quinta-feira, 3 de maio de 2018

História trágico-marítima (CCLII)


O naufrágio do vapor Deister", barra do rio Douro
2ª parte

Imagem do navio, publicada na revista Panorama, Berlim

Características do vapor “Deister”
Armador: Rabien & Stadtlander, Bremen, 1928-1929
Operador: Neptun Linie, Bremen
Construtor: Howaldtswerke, Kiel, Alemanha, 1921
ex “Franziska”, C. Wohlenberg, Hamburgo, 1921-1928
Arqueação: Tab 1.746,00 tons - Tal 1.029,00 tons
Dimensões: Pp 79,55 mts - Boca 12,50 mts - Pontal 5,33 mts
Propulsão: Do construtor, 1:Te - 3:Ci - 149 Nhp
Equipagem: 24 tripulantes

A tragédia de Domingo - Não se apagaram as primeiras impressões
Concretizando factos – Um homem viu tudo – O piloto era competente
Uma entrada estranha – Inquérito – Ronda penosa – O estado da barra
A gaveta do capitão – Os restos do navio – Mais cadáveres na costa
Diz o cônsul da Alemanha – Os Agentes de Navegação e o naufrágio

Continua-se sob o domínio da impressão dolorosa que causou a grande desgraça da Foz. Por mais que as horas rolem, passados já três dias, ainda se sente bem nítida, diante dos olhos dos que a presenciaram e na alma de quantos a sentiram de algum modo – ainda se sente nítida essa tragédia formidável, que roubou a vida a 25 homens, nas circunstâncias mais horrorosas e após os sofrimentos mais lancinantes.
A notícia, na sua realidade nua e cruel, está dada, desde o primeiro dia, com informações postas a correr ao encontro da ansiedade do público. Todavia, enquanto se não desfizerem os últimos ruídos de semelhante catástrofe, justo é que acompanhemos os factos que se vão desenrolando, concretizando melhor este ou aquele pormenor mal apanhado nas horas indecisas da horrível tragédia.
De resto, a toda a hora vão chegando dos mais variados locais, pedidos ansiosos de informações complementares, o que marca perfeitamente o natural estado de espírito de todos quantos, a este tempo, se acham inteirados da desgraça.
Concretizando os factos
O mar, ontem, quando, ao começo da tarde chegamos à Foz, estava manso e quieto como um lago! Nem uma onda mais áspera a lembrar-nos o seu poder imenso. E o sol doirado desfazendo-se em rutilas flechas, caía sobre a vastidão das águas como um beijo de Deus a abençoar os elementos.
Não gemia o vento agreste dos dias trágicos e do mar largo vinha até à praia o sopro delicado duma viração amena. E lá ao longe, precisamente no local onde o “Deister” se sumiu, o sol refulgente, incidindo com força doirava as águas mortas, num círculo de fogo vivo e cores variadas – como se fosse uma coroa gigantesca composta pelas flores da nossa saudade toda!
E a água, naquele ponto, formava, às vezes, largos borbulhões, como se a notar aos que da praia espreitavam que era ali, naquele coval imenso, que o “Deister” estava a desfazer-se…
A ironia do destino! Aquele mar que, há três dias mal passados ainda, parecia apostado em absorver o mundo, estava agora tão quieto como o lago mais sereno dum jardim, a pontos de se confundir com o próprio rio.
Ante o mar assim, com o sol a beijar-nos meigamente e de olhos postos no sítio onde a tragédia se desenrolou, concretizamos alguns factos importantes, já que o acaso nos pôs à disposição os elementos necessários.
Um homem que viu tudo
O sr. José Soares Júnior, telegrafista, que estava de serviço no posto da Cantareira, presenciou desde o primeiro instante, toda a formidável tragédia. Este senhor achava-se de serviço na manhã de Domingo, tendo acompanhado as evoluções do “Deister”, com um poderoso óculo, desde que ele surgiu, ali na barra.
Do alto da torre do seu posto, numa posição excepcional, munido dum esplêndido óculo foi-lhe possível assistir, gravar, para toda a vida, os dolorosos momentos daqueles 25 desgraçados, entre os quais um – o piloto – era seu compadre!
O sr. Soares, que ainda agora, ao reproduzir-nos o que viu, dá mostras duma emoção abaladora, não largando nunca o seu pobre compadre, nele conservando o óculo acertado, até que as ondas o devoraram. Então, apesar do ânimo que manteve, sentiu quebrarem-se-lhe as pernas e teve de deixar correr as lágrimas…
É que o inditoso piloto Jacinto sabia muito bem que o seu compadre, àquela hora, estava ali, no posto, a ver a tragédia toda com o auxílio do mesmo óculo, que os dois tantas vezes utilizaram em circunstâncias parecidas ou para espreitarem, lá fora, alguma embarcação.
O que esse óculo permitiu ver, já antes relatado, tem hoje para juntar que os três últimos náufragos, durante as longas horas que esperaram a morte, friccionaram-se, repetidas vezes, com líquidos alcoólicos, certamente, a fim de, por essa reacção, mais resistirem.
Para o fim, quando a última esperança começava a desfolhar-se, deram em beber, desesperadamente, como se os movesse a preocupação de receberem a morte numa inconsciência confortante, ou para com mais entusiasmo lutarem com as águas, nadando, ao caírem nelas.
Do cimo daquela torre, dominando a terra e o mar, a tragédia, desenrolada ali, a dois passos, tinha aspectos colossais! Vinham pelo óculo dentro, em ímpetos esmagadores, os gestos desesperados e as súplicas angustiosas dos desgraçados náufragos, cuja morte inevitável punha nos nervos de todos contorções de epilépticos e expressões incalculáveis!
O sr. José Soares viu o compadre despir o casaco, apertar o colete de salvação e, com os 24 desgraçados companheiros, esperar na ré a morte negra e cruel. E só o largou, quando ele, ao ver aproximar-se a vaga formidável que o levou para sempre, fez menção de ajoelhar, como se a dizer adeus à terra querida, à família e aos amigos! Então, não pode mais…
O piloto era competente
Segundo os entendidos, o infeliz piloto Jacinto Pinto, era deveras competente, sabendo do seu ofício como aqueles que mais sabem. E, até, na opinião dos sabedores da matéria, o inditoso Pinto fez, ao tentar safar o “Deister”, uma das manobras mais perfeitas, que se tem visto fazer naquela barra.
O que parece também provado é que, tanto o piloto como o comandante do vapor, tiveram, no momento dessas manobras, a generosa preocupação de evitarem que o “Deister” ficasse encalhado às portas da barra, o que faria com que ele a impedisse por muito tempo.
E, então, desviaram o navio para o largo, talvez com a intenção de o encalhar, logo atrás, na praia do Ourigo. Simplesmente, a fatalidade a que não se foge, havia determinado que o “Deister”, ou porque estivesse arrombado ou por qualquer outro motivo, não lograsse passar do sítio onde caiu após safar-se da primeira contingência.
De qualquer modo, é necessário acentuar, honrando a memória sagrada desse infeliz, que a Foz em peso proclama os seus dotes de carácter, enquanto os técnicos o reputavam conhecedor do seu ofício.

