércio do Porto”, segunda, 30 de Março de 1936)

Desenho de navio do tipo idêntico ao "Inga I"

Características do vapor “Inga I”
1919-1936
Armador: A/S D/S “Inga I”, (Johan Eliassen), Bergen, Noruega
Nº Oficial: N/t - Iic: M.S.J.B. - Porto de registo: Bergen
Construtor: A/S Moss Vaerft & Dokk, Moss, Noruega, 07.1918
ex “Inga I”, Helleso’s Rederi II, Bergen, Noruega, 1918-1919
Arqueação: Tab 1.183,00 tons - Tal 689,00 tons
Dimensões: Pp 69,01 mts - Boca 11,13 mts - Pontal 4,75 mts
Propulsão: Moss Vaerft & Dokk - 1:Te - 3:Ci - 97 Nhp - 9,5 m/h
Equipagem: 16 tripulantes

Ainda o encalhe do vapor norueguês “Inga I”
A chegada de vapores salvadegos
O vapor norueguês “Inga I”, que no Domingo, ao demandar o porto, encalhou próximo da barra, mantém-se no mesmo lugar. A sua posição é, também, a mesma, embora esteja um pouco mais submerso. O mar, ainda um tanto agitado, cobriu por vezes, com as suas vagas, todo o convés do vapor norueguês. Não lhe produziu avarias de maior, não estando de todo afastada a ideia de salvamento, embora exista um rombo devido ao embate com o rochedo.
Ante-ontem, o salva-vidas “Carvalho Araújo, saiu de Leixões, conduzindo o sr. capitão Bugge e outros tripulantes do “Inga I”, para retirar do vapor algumas roupas, documentação e o gato de bordo. Ao fim da tarde o “Carvalho Araújo” entrava de regresso a Leixões, sem novidade.
Procedente de Setúbal, chegou a Leixões o vapor salvadego dinamarquês “Geir”, da mesma companhia a que pertence o vapor “Valkyrien”, que vem sondar o “Inga I”, a fim de ser estudada a possibilidade do seu salvamento. Em tal caso, serão apresentadas propostas à firma a que vêm consignados o vapor e a sua carga. Com o mesmo fim é esperado o vapor salvadego alemão “Max Berendt”.
Ontem afluíram à Foz do Douro numerosas pessoas, que ali foram ver o navio sinistrado. A meio da tarde, sobrevoou aquele vapor um hidro-avião da base de S. Jacinto, que provocou viva curiosidade.
Os tripulantes do “Inga I” já tem a sua documentação legalizada, e aguardam instruções da Noruega para regressarem àquele país.
(In jornal “Comércio do Porto”, quarta, 1 de Abril de 1936)

Ainda o encalhe do “Inga I”
A barra do Douro
O vapor norueguês “Inga I” está um pouco adornado a bombordo. O mar, na maré da noite de ante-ontem, levou-lhe a ponte de comando. Agora, do “Inga I” só se vê a chaminé e os mastros. Pode, por isso, considerar-se perdido.
A barra do Douro não deu, ainda, movimento às embarcações que estão ao largo, devido à forte corrente da água. No entanto, o volume do rio é menor. É, pois, provável que entrem hoje no Douro alguns dos nove vapores que estão ao largo a aguardar ocasião para demandarem a barra.
O rebocador “Vouga Iº”, andou ontem, com pilotos a bordo, a fazer sondagens à entrada da barra.
(In jornal “Comércio do Porto”, sexta,3 de Abril de 1936)

Ainda o encalhe do “Inga I”
O vapor norueguês “Inga I”, encalhado num banco de areia a sudoeste da barra, continua na mesma situação, mas um pouco mais submerso.
O “Inga I” considera-se perdido. Embarcaram, ante-ontem, em Vigo, no vapor alemão “Cap Norte”, com destino a Hamburgo, 14 tripulantes do “Inga I”. Outro tripulante seguiu para Valencia, para tomar parte na tripulação dum vapor que se encontra ali fundeado.
(In jornal “Comércio do Porto”, sábado, 4 de Abril de 1936)

A Noruega distinguiu com medalhas a tripulação
portuguesa do salva-vidas “Carvalho Araújo”
Oslo, 30 – O conselho de ministros concedeu medalhas de salvamento à tripulação do barco salva-vidas português “Carvalho Araújo” que, em 29 de Março, ao largo do Porto, salvou a tripulação do navio norueguês “Inga I”, em condições extremamente difíceis.
(In jornal “Comércio do Porto”, sexta, 1 de Maio de 1936)

Ainda o encalhe do “Inga I”
Este vapor encalhado há meses à entrada da barra do Porto, está hoje ligado ao Cabedelo, por um banco de areia, que em breve dará acesso a pé enxuto, entre o Cabedelo e o referido vapor; e, se agora, não causa dificuldades de maior, devido à quadra actual geralmente de bom mar e tempo, não é de esperar que ao aproximar-se o Inverno, esta situação se mantenha, mas sim que se agrave, tornando o acesso à barra do Porto muito perigoso, motivo pelo que a destruição do casco do “Inga I” se impõe sem demora, para que também o banco de areia em que assenta se vá dissipando, com a ajuda dos ventos de Norte e Noroeste, predominantes neste período.
A direcção da Associação Comercial considerando esta situação resolveu, perante as entidades respectivas, instar novamente pela destruição a dinamite do casco do “Inga I”. Nada mais havendo a tratar, foi encerrada a sessão.
(In jornal “Comércio do Porto”, sexta, 12 de Junho de 1936)

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