quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Curiosidades


Um avião inglês caiu sobre a proa do "Normandie"!

A proa do "Normandie" - cenário do sinistro

Londres, 22 – A Associação de imprensa inglesa informa que um avião bombardeiro, da base aeródromo de Gosport, chocou com a proa do “Normandie”. Este regressava de Nova York e vários hidroaviões voavam perto dele, quando um deles tocou no cordame do mastro de vante e caiu sobre a proa. De acordo com uma testemunha que presenciou o desastre, o aparelho caiu de tal maneira que pareceu ter feito uma aterragem perfeita.
O piloto do aparelho, que sofreu apenas um ligeiro choque, largou imediatamente o navio a fim de participar o acidente no depósito, e o “Normandie” partiu para o Havre levando o avião a bordo, que tem a estrutura inferior seriamente danificada. O aparelho será desembarcado quando proximamente o vapor passar em Southampton.

A versão do acidente segundo o comandante do “Normandie”
Londres, 22 – Acaba de ser difundida pela rádio a versão dada pelo comandante do “Normandie” ao representante do jornal Evening News, da queda dum avião militar britânico sobre a proa do grande transatlântico:
«Às 11 horas e quinze minutos encontrava-me na ponte, vigiando a descarga de automóveis, quando avistei, voando baixo, um avião militar britânico. Deu duas ou três voltas ao navio e, finalmente, passou por sobre a chaminé de vante. Não deve ter ocorrido ao piloto que os gases quentes da chaminé originam a formação, no espaço, dos chamados poços de ar.
Apesar dos esforços do piloto, o aparelho capotou e, com um choque formidável, foi despedaçar as asas de encontro ao guindaste que serve para a descarga dos automóveis. Como a ponte estava cheia de tripulantes, temi, a princípio, que tivesse havido carnificina, o que, felizmente, não aconteceu.
A violência da queda ultrapassa tudo quanto se possa imaginar. O avião caiu como uma pedra, destacando-se a fuselagem, que ficou feita em pedaços, junto ao mastro de vante. Um dos oficiais de bordo precipitou-se, em socorro do piloto. Este, um jovem oficial, saiu meio aturdido da carlinga e as suas primeiras palavras foram: esta história aflige-me a valer.
Conduzido ao meu gabinete, perguntou-me o que ia ser feito do avião. Respondi-lhe que não podia perder tempo e atrasar o navio, para o descarregar e que, por isso, o avião seguiria a bordo até ao Havre. Então, depois de declinar a sua identidade, dizendo ser o tenente Horsey, pediu para desembarcar e seguiu para terra imediatamente.»
(In jornal “Comércio do Porto”, terça, 23 de Junho de 1936)

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

História trágico-marítima (CXVII)


O naufrágio do navio "Ada Ferrer"

Na manhã de ontem (3 de Outubro de 1973), o cargueiro espanhol “Ada Ferrer”, que transportava um carregamento de 400 toneladas de sal para o porto de Villagarcia de Arosa, encalhou ao largo da praia de S. Bartolomeu do Mar – Esposende, tendo-se salvo os seus oito tripulantes.

Imagem do navio “Ada Ferrer” no porto de Santander
Foto de T. Diedrich/ shipspotter.es

Naufrágio no mar de Esposende
Esposende, 3 – Na madrugada de hoje, cerca das 6 horas e quinze minutos, chovia com certa intensidade, o mar estava calmo, e não havia nevoeiro. Àquela hora, o pequeno cargueiro espanhol “Ada Ferrer”, da Empresa Federico Ferrer, de Madrid, proveniente do Porto de Santa Maria, Cadiz, em viagem para o de Villagarcia de Arosa, quando navegava no mar de Esposende, mais precisamente em frente à praia de S. Bartolomeu do Mar, encalhou numas rochas xistosas existentes no sítio do Lontreiro, rochas essas que são como que a continuação dos «Cavalos de Fão», a cerca de cem metros da praia.
Logo que o capitão da pequena embarcação - de 500 toneladas -, sr. Balbino Alonso Paredes, de 41 anos, casado, natural de Moanha, Espanha, se apercebeu do sucedido, tentou, pelos seus próprios meios, safar o navio, mas estas tentativas resultaram infrutíferas, pelo que, utilizando a buzina de bordo, fizeram repetidos toques a pedir socorro. Estes foram ouvidos, pouco depois, pelo pessoal do posto da Guarda-Fiscal de S. Bartolomeu do Mar, que logo providenciaram para que fossem prestados socorros ao navio em perigo.

O salvamento dos náufragos por duas embarcações
da Apúlia e de Esposende
Entretanto, o barco de pesca “Novo João José IIº”, da Apúlia, cujo mestre é o sr. Norberto de Oliveira Gonçalves André, e a motora “1º de Abril”, de Esposende, de que é arrais o sr. José Pinho de Jesus Nibra, ouvindo os repetidos toques acorreram em direcção ao cargueiro, tendo encontrado os oito tripulantes do navio encalhado num barco pneumático, acabando por recolher aqueles a bordo das duas embarcações, transportando-os, de seguida, para o posto de socorros a náufragos de Esposende.
Por sua vez, deslocaram-se à praia de S. Bartolomeu do Mar os Bombeiros Voluntários locais, alertados – como acima se refere – pela Guarda-Fiscal, com duas viaturas apetrechadas com equipamento para socorros a náufragos, tal como o salva-vidas de Esposende, porém, em ambos os casos os seus serviços não foram necessários, por os tripulantes do navio encalhado já terem sido conduzidos para terra.

As possíveis causas do encalhe
Nas declarações que prestou na Delegação Marítima de Esposende, o capitão do navio naufragado atribuiu o encalhe ao facto de julgar estar perto de Leixões e ter confundido o farol de Montedor com aquele, e assim ter-se aproximado de terra ao pensar poder tratar-se do farol que antecede o de Leixões. De notar que o farol de Montedor é rotativo e o de Leixões é «pisca-pisca».
Por sua vez, o comandante entrou em contacto com a empresa armadora do navio para ser tentada uma eventual operação de desencalhe do mesmo. Porém, o desencalhe apresenta-se difícil em virtude do navio estar encravado na rocha viva e com a proa voltada na direcção norte-nordeste. Assim, há poucas esperanças de salvar o pequeno cargueiro, mas parece que amanhã algo vai ser tentado nesse sentido.
A ocorrência fez levar à praia de S. Bartolomeu do Mar muitas centenas de curiosos, que de longe observavam o navio, cuja situação é considerada pelas autoridades marítimas como difícil. A embarcação naufragada transportava um carregamento de quatrocentas toneladas de sal, que se destinava ao porto de Villagarcia de Arosa, e foi construído em 1956.
Nas últimas horas a situação do cargueiro tem piorado, pelo que as autoridades marítimas – segundo parece – tem poucas esperanças de o safar.
(In jornal “Comércio do Porto”, quinta, 4 de Outubro de 1973)

Identificação do navio “Ada Ferrer”
Armador: Federico Ferrer Tuset, Valencia, Espanha
Construtor: Astilleros Neptuno S.A., Valencia, 18.11.1956
Arqueação: Tab 342,00 tons - Pm 433,00 tons
Dimensões: Pp 39,60 mts - Boca 7,50 mts - Pontal 3,83 mts
Propulsão: 1:Di – 9,5 m/h
Equipagem: 8 tripulantes

A tripulação do “Ada Ferrer”
A tripulação do pequeno cargueiro “Ada Ferrer” é constituída pelos seguintes elementos: capitão, Balbino Alonso Paredes; 1º motorista, Francisco Santa Maria Rodriguez; 2º motorista, José P. Perez; contra-mestre, Carmelo Soarez Baña; marinheiros, Eduardo Blanco Ferradas, Ramon Torrado Costa e Jesus Romar Ameipenda; e cozinheiro, Eduardo Tallos Deus, todos residentes na província de Pontevedra, Espanha.

