sábado, 18 de janeiro de 2014

Retratos de uma época não distante


O naufrágio do paquete "Vestris"
1ª Parte

Foto do paquete "Vestris" - Imagem da Photoship.Uk

De novo, repetem-se causas idênticas às do naufrágio do vapor “Principessa Mafalda”

Depoimentos dos passageiros
Rio de Janeiro, Novembro:– Mais uma tragédia marítima, mais um naufrágio deste lado do Atlântico vem encher de horror aqueles que ainda possuem sensibilidade e sentem, como suas, as desgraças alheias.
O telégrafo, por certo, não deixou já de espalhar por todo o velho continente, Portugal inclusive, o impressionante naufrágio do “Vestris”, transatlântico da Lamport & Holt, em viagem para a América do Sul.
Não se desvaneceu ainda a espantosa catástrofe do “Principessa Mafalda”, próximo da Bahia, sepultando, nas águas, para sempre, centenas de passageiros. Não fica tão distante de nós a horrível tragédia, para que ela não volte a aflorar no espírito, com todo o seu cortejo dantesco de horrores. Coube agora a vez do “Vestris”.
As causas do naufrágio começam a precisar-se. Acusações tremendas levantam-se contra a companhia. O “Vestris” é um navio que anda em serviço há 16 anos, um velho navio como o “Voltaire”, da mesma companhia, que há bem pouco chegou a Nova York com grande atraso, por se lhe ter partido uma hélice durante a viagem.
Dirão que acidentes desta natureza podem dar-se até com transatlânticos modernos. Evidentemente. Como não se pode prever, no alto mar, uma colisão entre navios, em noite de nevoeiro cerrado.
Mas, ao lado destes acidentes a que estão sujeitos, necessariamente, todos os que viajam, quanta incúria, quanto desleixo criminoso não se pode imputar às companhias e empresas de navegação!
A afirmação recai sobre os peritos que elaboram os inquéritos, que o dizem desassombradamente. E, de resto, não tenhamos a estulta intenção de pedirmos a uma empresa aquele sentimento de humana solidariedade, o interesse pelos haveres e vidas dos que neles confiam. Seria pedir muito ao egoísmo de cada ser humano, um pouco mais de escrúpulos?
Evidentemente que as empresas, obrigadas a enormes dispêndios, a corresponderem, com determinado juro, ao capital empregado, não vão substituir os navios velhos por novos, enquanto eles puderem navegar. Cada um desses modernos e belos transatlânticos que orgulhosamente sulcam as águas dos oceanos, de um a outro continente, custam milhares de contos, fortunas colossais. E, é claro, que velhos xavecos que ainda fazem carreiras, com emigrantes e passageiros, da Europa para a América do Sul, só serão postos à margem quando absolutamente imprestáveis ou o mar, como sucedeu com o “Principessa Mafalda”, se encarregue de os afundar, com carga e passageiros.
Os jornais brasileiros, diante da catástrofe do “Vestris”, voltam a tocar num assunto por demais oportuno e digno da atenção das autoridades marítimas de qualquer país, com especial relevo para Portugal. Diz um dos jornais:
«É preciso que uma autoridade qualquer se erga para coibir o abuso e forçar estes armadores a ter pela existência alheia, um pouco mais de atenção. Na parte que toca ao Brasil não seria difícil acautelar os viajantes que se destinam a outros portos.
Bastaria, por exemplo, que fosse proibida a escala nos portos brasileiros aos navios que não oferecessem condições de absoluta segurança e que não trouxessem, nesse sentido, documento de responsabilidade. Pelo menos os brasileiros ou os que para o Brasil tomassem passagem estariam acautelados.
Se as companhias como a Lamport & Holt não tem escrúpulos, uma medida dessa natureza acabaria por convencê-las da necessidade de reformar o seu material flutuante. Aliás os protestos que em vários países se tem levantado contra o descaso dessa empresa são significativos e devem merecer a máxima atenção das autoridades marítimas. E parece que se é possível impôr, de acordo com as leis sanitárias, a quarentena rigorosa aos navios empestados, não há razão para que não seja feita coisa maior com os calhambeques que constituem um perigo permanente para os que neles precisam de viajar».
