domingo, 12 de junho de 2022

Cultura e arte! (1)


A navegação espantosa de Diogo Botelho
«Os pilotos não podem ser capitães de fortalezas!» Isto foi dito a sorrir, mas o mancebo ficou magoado. Porque não havia ele de ser capitão de Chául, como, em tempos passados, o fora Cochim de seu pai! Com o ressentimento a ferver-lhe no peito, Diogo Botelho atravessou a ante-câmara. «Então teve bom despacho do rei?» inquiriu o Escrivão da Puridade, entre o irónico e solicito. «Senhor,» - retorquiu o rapaz furiosamente – «bom despacho eu o buscarei por mim!».
Os ouvintes entreolharam-se. Que queria isso dizer? Não faltou quem se lembrasse de um tal Fernão de Magalhães, que, saíndo indignado da presença do falecido rei D. Manuel, levara depois o estandarte de Castela pela redondeza da Terra até às Molucas. Um piloto ofendido era um homem perigoso. O rei foi devidamente prevenido e Diogo Botelho foi encarcerado no castelo de Lisboa.
Este jovem seria talvez o primeiro europeu de pai e mãe, que nascera na Índia. Era filho de António Real, capitão de Cochim, principalmente conhecido por ter sido caluniador de Afonso de Albuquerque. A mãe foi uma certa Iria Pereira, trazida por António Real à Índia em 1505. Lá, Iria enriquecera-se à custa de António Real ou de outros protectores ignorados – e criara o filho «com muita vaidade»
O rapaz era esperto. Tinha paixão pelas coisas do mar e pela ciência náutica. Para isto Cochim não era má escola. Podia conviver com os melhores pilotos, que se empregavam na carreira da Índia. Consta também que aprender com um frade dominicano, que «lia e ensinava o tratado da esfera», e mercê do qual «se fez mestre esférico». Tanto que desenhou um grande mapa-mundi, que trouxe para Portugal a fim de oferecê-lo ao jovem rei D. João III.
Todo o piloto e cartógrafro era bem recebido na corte portuguesa. Diogo Botelho teve muitas conversas com o soberano, que o tratou com assinalado favor, o que lhe subiu um pouco à cabeça. Esquecido da obscura origem, atrevera-se a pedir a capitania de Chául, com o resultado que já se viu.
Tinha amigos, que conseguiram a sua liberdade e levasse o vice-rei D. Vasco da Gama, consigo, à Índia, em 1524. D. Vasco apreciava a sua qualidade de piloto, mas tinha cuidado de abater-lhe a presunção: «Todos os homens que são muito pilotos tem fantasias de doudos», disse, e «vós, Diogo Botelho, por isto perdestes». Que tomasse juízo e se emendasse, porque «El Rey vos fará mercê e eu vo-la farei».
Curtindo as dores do orgulho lacerado, Diogo Botelho desembarcou na terra natalícia. Voltava como degredado banido do reino, e o que mais o humilhava era a desonra de ser tratado como suspeito de traição.
Diogo Botelho, altivo e destemido, jurou cometer algum feito espectaculoso – inaudito, que, demonstrando simultâneamente a sua perícia de piloto, convencesse da sua fidelidade inconcussa.
Proibiram-lhe que voltasse a Portugal, mas voltaria! Voltaria numa embarcação tão pequenina, que a todos havia de parecer impossível atravessar nela o oceano. Ver-se-ia assim como ele podia, se quisesse, navegar para França, Castela ou algures, e como de livre vontade se mantivera fiel a Portugal.
Qual o pretexto para tal acto de desobediência? Iria como portador de boas novas. Quem traz notícias agradéveis não é castigado. Diogo Botelho aguardou oportunidade até 1535, quando o governador Nuno da Cunha obteve enfim do rei de Cambaia a desejada licença para levantar uma fortaleza em Diu. Eis uma nova que Diogo Botelho podia transmitir antes de mais ninguém, se fugisse da Índia numa fusta!
Num esteiro escuso de Cochim, defendido dos olhares curiosos por cerca fechada, Diogo Botelho construiu a fusta – pequena embarcação chata de remo e vela. Deu-lhe 22 palmos de comprido por 12 de largo, fez-lhe uma coberta de popa à proa e «quatro fermosos tanques para água». Acabada a fusta, levou-a de Cochim para Baçaím, e lá recrutou tripulação: uns cinco – outros dizem oito – portugueses, além dos escravos para remar. A ninguém revelou o fim em vista. Iam juntar-se à armada do Governador, em Diu, foi o que propalou.
Deixando a fusta em Baçaím, Diogo Botelho deu uma saltada a Diu, para ver bem a fortaleza em construção. Observou, apontou, tirou medidas sem chamar a atenção, e finalmente, em segredo, desenhou a planta da obra.
O tempo apertava. Em Diu o Governador equipava uma caravela, para levar a boa nova ao rei. Diogo Botelho chegou apressado a Baçaím. Tinha de partir já para Chául, anunciou. Levava um recado urgentíssimo do Governador!
A fusta largou em Novembro de 1535. Chául fica perto de Baçaím. Porque então, perguntou o comitre, haviam de afastar-se tão longe da costa? Chegara o momento de desvendar o mistério. Rebelar-se-iam os homens? Com a espada na mão, Botelho revelou o seu intento. Iam ao reino com uma mensagem de grande alegria para o rei, que havia de fazê-los a todos muito ricos. Entretanto, Botelho pagou cem pardaus de ouro a cada um, prometendo que quem quisesse podia ficar em Melinde. Eram todos aventureiros pobres, não tendo senão as vidas para perder, que pouco estimavam. Vamos então para o reino!, concordaram.
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Fusta
Embarcação estreita de remos e vela, do género da galé, mas mais pequeno, muito usado no tempo das Descobertas. Tinha borda direita e proa de beque longo, armado de esporão. Pelas suas dimensões reduzidas e pequeno calado, podia navegar em águas pouco profundas e muito junto à costa. Tal como as galés, tinha uma capacidade de manobra bastante boa, pois não estava dependente apenas do vento. Possuía um a três mastros; o traquete com vela redonda, e o grande e a mezena ou artimão com velas bastardas triangulares. Armava com 3 a 5 remos por bancada, com 15 a 30 bancos de remadores. Tinham tendal à popa, sobre o qual se montava toldo, e alguns paveses pela borda. Possuía um ou dois pequenos canhões na proa. Sendo de comprimento relativamente longo, até uns 25 m, e de insignificante pontal, não podiam ter coberta, arrumando-se a aguada debaixo da xareta, e os mantimentos em paióis volantes à amurada. A ré e avante tinham chapitéu e castelo parecido com o das fragatas da navegação fluvial.
A fusta foi muito utilizada no Mediterrâneo pelos corsários do Norte de África e em Portugal já no reinado de D. Afonso Henriques, para o comércio e para a guerra. Os árabes chamavam-lhe falucho. No Oriente as fustas eram construídas no arsenal de Goa e noutras praças, sendo muito usadas pelos portugueses.
Continua...

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