Navio encalhado (há dias) parte-se em dois
e polui o mar de Esposende
Esposende, 13 – Encalhado desde o dia 3, na praia de S. Bartolomeu do Mar, o cargueiro espanhol “Ada Ferrer”, flagelado por vagas alterosas, de bombordo a estibordo, nestes últimos dias, acabou por se partir, hoje, em dois, começando, assim, a desmantelar-se.
Até aqui nada de grave a assinalar, uma vez que o navio estava dado como perdido. Do que, entretanto, se esqueceram as pessoas responsáveis, foi de que nos seus tanques existiam cerca de quinze mil litros de gasóleo agora derramado nas águas do oceano, formando enormes mantos, e toldando a atmosfera, impregnada de um forte cheiro a nafta. E assim, uma das mais belas e limpas praias da nossa costa fica sujeita à poluição. O próprio peixe, numa vasta zona costeira, irá sofrer inerentes consequências, o que se lamenta, e muito, tanto mais que tudo isto poderia, em tempo, ser evitado.
É certo que a Delegação Marítima de Esposende logo de início fez pressão para que o combustível fosse bombado, o que não se verificou, segundo consta, por dificuldades de ordem técnica, numa época de grandes inventos.
Com a fúria do mar, os espojos do navio estão cada vez mais próximos da costa, o que faz atrair ao local inúmeros curiosos, tantos deles preocupados em recolher pequenos destroços de um barco completamente perdido.
(In jornal “Comércio do Porto”, Domingo, 14 de Outubro de 1973)

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

História trágico-marítima (CXVI)


O encalhe do patacho "Lady Bird" no rio Douro

Notícias marítimas
O patacho inglês “Lady Bird”, quando ontem (29.09.1883), depois de levantar ferro, se dispunha a sair, encalhou no rio Douro, próximo à Ribeira. O rebocador “Victoria”, porém pode safá-lo, conduzindo-o em seguida para fora da barra onde o largou, visto ter-se verificado que o patacho nada tinha sofrido com o encalhe. O “Lady Bird” saiu com destino à Figueira da Foz.
(In jornal “Comércio do Porto”, Domingo, 30 de Setembro 1883)

Mapa do movimento de navios entrados no rio Douro,
no dia 27 de Setembro de 1883

Identificação do patacho “Lady Bird”
Armador: Jas Bourgard, Quebec, Canadá
Construtor: Desconhecido, Quebec, Canadá, 05.1872
Arqueação: Tab 173,00 tons
Dimensões: Pp 28,65 mts - Boca 7,62 mts - Pontal 3,63 mts
Propulsão: À vela

domingo, 26 de janeiro de 2014

Navios Portugueses


O “Nacala” da Companhia Nacional

Em determinados momentos, lamento não ter estado mais perto da capital quanto gostaria, para ter tido a oportunidade de recolher mais informação, sobre um ou outro navio, que por motivos óbvios e numa determinada época, nunca viajaram até aos portos do norte, pelo menos que seja do meu conhecimento.
Um dos casos a merecer uma menção muito especial, prende-se com a galera inglesa “Leyland Brothers”, que julgo tenha sido adquirida em 1912 pela Empresa Nacional de Navegação e amarrada no rio Tejo, transformada em pontão para armazenamento de carvão, que fornecia sempre que os vapores da companhia necessitavam desse precioso combustível.

Identificação da galera inglesa “Leyland Brothers”

Imagem da galera "Leyland Brothers"
Foto de autor desconhecido - colecção particular

Armador: R.W. Leyland & Co., Liverpool, 1886-1912
Nº Oficial: N/d - Iic.: H.J.H.D. - Registo: Liverpool
Construtor: Oswald Mordaunt & Co., Southampton, 10.1886
Arqueação: Tab 2.291 tons
Dimensões: Pp 86,56 mts - Boca 12,19 mts - Pontal 7,38 mts
Propulsão: À vela

Porque se tratou de um pontão, o navio foi provavelmente desmastreado e colocado no regime de serviço portuário e rebaptizado com o nome “Empresa Nacional”, entre os anos de 1912 a 1918, actualizando o nome desde então para “Companhia Nacional”, de 1918 até 1943.
Como se percebe, o navio não consta nas listas de navios portugueses, revelando-se por esse motivo tarefa difícil obter quaisquer indícios dele até à descoberta da sua reconstrução, em 1944.
Na fase ulterior em que foi dada nova utilização ao casco primitivo, em função do bom estado em que o mesmo se encontrava, o navio ter-se-á ainda chamado “Zaire”, entre 1943 e 1944, até à definitiva saída do estaleiro totalmente reconstruído, com o nome “Nacala” (Iº). A respectiva matrícula foi entretanto legalizada oficialmente na Capitania do porto de Lisboa, no dia 14 de Julho de 1944.

Identificação do navio-motor “Nacala”

Foto do navio-motor "Nacala" em Leixões
Imagem da Fotomar, Matosinhos - Minha colecção

Armador: Comp. Nacional de Navegação, Lisboa, 1944-1967
Nº Oficial: G-467 - Iic.: C.S.H.D. - Registo: Capitania de Lisboa
Construtor: Reconstruído em Lisboa, em 1944
Arqueação: Tab 2.390,16 tons - Tal 1.614,98 tons
Dimensões: Ff 86,80 mt - Pp 82,63 mt - Bc 12,22 mt - Ptl 6,70 mt
Propulsão: Sulzer Frères, 1943 - 2:Di - 10:Ci - 1870 Bhp - 11 m/h

Para completar o quadro, é ainda possível supor que o navio possa ter sido mantido ao serviço da Companhia Nacional até 1965, e amarrado de novo em Lisboa, considerando a entrada em serviço do novo “Nacala” (2º), construído no Japão, em 1966.
Entretanto o navio, eventualmente pela ausência de interessados na sua utilização posterior, foi vendido para demolição em Lisboa, durante o 3º trimestre de 1967. Agradeço antecipadamente toda e qualquer informação complementar sobre a história comercial deste navio. Obrigado.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Retratos de uma época não distante


O naufrágio do “Vestris”
3ª Parte

O paquete "Vestris" - Imagem Photoship.Uk

Mais depoimentos
O náufrago Walter Spitzer, que viajava na segunda classe do “Vestris”, descreveu, deste modo, para o jornal «A Noite», o horrível sinistro:
- Logo depois que o “Vestris” deixou as docas de Nova York, notamos que o paquete adernava para um lado. Como não conheço os termos marítimos, não sei o nome empregado para definir aquele bordo. Notei que todos os marinheiros e oficiais se dirigiam para os porões do navio. Como curioso, acompanhei-os até ao penúltimo porão, que já começava a ser inundado pela água. Um dos oficiais disse em inglês para o segundo comandante que a água entrava por uma das portas da carvoaria e que todos os compartimentos destinados ao carvão e à casa das máquinas estavam alagados. O segundo oficial subiu, rápido, à cabine do comando, e comunicou ao comandante o ocorrido.
- Foi justamente nesta ocasião que a estação radiotelegráfica do “Vestris” recebia o oferecimento de socorro de um outro paquete que passava ao largo. O comandante recusou o oferecimento. O “Vestris” já estava muito adernado. Felizmente, ainda não havia pânico a bordo. Quando recebemos ordem para aguardar a descida dos botes, já o “Vestris” era varrido inteiro pelas ondas do mar, que estava furioso. A chuva começava a cair fortíssima. Grandes relâmpagos cortavam o céu, o que dava a tudo um espectáculo medonho.
- O meu bote, que tinha o nº 13, foi o último a ser descido pelo lado em que o navio mais inclinado estava. Três outros que tentaram descer por aquele lado, foram tragados pelo redemoinho que se fez quando o paquete submergia. O “Vestris” levou pouco mais de um minuto para desaparecer da superfície das águas.
- Sei que os tripulantes, principalmente os marinheiros negros do “Vestris”, foram os mais prestativos. Vi o comandante passeando no seu convés. Estava sem o boné, os cabelos ao vento. Aguardava o seu último momento.
- Vi o paquete submergir com ele, que foi arremessado a grande distância. Ainda deu umas braçadas mas foi absorvido pelo torvelinho da água.
- Da embarcação em que fomos salvos, pude observar que alguns que nadavam, desapareciam subitamente. Guardo a impressão de que todos esses foram levados pelos tubarões, que vivem em cardumes naquela região, porque as águas do «Gulf Stream» - leia-se «corrente do golfo do México» - são muito quentes, e os peixes, como se sabe, procuram-nas durante o inverno.
- Sigo para Buenos Aires, onde me espera a minha família.