Há, de facto, o dever de acautelar a vida dos que viajam. Uma coisa ressalta logo, aliás verificado por diversos passageiros num paquete que viajava de Portugal para o Rio de Janeiro – o estado lamentável dos escaleres de bordo. Todos os passageiros do “Vestris” são unânimes em declarar que as embarcações postas no mar, começavam logo a meter água. Contra esta acusação as empresas não tem nada para responder. Foi observado, in loco, pelos passageiros que passavam no convés do transatlântico que veio para o Brasil, em 1924, com mais de um escaler avariado, através de cujas junturas se podia ver de um para o outro lado.
Fui de opinião, como ainda hoje acho ridículo e impróprio da seriedade que deve presidir a actos desta natureza, esse espectaculoso simulacro de salvamento com que se procura dar aos passageiros uma impressão de ordem e segurança, que os naufrágios, lamentavelmente desmentem. Para quê afinal, essa grotesca comédia! Por certo que há companhias que prezam mais a vida dos passageiros do que outras – mas a quase todas se pode lançar a acusação de trazerem, vistosos e lindos, os escaleres de bordo – que na ocasião de perigo iminente para nada servem.
Pois bem, esse navio, já velho, onde fiz a viagem continua a navegar e a transportar emigrantes de Portugal para o Brasil. Como estarão hoje os seus escaleres? Como estarão a funcionar as suas máquinas cansadas?
Um dia a catástrofe chega inesperadamente. Coisas que acontecem, dirão os optimistas. Nem sempre; mas descaso, incúria, indiferença de quem apenas pensa em distribuir todos os anos, conforme mandam os estatutos, tantos por cento aos accionistas.
Segundo um telegrama da «Havas», parece ter ficado provado, no decurso dos interrogatórios, que o “Vestris” se encontrava com avarias desde a noite que procedeu a catástrofe. Os pedidos de socorro, os aflitivos, desesperados S.O.S. foram, tardiamente, lançados através do espaço. E, de tudo, se chega à conclusão de que cento e tantos míseros passageiros, pagaram com a vida, tanto pela indecisão do comandante em mandar, a tempo, lançar pelo espaço os S.O.S., como pelo descaso da companhia, deixando o navio partir com avarias e as embarcações de bordo em mau estado.
O jornal «A Noite» recebeu do seu correspondente em Nova York (serviço da North American Newspapers Alliance) os seguintes pormenores impressionantes do sinistro:
Foram conduzidas para aqui, pelo “Wyoming”, umas senhoras que eram passageiras do “Vestris” e que são heroínas de dois episódios dos mais horríveis que se sucederam à catástrofe. São elas Teruko Inouye, de Tóquio, e Marion Galvin Batten, de Nova York. Essas duas senhoras contam que passaram vinte horas sob o mar revolto, mantendo ambas nos braços, os corpos dos respectivos maridos. Estes, não resistindo à prolongada e terrível luta, morreram horas depois, do vapor ter ido ao fundo. Então ambas, que os viram desfalecer de cansaço e de frio, passaram a mantê-los à tona. Os dois homens morreram e as esposas delicadamente conservaram nos braços os cadáveres até que foram encontradas.
A senhora Teruko Inouye, esposa do major Inouye, adido militar japonês em Buenos Aires, ouvida pelo adido militar do Japão em Washington, que se fez presente a fim de socorrer os náufragos japoneses, descreveu assim, concisamente, o que lhe sucedeu:
- Estávamos todos num bote que devido ao mar grosso que fazia, virou subitamente. Foi conseguido, num esforço conjunto pôr novamente o bote em situação normal, e, mal alguns náufragos para ele haviam subido, a embarcação virou outra vez. Havia um rombo no casco e, então verificamos que não era possível consertar o bote. Ficamos todos em volta dele, agarrando-nos ao casco. Uns, perdendo as forças, desprenderam-se. Lembro-me que, em certo momento, vi o meu marido quase desfalecido. Apertei-o nos meus braços e reparei que ele tinha morrido. Apertei-o ainda mais… Perdi, depois, os sentidos!… Não me lembro de mais nada!…
Os tripulantes do “Wyoming” contam que encontraram a senhora Inouye juntamente com as senhoras Elvira Fernandez Rua e Dolores Loril, que seguravam o cadáver do major Inouye. O major tinha morrido havia duas horas. Quando os marinheiros pegaram na senhora Batten, apenas ouviram dela estas palavras: «Se não fosse o Geraldo, não estávamos aqui». A senhora Batten, outra das naufragas recolhidas, referia-se ao fogueiro do “Vestris”, Geraldo Burton, natural de Barbados, a cuja dedicação se devem muitas vidas salvas e que, felizmente, também se conseguiu salvar.
A senhora Batten estava no mesmo bote que a senhora Inouye e Geraldo Burton era um dos tripulantes da embarcação. Quando o bote virou, Geraldo disse às senhoras Batten e Maria Ulrich:- «Tenham confiança em mim! Não deixarei que morram afogadas!».
Geraldo Burton, narra a senhora Marion Batten, não cessou de nadar em redor dos destroços do navio, aos quais se agarravam os náufragos. Lutou com as ondas durante vinte horas, ora amparando um, ora outro e animando a todos. As suas atenções eram, principalmente, para as senhoras mais fracas, às quais ele amparava e lhes permitia alguns minutos de descanso. Às vezes, socorria dois náufragos ao mesmo tempo, nadando apenas com os pés.
- Entramos no bote nº 8 – conta a senhora Batten – mas como a embarcação estava demasiado carregada, procurei, com a senhora Ann Devore, chegar a outro bote que, mais tarde, foi salvo pelo vapor “American Shipper”. Nesse bote havia apenas 5 tripulantes do “Vestris”. A senhora Devore conseguiu entrar nesse barco, mas quando eu tentei fazer o mesmo, fui afastada dele, brutalmente, com um remo. O bote nº 8 afundava, lentamente, a pouca distância, por excesso de carga e, apesar dos meus gritos e das minhas súplicas, os tripulantes desse bote, que eram homens de cor, continuaram a afastar-se, deixando-me a lutar com as ondas. Pouco depois, o bote virou. Vi, então, entre horrorizada e esperançada, a luta de todos os náufragos com esse fatídico bote nº 8. Seis vezes ele virou e seis vezes foi posto em posição normal, subindo para ele alguns náufragos. Mas, de cada vez, o número de ocupantes era menor. Os outros iam sendo tragados pelas ondas… Os homens, como era natural, devido aos esforços empregados, foram-se extenuando. O bote não tinha mais concerto. O número de lutadores diminuía. Desamparadas, as mulheres viram-se obrigadas a contar somente com as próprias forças. Quando o “Wyoming” chegou ao local, só restavam quatro sobreviventes: as senhoras Batten e Ulrich, Geraldo Burton e John Morris, outro tripulante do “Vestris”. A senhora Rua perdeu o marido e o filho; a senhora Ulrich perdeu o filho; o seu marido tinha sido salvo por outra embarcação.
A bordo do “Vestris” viajava a jovem Iracema dos Santos Cabral, filha do general brasileiro Emílio Cabral, de quem ainda não houve notícias. Tinha ido à América do Norte, aperfeiçoar-se nos estudos de enfermagem, na Fundação Rockefeller.
Mais uma grande, tenebrosa tragédia e voilá. Tudo ficará na mesma. Os homens que tem a responsabilidade dos bens e vidas dos seus semelhantes, não abandonarão, por tão pouco, as suas graves cogitações de políticos ou de diplomacia internacional. E velhos navios, em condições de ocasionarem, amanhã, outra irremediável catástrofe, continuarão a sulcar, tranquilamente, os oceanos, carregados de passageiros.
Entretanto… entretanto, pelo que diz respeito a Portugal, que é um óptimo país para as companhias de navegação, seria muito fácil resolver o problema… Bastaria apenas que uma comissão de técnicos competentes vistoriasse, com interesse pela vida dos que embarcam, os transatlânticos que passam pelos portos portugueses. Isso não evitará a possibilidade de um naufrágio, em função das causas apontadas? Talvez, mas não se esqueçam os que tem resposta para tudo, que o “Principessa Mafalda” naufragou com mar calmo, e que se não fossem os escaleres de bordo meterem água, a percentagem de vítimas teria sido mínima – tendo, para mais, ocorrido logo vários navios para o local do sinistro.
Para confirmar o que deixo escrito, transcrevo, para os eternos egoístas e indiferentes, este telegrama:
Nova York, 17 – Diversos dos passageiros salvos do naufrágio do “Vestris” prestaram depoimento ontem, perante a comissão de inquérito encarregada de apurar as causas do afundamento do navio.
Esses passageiros verberaram, acremente, o procedimento da oficialidade e da marinhagem do “Vestris”. Acusam a tripulação de incompetente e de indisciplinada, dizendo que os próprios oficiais encheram alguns botes para se salvarem. Também a maneira de colocar os passageiros nos botes era a pior possível, tanto que dois escaleres afundaram cheios de mulheres e crianças. Os escaleres, igualmente, estavam em tão péssimas condições que muitos iam a pique imediatamente. Os marinheiros do “Vestris” estão chamados a depôr, perante a Comissão, hoje. (A.)
Texto de Raul Martins no Rio de Janeiro para o jornal “Comércio do Porto”, de sexta-feira, 7 de Dezembro de 1928

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