Demos e palavra a outros náufragos do “Vestris”, nas suas narrativas impressionantes:
- Não podem calcular os senhores, exclamou o alemão Franz Ruchert, as cenas tristes passadas por ocasião do arriar dos botes.
- Vi famílias inteiras morreram abraçadas. Os tubarões mataram muita gente. A água que estava muito quente, devido às fortes correntes do golfo, parecia um verdadeiro caldeirão que fervia. O sangue tonalizava toda a zona, dando à água uma cor pardacenta que, rapidamente, esmaecia ao estourar das ondas. A nota mais confortadora de todo o naufrágio foi dada por dois marinheiros negros, que em altas vozes diziam: «Tenham fé em Deus!».

O comerciante Joseph Towney declarou:
- Foi a maior desgraça que já vi na minha vida. E teria ainda maiores proporções se não houvesse muita calma por parte dos viajantes e da guarnição. Só mesmo a providência evitou que todos quantos viajaram no “Vestris” não fossem tragados pelo oceano.
- Os botes, estavam quase todos podres, não resistindo a grande carga. Quando o mar batia num bordo, os náufragos tombavam para o outro lado, o que facilitava o desequilíbrio e viravam. Quase sempre quando eram postos a flutuar pelos seus passageiros que nadavam, os flutuadores enchiam-se de água. As mulheres e crianças, na maioria dos casos, eram os náufragos que voltavam à embarcação. Os homens ficavam a nadar nas proximidades ou agarravam-se aos bordos dos botes. Quase sempre, passados alguns minutos, a embarcação virava novamente e atirava todos ao oceano, que os levava num turbilhão.
Cenas dantescas!
O sr. Herman Ruckert descreve assim as cenas tétricas e macabras que presenciou:
- Ele encontrava-se num destes três botes. A maioria dos seus companheiros eram crianças e senhoras. A embarcação estava superlotada e pouco faltava para que dentro em pouco naufragasse também. Os gritos das crianças e o choro convulsivo das mães que agarravam os seus filhos, fazia com que ele se condoesse da sorte destas pessoas. Quis então atirar-se à água, para, nadando, alcançar outro bote que estivesse mais vazio.
- Este seu intento não foi posto em execução devido às cenas que presenciou. Os outros botes estavam também superlotados e os que neles se encontravam efectuavam os actos mais bárbaros que se podem praticar.
- Quando algum náufrago que lutava com as ondas, deles se aproximava, eram repelidos a pontapés ou com pancadas de remo dadas pelos tripulantes dos barcos. Não poucos, já exaustos, atingidos por fortes pancadas submergiam para não mais voltar à superfície.

- O sr. William Burke narra algumas passagens do sinistro, tendo ocasião de falar na confusão e na desordem que se estabeleceram entre a tripulação, que não cumpria as ordens dos superiores que, impossibilitados de uma acção mais enérgica devido à situação crítica do momento, tinham que assistir ao desenrolar da tragédia marítima sem poder dar qualquer providência, que pudesse diminuir os seus efeitos. - - Devido a este facto o naufrágio do “Vestris” verificou-se mais depressa, sendo uma das suas causas a falta de fechamento das portas internas, que desta forma permitiam a entrada livre da água invadindo os porões e precipitando o momento fatal.
- Disse que, se o comando do “Vestris” tivesse desde o princípio solicitado socorro e não demorasse esta providência, o sinistro não tomaria tão grandes proporções e mesmo não viesse a dar-se a perda do navio. 

Uma figura curiosa, para não dizer extraordinária, que surge da catástrofe do “Vestris” é Fred Hansen, tripulante do navio que na hora de maior angústia, quando todos procuravam salvar-se, deixou-se ficar a bordo para tirar algumas chapas da sua máquina fotográfica. Depois, no último instante, guardou tudo num saco de lona, amarrou-o ao pescoço e, como se fizesse a coisa mais natural do mundo, atirou-se ao mar, nadando em vigorosas braçadas.
Texto de Raul Martins no Rio de Janeiro para o jornal “Comércio do Porto”, sábado, 22 de Dezembro de 1928

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Retratos de uma época não distante


O naufrágio do “Vestris”
2ª Parte

Postal ilustrado da Companhia Lamport & Holt

Identificação do vapor “Vestris”
Armador: Liverpool, Brazil & Riverplate Steam Navigation Co., Ltd. -  (Lamport & Holt Line) - Liverpool
Nº Oficial: 131451 - Iic.: H.W.N.K. - Registo: Liverpool
Construtor: Workman, Clark & Co., Ltd., Belfast, 09.1912
Arqueação: Tab 10.494,00 tons - Tal 6.623,00 tons
Dimensões: Pp 151,03 mts - Boca 18,53 mts - Pontal 8,75 mts
Propulsão: Do construtor, 1:Qe - 8:Ci - 1.243 Nhp - 13,5 m/h
Passageiros: Max 610 = 1ª/280 - 2ª/130 - 3ª/200

O paquete naufragou na posição 37º25’N 70º33’O, ao largo de Hampton Roads, Norfolk, no Estado americano da Virgínia, no dia 12 de Novembro de 1928. Em resultado do sinistro foram contabilizadas 112 vítimas.

Impressionantes narrativas dos sobreviventes
Cenas pavorosas e tétricas
Rio de Janeiro, Dezembro de 1928 – Quando o “Southern Cross” atracou ao cais do porto, uma chusma de repórteres invadiu o navio. Havia, no Rio, a maior ansiedade em ouvirem-se, da boca dos sobreviventes da horrorosa catástrofe, os relatos, os pormenores de como o naufrágio se dera. Muitos dos passageiros do “Vestris” destinavam-se ao Rio. Muitos viviam aqui; alguns eram brasileiros, como essa desventurada jovem Iracema Cabral – de quem até hoje não houve mais notícias. O primeiro náufrago a ser entrevistado foi o engenheiro Paulo Dana, da Radio Corporation of America. Eis o que ele disse textualmente a um redactor do jornal «O Globo»:
- O naufrágio do “Vestris”, foi um assassínio em alto mar, como muito bem classificaram os jornais norte-americanos. A causa principal de tudo foi ter ficado aberta uma das portas da carvoaria, o que não foi percebido em Nova York, quando o navio meteu carvão. Quando foi notada a falta, já o compartimento da carvoaria estava completamente cheio de água.
- O comandante teve muito tempo de evitar o naufrágio. Assim não procedeu, no entanto, porque desejou fazer economias de algumas centenas de dólares, que a Lamport teria que pagar ao navio que prestasse os primeiros socorros ao “Vestris”. A sua consciência acusou a sua falta. A sua morte, que foi de um bravo marinheiro, demonstrou bem que a sua consciência o acusava de uma grave falta.
- Ao deixar o porto de Nova York, sábado, 10 de Dezembro, às 4 horas e meia da tarde, o “Vestris” inclinava-se um tanto para estibordo. À medida que o vapor navegava, a inclinação aumentava. A quatro horas de viagem, desencadeou-se um fortíssimo temporal, ameaçador, horrível, parecendo, na sua fúria, querer arrebentar o navio, cuja marcha teve de ser reduzida.
- Ao amanhecer de Domingo mais se fazia sentir a inclinação e não amainava a tempestade. Os móveis todos de bordo, inclusive o piano, deslocaram-se e a gente mal se podia conter de pé. Apenas umas seis pessoas conseguiram ir à mesa para as refeições. Não obstante a situação do navio, não se notava temor entre os passageiros. Somente às 10 horas de segunda-feira, foi que o comandante Carey determinou que o telegrafista pedisse socorro. O comandante tardou em fazê-lo, pensando que ainda podia salvar o navio e na esperança de que não tardaria a cruzar-se com o “Voltaire”, da mesma Companhia – a Lamport & Holt – em viagem para Nova York, de regresso dos portos sul-americanos. Este, porém, devido à tormenta, teve uma das hélices quebradas e, assim, obrigado a atrasar a viagem.
- Foi atirada ao mar a carga mais pesada, no entanto, sem resultados práticos, porque a inclinação aumentava e a água já invadia o navio, tendo chegado mesmo ao meu camarote e aos dos outros passageiros. Não se sabe ao certo como e por onde entrava a água. A suposição era e é que ela vinha de baixo e encontrava fácil passagem pela porta lateral exterior, pela qual o navio havia recebido o fornecimento do carvão.
- Esta porta, segundo consta, foi mal fechada, quando o “Vestris” largou e, naquele momento, perigando a situação do navio, era impossível tentar fecha-la porque o carvão ali acumulado, junto à mesma, era uma barreira intransponível!
- O que me causou impressão foi que, ao contrário do que é de supôr, os passageiros não se deixaram dominar pelo pavor, não houve mesmo pânico, e o embarque nos botes de salvamento foi feito com relativa calma, sob a direcção dos oficiais. Todos, já munidos de coletes salva-vidas, ao receberem ordens para tal, dirigiram-se para os botes que lhes foram designados.
- O bote em que eu devia embarcar, ao ser descido dos turcos, bateu fortemente de encontro às chapas do navio, recebendo avarias, que foram concertadas ali mesmo pelos tripulantes, com uma simples folha-de-Flandres. Não oferecia, portanto, segurança a pequena embarcação e pensei em não tomar lugar nela. Mas não havia outro recurso e, no interior da mesma me arranjei da melhor maneira, com 31 pessoas, dentre as quais 10 mulheres, duas crianças e quatro negros, que não faziam outra coisa senão rezar e exclamar: «Deus não abandonará os seus filhos». Os botes começaram a ser descidos à água às 13 horas. Aparecera, então, o sol, mas o mar continuava revolto.
- A embarcação em que eu me encontrava, cerca de meia hora depois de estar na água, virou. Com dificuldades inauditas, conseguimos voltá-la e nela embarcar novamente. Fizemo-lo três vezes. Já então, de 31 pessoas que éramos, estávamos reduzidos a quatro apenas. As outras haviam encontrado a morte sob a embarcação, pois não pudemos tornar a endireita-la, exaustos que estávamos. Foi nessa ocasião, que vi uma perna aparecer debaixo do barco, de onde eu conseguira safar-me, depois de ferido no pescoço.

O vapor "Southern Cross" que transportou náufragos para o Brasil

- Num esforço, consegui puxar a perna e salvei, assim, da morte, uma jovem, camareira de bordo, miss Clara Ball. O “Vestris” foi lentamente adernando para um dos lados. Quando este já tocava a água, cerca de 40 pessoas, que ainda se achavam no convés, porque não quiseram embarcar nos botes, atiraram-se ao mar. Vi, no meio delas, o comandante Carey, que nadou alguns momentos, desaparecendo em seguida.
- Mais alguns momentos e o “Vestris”, já completamente deitado sobre um dos lados, submergiu em menos de 30 segundos. Passado pouco tempo, não distinguia mais ninguém. Ao meu lado estava apenas a senhora Ball, que, como eu, estava com colete salva-vidas, segurando-se ao estrado de madeira do bote em que tínhamos estado. Ela demonstrou-se corajosa e somente se queixou de fortes dores pelo corpo.
- Veio a noite, e de indescritível horror era a nossa situação. Sentimos sede, muita sede, e como então chovesse, abríamos a boca, levantando-a para cima, a fim de colher as gotas de água caídas do céu. Receamos que um tubarão nos atacasse e me comesse uma das pernas ou mesmo as duas e também as da minha companheira de infortúnio. Não sentíamos frio, porque na zona onde nos encontrávamos, a água do mar é morna, devido a ser atravessada pela corrente do golfo do México. Eu e a camareira expandíamos a nossa indignação contra o comandante Carey, recriminando-o por não ter pedido socorro, logo que a situação do navio se tornou perigosa.
- À meia-noite, provavelmente, distinguimos luzes ao longe e nos reanimamos, cheios de esperança. Ao amanhecer, porém, o desânimo apoderou-se de nós, quando nada vimos, nem perto nem longe. Seriam talvez 9 horas, quando passou distante um navio de guerra, que soubemos, depois de salvos, tratar-se do “Wyoming”. Só mais tarde o “American Shipper” apareceu. Rasguei a camisa que vestia e com ela acenei na direcção do navio salvador.
- O estrado de madeira, ao qual nos segurávamos, já estava todo quebrado, recorrendo a um esforço continuo para detê-lo. Com a aproximação do “America Shipper”, munidos que estávamos do colete salva-vidas, pusemo-nos a nadar. Em breve, o navio chegava próximo de nós. Estávamos completamente exaustos e não tínhamos mais forças nem para subir para bordo do “American Shipper”. Foi preciso que nos içassem como carga, dentro de uma rede de corda. Foi nesse momento que vimos, com horror, o cadáver de um homem a ser comido por dois tubarões.
- Estávamos, enfim, salvos e cercados de todo o conforto possível, ali a bordo. Foi, então, que lastimei, pesaroso, ter perdido os meus tacos de pólo e um presente que trazia para a minha noiva!

sábado, 18 de janeiro de 2014

Retratos de uma época não distante


O naufrágio do paquete "Vestris"
1ª Parte

Foto do paquete "Vestris" - Imagem da Photoship.Uk

De novo, repetem-se causas idênticas às do naufrágio do vapor “Principessa Mafalda”

Depoimentos dos passageiros
Rio de Janeiro, Novembro:– Mais uma tragédia marítima, mais um naufrágio deste lado do Atlântico vem encher de horror aqueles que ainda possuem sensibilidade e sentem, como suas, as desgraças alheias.
O telégrafo, por certo, não deixou já de espalhar por todo o velho continente, Portugal inclusive, o impressionante naufrágio do “Vestris”, transatlântico da Lamport & Holt, em viagem para a América do Sul.
Não se desvaneceu ainda a espantosa catástrofe do “Principessa Mafalda”, próximo da Bahia, sepultando, nas águas, para sempre, centenas de passageiros. Não fica tão distante de nós a horrível tragédia, para que ela não volte a aflorar no espírito, com todo o seu cortejo dantesco de horrores. Coube agora a vez do “Vestris”.
As causas do naufrágio começam a precisar-se. Acusações tremendas levantam-se contra a companhia. O “Vestris” é um navio que anda em serviço há 16 anos, um velho navio como o “Voltaire”, da mesma companhia, que há bem pouco chegou a Nova York com grande atraso, por se lhe ter partido uma hélice durante a viagem.
Dirão que acidentes desta natureza podem dar-se até com transatlânticos modernos. Evidentemente. Como não se pode prever, no alto mar, uma colisão entre navios, em noite de nevoeiro cerrado.
Mas, ao lado destes acidentes a que estão sujeitos, necessariamente, todos os que viajam, quanta incúria, quanto desleixo criminoso não se pode imputar às companhias e empresas de navegação!
A afirmação recai sobre os peritos que elaboram os inquéritos, que o dizem desassombradamente. E, de resto, não tenhamos a estulta intenção de pedirmos a uma empresa aquele sentimento de humana solidariedade, o interesse pelos haveres e vidas dos que neles confiam. Seria pedir muito ao egoísmo de cada ser humano, um pouco mais de escrúpulos?
Evidentemente que as empresas, obrigadas a enormes dispêndios, a corresponderem, com determinado juro, ao capital empregado, não vão substituir os navios velhos por novos, enquanto eles puderem navegar. Cada um desses modernos e belos transatlânticos que orgulhosamente sulcam as águas dos oceanos, de um a outro continente, custam milhares de contos, fortunas colossais. E, é claro, que velhos xavecos que ainda fazem carreiras, com emigrantes e passageiros, da Europa para a América do Sul, só serão postos à margem quando absolutamente imprestáveis ou o mar, como sucedeu com o “Principessa Mafalda”, se encarregue de os afundar, com carga e passageiros.
Os jornais brasileiros, diante da catástrofe do “Vestris”, voltam a tocar num assunto por demais oportuno e digno da atenção das autoridades marítimas de qualquer país, com especial relevo para Portugal. Diz um dos jornais:
«É preciso que uma autoridade qualquer se erga para coibir o abuso e forçar estes armadores a ter pela existência alheia, um pouco mais de atenção. Na parte que toca ao Brasil não seria difícil acautelar os viajantes que se destinam a outros portos.
Bastaria, por exemplo, que fosse proibida a escala nos portos brasileiros aos navios que não oferecessem condições de absoluta segurança e que não trouxessem, nesse sentido, documento de responsabilidade. Pelo menos os brasileiros ou os que para o Brasil tomassem passagem estariam acautelados.
Se as companhias como a Lamport & Holt não tem escrúpulos, uma medida dessa natureza acabaria por convencê-las da necessidade de reformar o seu material flutuante. Aliás os protestos que em vários países se tem levantado contra o descaso dessa empresa são significativos e devem merecer a máxima atenção das autoridades marítimas. E parece que se é possível impôr, de acordo com as leis sanitárias, a quarentena rigorosa aos navios empestados, não há razão para que não seja feita coisa maior com os calhambeques que constituem um perigo permanente para os que neles precisam de viajar».
Há, de facto, o dever de acautelar a vida dos que viajam. Uma coisa ressalta logo, aliás verificado por diversos passageiros num paquete que viajava de Portugal para o Rio de Janeiro – o estado lamentável dos escaleres de bordo. Todos os passageiros do “Vestris” são unânimes em declarar que as embarcações postas no mar, começavam logo a meter água. Contra esta acusação as empresas não tem nada para responder. Foi observado, in loco, pelos passageiros que passavam no convés do transatlântico que veio para o Brasil, em 1924, com mais de um escaler avariado, através de cujas junturas se podia ver de um para o outro lado.
Fui de opinião, como ainda hoje acho ridículo e impróprio da seriedade que deve presidir a actos desta natureza, esse espectaculoso simulacro de salvamento com que se procura dar aos passageiros uma impressão de ordem e segurança, que os naufrágios, lamentavelmente desmentem. Para quê afinal, essa grotesca comédia! Por certo que há companhias que prezam mais a vida dos passageiros do que outras – mas a quase todas se pode lançar a acusação de trazerem, vistosos e lindos, os escaleres de bordo – que na ocasião de perigo iminente para nada servem.
Pois bem, esse navio, já velho, onde fiz a viagem continua a navegar e a transportar emigrantes de Portugal para o Brasil. Como estarão hoje os seus escaleres? Como estarão a funcionar as suas máquinas cansadas?
Um dia a catástrofe chega inesperadamente. Coisas que acontecem, dirão os optimistas. Nem sempre; mas descaso, incúria, indiferença de quem apenas pensa em distribuir todos os anos, conforme mandam os estatutos, tantos por cento aos accionistas.
Segundo um telegrama da «Havas», parece ter ficado provado, no decurso dos interrogatórios, que o “Vestris” se encontrava com avarias desde a noite que procedeu a catástrofe. Os pedidos de socorro, os aflitivos, desesperados S.O.S. foram, tardiamente, lançados através do espaço. E, de tudo, se chega à conclusão de que cento e tantos míseros passageiros, pagaram com a vida, tanto pela indecisão do comandante em mandar, a tempo, lançar pelo espaço os S.O.S., como pelo descaso da companhia, deixando o navio partir com avarias e as embarcações de bordo em mau estado.
O jornal «A Noite» recebeu do seu correspondente em Nova York (serviço da North American Newspapers Alliance) os seguintes pormenores impressionantes do sinistro:
Foram conduzidas para aqui, pelo “Wyoming”, umas senhoras que eram passageiras do “Vestris” e que são heroínas de dois episódios dos mais horríveis que se sucederam à catástrofe. São elas Teruko Inouye, de Tóquio, e Marion Galvin Batten, de Nova York. Essas duas senhoras contam que passaram vinte horas sob o mar revolto, mantendo ambas nos braços, os corpos dos respectivos maridos. Estes, não resistindo à prolongada e terrível luta, morreram horas depois, do vapor ter ido ao fundo. Então ambas, que os viram desfalecer de cansaço e de frio, passaram a mantê-los à tona. Os dois homens morreram e as esposas delicadamente conservaram nos braços os cadáveres até que foram encontradas.
A senhora Teruko Inouye, esposa do major Inouye, adido militar japonês em Buenos Aires, ouvida pelo adido militar do Japão em Washington, que se fez presente a fim de socorrer os náufragos japoneses, descreveu assim, concisamente, o que lhe sucedeu:
- Estávamos todos num bote que devido ao mar grosso que fazia, virou subitamente. Foi conseguido, num esforço conjunto pôr novamente o bote em situação normal, e, mal alguns náufragos para ele haviam subido, a embarcação virou outra vez. Havia um rombo no casco e, então verificamos que não era possível consertar o bote. Ficamos todos em volta dele, agarrando-nos ao casco. Uns, perdendo as forças, desprenderam-se. Lembro-me que, em certo momento, vi o meu marido quase desfalecido. Apertei-o nos meus braços e reparei que ele tinha morrido. Apertei-o ainda mais… Perdi, depois, os sentidos!… Não me lembro de mais nada!…
Os tripulantes do “Wyoming” contam que encontraram a senhora Inouye juntamente com as senhoras Elvira Fernandez Rua e Dolores Loril, que seguravam o cadáver do major Inouye. O major tinha morrido havia duas horas. Quando os marinheiros pegaram na senhora Batten, apenas ouviram dela estas palavras: «Se não fosse o Geraldo, não estávamos aqui». A senhora Batten, outra das naufragas recolhidas, referia-se ao fogueiro do “Vestris”, Geraldo Burton, natural de Barbados, a cuja dedicação se devem muitas vidas salvas e que, felizmente, também se conseguiu salvar.
A senhora Batten estava no mesmo bote que a senhora Inouye e Geraldo Burton era um dos tripulantes da embarcação. Quando o bote virou, Geraldo disse às senhoras Batten e Maria Ulrich:- «Tenham confiança em mim! Não deixarei que morram afogadas!».
Geraldo Burton, narra a senhora Marion Batten, não cessou de nadar em redor dos destroços do navio, aos quais se agarravam os náufragos. Lutou com as ondas durante vinte horas, ora amparando um, ora outro e animando a todos. As suas atenções eram, principalmente, para as senhoras mais fracas, às quais ele amparava e lhes permitia alguns minutos de descanso. Às vezes, socorria dois náufragos ao mesmo tempo, nadando apenas com os pés.
- Entramos no bote nº 8 – conta a senhora Batten – mas como a embarcação estava demasiado carregada, procurei, com a senhora Ann Devore, chegar a outro bote que, mais tarde, foi salvo pelo vapor “American Shipper”. Nesse bote havia apenas 5 tripulantes do “Vestris”. A senhora Devore conseguiu entrar nesse barco, mas quando eu tentei fazer o mesmo, fui afastada dele, brutalmente, com um remo. O bote nº 8 afundava, lentamente, a pouca distância, por excesso de carga e, apesar dos meus gritos e das minhas súplicas, os tripulantes desse bote, que eram homens de cor, continuaram a afastar-se, deixando-me a lutar com as ondas. Pouco depois, o bote virou. Vi, então, entre horrorizada e esperançada, a luta de todos os náufragos com esse fatídico bote nº 8. Seis vezes ele virou e seis vezes foi posto em posição normal, subindo para ele alguns náufragos. Mas, de cada vez, o número de ocupantes era menor. Os outros iam sendo tragados pelas ondas… Os homens, como era natural, devido aos esforços empregados, foram-se extenuando. O bote não tinha mais concerto. O número de lutadores diminuía. Desamparadas, as mulheres viram-se obrigadas a contar somente com as próprias forças. Quando o “Wyoming” chegou ao local, só restavam quatro sobreviventes: as senhoras Batten e Ulrich, Geraldo Burton e John Morris, outro tripulante do “Vestris”. A senhora Rua perdeu o marido e o filho; a senhora Ulrich perdeu o filho; o seu marido tinha sido salvo por outra embarcação.
A bordo do “Vestris” viajava a jovem Iracema dos Santos Cabral, filha do general brasileiro Emílio Cabral, de quem ainda não houve notícias. Tinha ido à América do Norte, aperfeiçoar-se nos estudos de enfermagem, na Fundação Rockefeller.
Mais uma grande, tenebrosa tragédia e voilá. Tudo ficará na mesma. Os homens que tem a responsabilidade dos bens e vidas dos seus semelhantes, não abandonarão, por tão pouco, as suas graves cogitações de políticos ou de diplomacia internacional. E velhos navios, em condições de ocasionarem, amanhã, outra irremediável catástrofe, continuarão a sulcar, tranquilamente, os oceanos, carregados de passageiros.
Entretanto… entretanto, pelo que diz respeito a Portugal, que é um óptimo país para as companhias de navegação, seria muito fácil resolver o problema… Bastaria apenas que uma comissão de técnicos competentes vistoriasse, com interesse pela vida dos que embarcam, os transatlânticos que passam pelos portos portugueses. Isso não evitará a possibilidade de um naufrágio, em função das causas apontadas? Talvez, mas não se esqueçam os que tem resposta para tudo, que o “Principessa Mafalda” naufragou com mar calmo, e que se não fossem os escaleres de bordo meterem água, a percentagem de vítimas teria sido mínima – tendo, para mais, ocorrido logo vários navios para o local do sinistro.
Para confirmar o que deixo escrito, transcrevo, para os eternos egoístas e indiferentes, este telegrama:
Nova York, 17 – Diversos dos passageiros salvos do naufrágio do “Vestris” prestaram depoimento ontem, perante a comissão de inquérito encarregada de apurar as causas do afundamento do navio.
Esses passageiros verberaram, acremente, o procedimento da oficialidade e da marinhagem do “Vestris”. Acusam a tripulação de incompetente e de indisciplinada, dizendo que os próprios oficiais encheram alguns botes para se salvarem. Também a maneira de colocar os passageiros nos botes era a pior possível, tanto que dois escaleres afundaram cheios de mulheres e crianças. Os escaleres, igualmente, estavam em tão péssimas condições que muitos iam a pique imediatamente. Os marinheiros do “Vestris” estão chamados a depôr, perante a Comissão, hoje. (A.)
Texto de Raul Martins no Rio de Janeiro para o jornal “Comércio do Porto”, de sexta-feira, 7 de Dezembro de 1928

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

História trágico-marítima (CXV)


O encalhe do vapor português “Lagoa”, ontem
(18.12.1928), na barra de Esposende, perdendo-se.

Viana, 19 – O vapor “Lagoa” passou ontem em frente ao porto de Viana do Castelo, às 10 horas e meia da manhã. Navegava bastante acostado e saudou, com três silvos, a corporação dos pilotos, arvorando também a bandeira nacional, no que foi correspondido.
(In jornal “Comércio do Porto”, quinta, 20 de Dezembro de 1928)

Notícia da chegada do vapor a Leixões
(In jornal "Comercio do Porto", quarta, 07.01.1926)

Correndo para a morte – Um choque violento seguido dum estrondo formidável - Como se teria dado o desastre – Após o desastre – O que traz o vapor - Salvar-se-há a carga? – Como é o “Lagoa”? – Quem é o comandante? – A tripulação
Ontem, a meio da tarde, chegou a notícia de que o considerável vapor “Lagoa”, um dos melhores barcos da frota que foi dos alemães, com 1.963 toneladas, tinha naufragado ao largo da barra de Esposende.
No local do sinistro lá estava, ao largo da praia dos Cavalos de Fão, apertado entre as rochas bravas do «Forcadinho», o “Lagoa”, que, ao tempo, era já um brinquedo para as ondas rumorejantes que o varriam de lés a lés, enquanto a água, aos poucos, lhe invadia o dorso, fazendo-o submergir quase até ao convés.
Na praia, olhando o monstro que, numa quietude enervante, avultava lá ao longe, a umas duas milhas, aproximadamente, andava, desde o começo da tarde um formigueiro de gente.
Todos queriam saber o que fôra, inteirar-se da sorte dos tripulantes, da carga, do vapor, - e das causas do desastre. E, faziam roda, em torno dos pescadores que contavam e recontavam tudo quanto tinham visto.

Correndo para a morte
O “Lagoa” deu nos calhaus aí pelas 11 horas e meia da manhã. E o pescador Feliz Fernandes Gaifém, que fala desembaraçadamente, explica:
- «Eu andava ali (e ao dizê-lo apontava, lá longe, no mar, como ponto de referência, uns escolhos que se vêem à flor d’água quase junto ao local onde o “Lagoa” se encontra), com as redes, quando dei com o vapor lá para cima, no «mar de Viana». «Vinha terreirinho que eu sei lá!». E não fugia da terra, cada vez metia mais à costa, de modo que entramos de ver o desastre…
- Depois…
- Quando o vimos assim, começamos todos a acenar com lenços e, alguns, éramos de tão perto que até admira como não viam…
Um grupo de pescadores, numa só voz:
- Estava o tempo tão bom! Tão lisinho e o mar tão brando!
Eis como os pescadores de Fão, que andavam no mar aquela hora, relatam a aparição do “Lagoa” – que vinha «no mar de Viana, terreirinho, que eu sei lá!», no dizer original de um deles. De modo que, vindo o “Lagoa” junto à costa, como vinha, e trazendo razoável velocidade, como trazia nada admira que sofresse

Um choque violento seguido dum estampido formidável
O vapor sempre correndo junto à costa salpicada de rochedos, com velocidade – corria para a morte. E, assim, ao passar no ponto conhecido pelo «Forcadinho» meteu-se nuns rochedos que os pescadores dali chamam «pedra brava» - colidindo violentissimamente com as pedras. E de tal força fôra o choque que o estampido que se lhe seguiu, cortando as águas, veio até à praia, estendendo-se por ali fora!
Imediatamente dirigiram-se para o local barcos de pescadores e o salva-vidas de Esposende, no intuito de prestarem os primeiros socorros. Felizmente, sem embargo do aniquilamento do vapor, a tripulação não corria perigo, visto que o “Lagoa” assapara sobre as rochas, motivo porque o respectivo capitão se limitara a agradecer, tratando, acto continuo, de ordenar a emissão de rádios para Leixões.

Vejamos como se teria dado o desastre
Cada desastre ocasiona sempre, antes da verdade surgir, um número considerável de hipóteses. E este não foge à regra. Segundo uns, que pretendem ter arrancado a confissão ao comandante do vapor, o desastre foi consequência da destruição do gualdrope do leme. Segundo outros, a grande maioria, diga-se, o desastre não se explica, com um dia tão claro e numa costa perigosa mas muito conhecida.
De modo que, até agora, o que se sabe, de positivo, é que o vapor vinha, já de longe, navegando junto à costa, dando a impressão de demandar a barra. E, assim, entrou nas rochas, abrindo, como se supõe, largas brechas na quilha.

Após o desastre
Pedido socorro para Leixões, como foi dito, logo para ali se dirigiram os rebocadores “Júpiter” e “Vouga Iº” que comunicaram com o “Lagoa”, tendo sido verificado, em breve, a impossibilidade de agir, no sentido de o safar. O “Lagoa” estava já, segundo as melhores hipóteses, perdido, restando, apenas, a esperança de salvar a carga que, é riquíssima, importando em milhares e milhares de contos. Por isso mesmo, trataram de garantir a assistência ao vapor, procedendo ao desembarque de parte da tripulação e salvamento de toda a sua bagagem. Estes trabalhos, que foram desenvolvidos ao fim da tarde, demoraram até ao anoitecer. Depois, 19 dos tripulantes, entre os quais alguns oficiais, tomaram lugar no rebocador “Vouga Iº”, e vieram para Leixões onde chegaram por volta das oito horas da noite. Os 12 restantes ficaram no mar, a bordo do rebocador “Júpiter” que se conserva junto do “Lagoa”, para ser prestada toda a assistência necessária. No “Lagoa” continuam ainda, ocupando os seus postos, o respectivo comandante, o maquinista e o telegrafista.

O que traz o vapor
A carga do “Lagoa” é preciosíssima e variada. Vinha cheio. Traz centenas e centenas de sacos com açúcar; muitos com cacau; caixas de bombons; quinquilharias de bazar, próprias para o Natal; resmas e resmas de papel de impressão; harmónicas; muitos pianos; discos para gramofones; cânhamo e uma infinidade de artigos diversos que fazem elevar o valor de toda a carga a muitos milhares de contos.
Logo em cima, no convés, trás o “Lagoa” 30 automóveis «Citroen», carregados no Havre. A carga procede dos portos de Hamburgo, Londres e Havre, de onde o navio vinha com destino a Leixões, e consignado à firma David José de Pinho, da praça do Porto.
Salvar-se-há a carga?
Ontem não se sabia, O mar, ali, é cheio de surpresas. E o vapor está numa posição deveras melindrosa. Uma agitação mais forte, uma pequena alteração do mar – e tudo pode ficar perdido. Todavia, se o mar, hoje, mantiver a calma, relativa, de ontem, é natural que consigam arrancar ao abismo já aberto uma riqueza tão apreciável.
Para isso, para fazerem tal tentativa, lá ficou, ao lado do “Lagoa” o rebocador “Júpiter” e metade da tripulação daquele. De qualquer forma, porém, já não será´ possível salvar toda a carga, pois a água liquidou, ontem mesmo, parte dela e ficou, durante a noite, a estragar tudo quanto é sensível ao seu contacto. De modo que, os prejuízos, sem falar no vapor, serão avultadíssimos.

Como é o “Lagoa”?
O “Lagoa” é um vapor de 1ª classe, de 1.993 toneladas brutas, passando por ser um dos melhores vasos apreendidos aos alemães. Está, segundo consta, seguro na companhia «Veritas» e pertence à Companhia dos Carregadores Açoreanos, da praça de Ponta Delgada. Face aos elementos apurados, facilmente se pode deduzir, da importância e grandeza deste transporte, que se acaba de liquidar em circunstâncias deveras lamentáveis.

Quem é o comandante? – A tripulação
O comandante do “Lagoa” deve ser o decano dos oficiais da marinha mercante portuguesa. É o sr. Carlos Pereira Vidinha, que conta 67 anos de idade e 42 de mareante! Tem uma prática extraordinária e nunca lhe aconteceu qualquer acidente desta espécie, sendo este o primeiro.
Os maquinistas, 1º., 2º. e 3º., respectivamente, são os srs. António Cândido da Silva, 49 anos, de Ponta Delgada; Alberto Deslandes, 33 anos, da Guarda, e José Dias de Oliveira, de 26 anos, de Lisboa. O telegrafista é o sr. Arnaldo Rodrigues, 33 anos, de Lisboa.
O imediato é o antigo oficial da marinha mercante alemã, sr. Francisco José de Brito, 34 anos, de S. Vicente de Cabo Verde. Os 2º. e 3º pilotos, são, respectivamente, os srs. Cunha Silveira, 24 anos, e Armando Soares, 24 anos, ambos dos Açores. Depois, há ainda mais 24 homens – e eis a tripulação do “Lagoa”.

Varias notas
- O acidente não causou a bordo, a despeito da sua violência, pânico. Sofreram-no a sangue frio, como verdadeiros mareantes.
- Como se depreende, não houve qualquer acidente pessoal, achando-se todos os tripulantes de boa saúde. - Os tripulantes que vieram para Leixões, como antes referido, hospedaram-se no Hotel do Castelo, tendo alguns telegrafado à família, sossegando-a. Ali estão, a aguardar ordens da Companhia.
- O naufrágio causou, como é natural, em Esposende e Fão, certo constrangimento fazendo afluir à praia muita gente, durante o dia.
(In jornal “Comércio do Porto”, quarta, 19 de Dezembro de 1928)

Imagem do vapor "Lagoa" - colecção Francisco Cabral

Identificação do vapor “Lagoa”
Armador: Comp. Naveg. Carregadores Açoreanos, Ponta Delgada
Nº Oficial: 940 - Iic.: H.L.G.O. - Registo: Ponta Delgada
Cttor.: Neptun Aktien Geselschaft, Rostock, Alemanha, 07-1911
ex “Mailand”, R.M. Sloman Jr., Hamburgo, 1911-1916
ex “Viana”, Transportes Marítimos do Estado, Lisboa, 1916-1924
Arqueação: Tab 1.922,39 tons - Tal 1.363,47 tons
Dimensões: Ff 91,50 mt - Pp 87,17 mt - Bc 12,52 mt - Ptl 5,12 mt
Propulsão: Neptun A.G., Rostock, 1911 - 1:Te - 1.870 Ihp - 10 m/h

O naufrágio do vapor "Lagoa", na barra de Esposende
- O vapor perdeu-se e com ele toda a carga
- A tripulação abandonou de vez o “Lagoa”
O “Lagoa” perdeu-se. Se é certo que lá longe ao pé dos «Cavalos de Fão», se lhe avista a proa, pode afirmar-se irremediavelmente perdido, como já ontem se antecipava. Está inundado, quase totalmente submerso. E, se de todo não desapareceu ainda, foi porque galgou os cachopos que dão começo aos «Cavalos de Fão» e o convés assentou neles. De resto, é um vapor abatido à nossa frota mercante – um dos nossos melhores vapores de carga provindo das reparações alemãs.

O “Lagoa” e o “Júpiter”
O “Lagoa”, conquanto, ao que parece, deixasse de interessar a alguns entendidos nestes acidentes marítimos – porque puseram de parte a esperança de o fazer de novo flutuar – continuou a ser até ontem à tarde vigiado pelo “Júpiter”, à distância, um pouco ao norte, abeirando-se por vezes dele para de novo se afastar, chegando a perder-se de vista durante mais de uma hora.

A carga do “Lagoa” não se salvou
Ao contrário do que se esperava, o “Vouga Iº” não apareceu ontem na barra de Esposende. Como a sua falta se sentisse notada, foram indagados os motivos, sendo recebida a informação que esse reboque aguardava, para isso, instruções de uma Companhia francesa de seguros.
Como era de prever, a beira-mar de Esposende coalhou-se ontem de gente, sobretudo depois que ali chegou a caminheta da firma Duarte & Filhos, que diariamente faz carreiras entre Esposende e o Porto. Foi por meio dos jornais que a notícia do sinistro do “Lagoa” chegou ao conhecimento não só das gentes de Vila do Conde, Póvoa, Barcelos e Viana, como até de bastantes pessoas de Esposende, que até aí, nada sabia!
O mar, de neblina, com um dia de sol quase primaveril, parecia convidar até a um passeio, próximo da praia, onde os ventos poucas vezes se apresentam agrestes. Chamam-lhe os esposendenses, desde longa data, praia de suave mar, e com razão.
Em face disso e sabendo-se que no “Lagoa” existia, em mercadorias diversas, uma grande riqueza, notou-se, por parte de muitos marítimos daquela vila, Fão e Viana, decidida vontade de se fazerem ao mar para trazer a carga para terra.
- «É fácil – deve ser muito fácil salvar tudo ou quase tudo», comentavam.
- Mas o vapor está quase submerso – observamos.
- Embora; não faz vento, as ondas lá ao largo não são de meter medo, e aquilo ala para terra – atalhavam.
Os empregados aduaneiros, porém, não permitem que para o mar vá quem quer que seja. Só mais tarde o salva-vidas de Esposende foi até junto do “Lagoa”, levando a bordo o comandante, chefe da respectiva companhia, o 3º piloto e mais 3 homens, que logo voltaram para terra. É que a essa hora o mar alterou-se um pouco e os «Cavalos de Fão» obrigam a cuidado, muito cuidado.
E foi previdente a tripulação do salva-vidas, pois que, tendo voltado a terra, formaram-se próximo da barra dois vagalhões, que poderiam tê-lo posto em risco. O mar tem destas coisas…

Os automóveis do “Lagoa”
As horas decorrem e o mar invade por fim o “Lagoa” de lado a lado com mais violência. Parece um mar extraordinário em Esposende, um mar diferente daquele q que ali se está habituado. Foi então que os automóveis que constituem a principal carga do convés do vapor se deslocam, e por forma tal, que o “Lagoa” começou a ceder à vaga, que sucedeu, de tarde, ao mar chão da manhã.
E toda a carga se perdeu
Vendo estes efeitos do mar, o capitão do “Lagoa”, a bordo do “Júpiter”, transmitiu para terra um sinal, que os pescadores dali traduziram e em voz alta disseram: perdeu-se tudo; a carga já é só do mar.
A tripulação abandona o vapor
Efectivamente tudo se perdeu: o “Lagoa” e a mercadoria. A tripulação do vapor naufragado, deu nesta altura por finda a sua obrigação e abandonou definitivamente o “Lagoa”, ao mesmo tempo que o povo que afluiu à barra começou também a debandar.
A tripulação veio para Leixões
Ao cair da noite, o “Júpiter” largou de regresso a Leixões, trazendo a bordo toda a tripulação do vapor que se perdeu.
E, à semelhança do “Moneyspinser” que em 1926, numa tarde tempestuosa, encalhou na restinga do Cabedelo e ali foi desfeito pelas vagas – o “Lagoa”, com toda a sua riqueza a bordo, lá ficou pertença exclusiva do mar, mesmo num dia de sol. Ainda bem que não houve perda de vidas a lamentar. O mar começou já ontem, de tarde, a arrojar à praia fragmentos das embalagens, bem como algumas mercadorias avariadas.
(In jornal “Comércio do Porto”, quinta, 20 de Dezembro de 1928)

sábado, 11 de janeiro de 2014

História trágico-marítima (CX)


O naufrágio do patacho “Harriet”, na barra do Douro

Imagem de um patacho, sem correspondência ao texto

Naufrágio
Teve lugar hoje (05.03.1873) pela manhã mais um sinistro na barra do Porto. Pelas 7 horas, apareceu à barra o patacho inglês “Harriet”, porém como o mar estivesse um tanto agitado, do castelo fizeram-lhe sinal para que não entrasse. Não obstante esta prevenção, o patacho meteu-se à barra e em consequência disso foi de encontro à pedra denominada «Folga Manada», onde bateu, indo depois encalhar no Cabedelo. O rombo que o navio sofreu foi tal, que desde logo começou a meter grande porção de água, vendo-se a tripulação em perigo.
De terra lançaram então um foguete de salvação para o patacho e por meio dele colocaram um cabo de vai-vem, pelo qual a tripulação salvou as bagagens, vindo depois para terra. O navio na baixa-mar ficou em seco, procedendo-se ao salvamento da carga, que se crê poder-se tirar-se toda. O patacho vinha da Terra Nova, com bacalhau, consignado aos srs. Noble & Murat.
(In jornal “Comércio do Porto”, quarta-feira, 5 de Março de 1873)

Acerca do patacho “Harriet”
Relativamente ao naufrágio que se deu ontem de manhã à entrada da barra do rio Douro, há mais as seguintes informações:
Quando do castelo foi dado sinal à embarcação para não entrar, o capitão quis virar para fora, mas escasseando-lhe de repente o vento, que era fresco, não o pode fazer, indo então o navio encalhar no Cabedelo. O velame, massame e parte da carga foram salvos sem avaria, porque foi tirada na ocasião em que a maré estava na baixa-mar.
Logo que a maré tornou a encher pararam os trabalhos de descarga e fecharam-se as escotilhas, receando-se que com a enchente da maré o patacho se desfizesse de encontro às pedras que lhe estão próximas. Isto felizmente não se deu, havendo portanto esperança de salvar não só o resto da carga, como talvez o casco. Desconfia-se que tanto o navio como a carga estejam seguros em alguma companhia inglesa.
(In jornal “Comércio do Porto”, quinta-feira, 6 de Março de 1873)

Identificação provável do patacho “Harriet”
Armador: Bowring & Co., Liverpool, Terra Nova
Construtor: Cox, Bridgeport, Terra Nova, Maio de 1860
Arqueação: Tab 186,00 tons
Dimensões: Pp 31,39 mts - Boca 6,58 mts - Pontal 3,96 mts
Propulsão: À vela
Acerca do patacho “Harriet”
Tem continuado a descarga do bacalhau a bordo do patacho “Harriet”, naufragado próximo do Cabedelo. O bacalhau que tem saído ultimamente vem molhado, por ter entrado o mar na embarcação, por efeito do rombo que sofreu. Esta noite, como a maré o permitiu, continuaram a tirar a carga. O bacalhau salvo tem sido depositado nos armazéns do sr. Murat, e o velame, massame, correntes, etc., estão na alfândega. Por contrato feito entre os signatários do navio e o sr. Schneider foi este sr. encarregado dos salvados. A arrematação do casco e mais pertences deve provavelmente efectuar-se amanhã. O patacho pertencia à praça de Liverpool.
(In jornal “Comércio do Porto”, sexta-feira, 7 de Março de 1873)

Patacho “Harriet”
Acerca do patacho inglês “Harriet”, naufragado na terça-feira quando vinha a entrar a barra, há agora mais os seguintes pormenores:
O navio e a carga estavam seguros mas não o frete. Graças à energia empregue pelos consignatários e pelos salvadores, acto contínuo ao sinistro, tem-se salvo todos os aprestos e utensílios do navio e cerca de uma quarta parte da carga. A parte desta que está a bordo receia-se que esteja em mau estado, em consequência da água entrada a bordo; no entanto fazem-se esforços para salvar mais alguma na ocasião da maré vasa.
Foi feita vistoria ao casco na sexta-feira para julgar da navegabilidade do navio e foi decidido que fosse posto em hasta pública quanto antes, para benefício dos interessados. Tem lugar a arrematação do visto e não visto do navio e de alguns aprestos que se acham no Cabedelo, amanhã pelas 10 horas da manhã. Não entra na arrematação a carga que ainda se acha a bordo. Amanhã de tarde principia também a arrematação do bacalhau salvo, começando a venda pelo que está armazenado na casa da alfândega velha. Brevemente será marcado dia para a arrematação dos demais aprestos do navio, que se encontram armazenados no barracão da estiva velha e sobre o cais contíguo.
(In jornal “Comércio do Porto”, Domingo, 9 de Março de 1873)

Arrematação
Teve ontem lugar na praia do Cabedelo a arrematação do visto e não visto do patacho inglês “Harriet”, ultimamente naufragado ao entrar a barra. Foi tudo arrematado pelo sr. João José Rebelo de Magalhães por 344$500 réis, à excepção do leme, que foi arrematado por 2$000 réis pelo sr. Manoel Gonçalves Logarinho. Assistiram à arrematação como presidente o sr. Francisco Rodrigues de Faria, 1º oficial da alfandega, como escrivão o sr. António de Faria Carneiro e como pregoeiro o sr. Joaquim da Silva, tendo assistido também os srs. C.H. Noble & Murat, na qualidade de representantes do capitão e da companhia de seguros.
Algum do bacalhau de que constava o carregamento tem sido vendido em leilão, aos preços de 5$000 a 8$300 réis, conforme o seu estado. O resto da carga tem sido abandonado, em consequência do seu péssimo estado. Pelos rombos que o navio tem no fundo tem saído muito bacalhau, sendo o que o mar arroja ao Cabedelo logo tomado pela gente da costa, que não deixa em sossego os guardas da fiscalização. Estas atitudes têm dado lugar a conflitos, não obstante o estado do bacalhau ser tal, que não pode aproveitar aos que o tomam.
A arrematação dos salvados do patacho deve ter lugar amanhã no cais da Estiva. Os salvados constam de velame, massame, poleame, cabos, botes, correntes de ferro, ancoras, metal de cobre e outros objectos.
(In jornal “Comércio do Porto”, terça-feira, 11 de Março de 1873)

Arrematação de salvados
Verificou-se ontem na cais da antiga casa da Estiva a arrematação de parte dos salvados do patacho inglês “Harriet”, que constavam de massame, poleame, dois botes, guincho e outros aprestos do navio. Estes objectos produziram a quantia de 678$450 réis. Além destes, foram também arrematados a peso e por diferentes preços algumas correntes, ancoras, chumbo e cobre.
Hoje, à mesma hora continua a arrematação do resto dos salvados, que constam do velame, cabos e vergas. Preside à arrematação o sr. Francisco Rodrigues de Faria, é escrivão o sr dr. António de Faria Carneiro e pregoeiro o sr. Joaquim da Silva. Representam o capitão do patacho e a companhia de seguros os srs. C.H. Noble & Murat.
(In jornal “Comércio do Porto”, quinta-feira, 13 de Março 1873)

Arrematação de salvados
Concluiu-se ontem a arrematação do resto dos salvados do patacho inglês “Harriet”. Consistiam estes em vergas, cabos, velas, viradores e outros objectos, o que tudo foi arrematado por diferentes preços e em diversos lotes por vários licitantes, pela quantia de 871$510 réis, sendo das vergas 190$900, das velas 594$150 e de diversas miudezas 86$460 réis.
O produto dos cabos e viradores ainda não é conhecido, porque foram arrematados por cada 60 kilos, não se podendo saber senão depois de verificado o seu peso. Em idêntico caso estão as correntes, ferros, chumbo e cobre, que também foram arrematados a peso.
À arrematação estiveram presentes os empregados da alfândega referidos anteriormente, bem como os consignatários do navio, em representação do capitão e da companhia de seguros.
(In jornal “Comércio do Porto”, sexta-feira, 14 de Março de 1873)

Patacho “Harriet”
Concluiu-se ontem a arrematação dos salvados do patacho inglês “Harriet”. O produto da arrematação foi o seguinte:
Objectos arrematados no dia 12, 678$450 réis; ferros, ancoras, chumbo e cobre, 727$245 réis; miudezas, 86$460 réis; vergas, 190$900 réis; velas, 594$150 réis e cabos e viradores, 288$430 réis. Total 2:565$635 réis.
(In jornal “Comércio do Porto”, sábado, 15 de Março de 1873)