Uma entrada estranha
O “Deister”, já o dissemos e agora repetimos, nunca devia ter tentado entrar a barra do Douro, tal como ela se encontrava nessa fatídica manhã.
- Porquê?
Responde um entendido:
- Porque verificadas as condições em que se encontrava a barra, agravadas pela corrente da água que no Domingo se notava, a entrada considerava-se perigosa, principalmente para navios daquela tonelagem. E a entrar, nunca devia ter vindo sem um rebocador à proa. Esta opinião, que aliás anda na boca de toda a gente, é, como sempre acontece nestes casos, uma consideração que a fatalidade inclemente só deixa fazer, depois do mal estar feito.

Um inquérito
Ontem, à tarde, estiveram no Departamento Marítimo do Norte a prestar declarações sobre o naufrágio, o piloto-mór e o cabo de pilotos, a fim de, por aquela autoridade marítima, ser dado andamento ao respectivo inquérito. As suas declarações, como se sabe, ficaram em segredo de justiça.
Uma ronda penosa
Logo que a grande tragédia se consumou, os pilotos srs. Elísio da Silva Pereira, José Fernandes Amaro, Joaquim Alves e Carlos Sousa Lopes, meteram-se, a pé, pela costa abaixo, seguindo sob a chuva inclemente e açoitados pela ventania brava, à procura dos cadáveres.
O que estes homens passaram, nessa jornada humanitária, é bem digno das grandes almas. Depois de terem calcorreado léguas e léguas, com as roupas encharcadas, tiveram de descalçar as botas para que os pés gelados pela água pudessem reagir. E assim foram, em meias, ao princípio, quase descalços quando elas se rasgaram, até que deram com os cadáveres, já antes referidos.
Longas e penosas foram as suas pesquisas, mas a dedicação e os sacrifícios resultaram inúteis, pois que nem o seu desventurado companheiro, nem mesmo qualquer outro dos tripulantes o mar lhes deixou ver.
E assim regressaram, como que vindos de passar as mais duras privações, - sempre pela costa fora, com os olhos postos nesse mar raivoso que lhes tragara o amigo dedicado e companheiro muito querido!
O estado da barra
A barra do Douro continua impedida, não havendo, por isso, qualquer movimento. Lá ao largo, distanciados da barra uns trezentos ou quatrocentos metros, vêem-se parados, numa quietude enervante, 5 vapores que aguardam o momento de poderem entrar, coisa que hoje não lhes foi permitida porque a corrente do rio, ainda que menos forte do que no Domingo, continua violenta.
Por volta da meia hora da tarde, o rebocador “Lusitânia”, vindo de Leixões, entrou na barra do Douro, com o piloto sr. Manuel Alegre a bordo, tendo feito diversas sondagens para verificar o estado da barra.
Constatou-se que o “Deister” não obstruiu a barra, achando-se para o sul do canal e quase à superfície da água, tanto que, ocasionalmente, mostra partes do costado.
A gaveta do capitão
Ontem, foi encontrada por um guarda-fiscal, que andava de serviço ao longo da costa, por alturas da Madalena, uma gaveta, quase intacta, que era a do gabinete do comandante do “Deister”. Dentro, achavam-se, também em bom estado, posto que molhados, diversos documentos, retratos, cartas, etc.
Os restos do “Deister”
Ao longo da costa, em vários pontos, têm aparecido os mais diversos artigos que faziam parte da carga do vapor naufragado. Por isso mesmo, é grande o número de pessoas que se aproximam do mar, na ânsia de caçarem o que possam, pilhagem que obrigou a guarda-fiscal a reforçar as rondas.
No posto de Lavadores, encontram-se muitos destroços do vapor, entre os quais um salva-vidas, um colete de salvação, uma agulha de marear, bastante carga, etc.
Mais dois cadáveres dão à costa
Ontem, ao meio da tarde, chegou a indicação, entretanto confirmada oficialmente, de que numa ronda a cavalo, da guarda-fiscal, tinha encontrado, próximo da praia do Furadouro, ao sul de Ovar, mais dois cadáveres dos inditosos tripulantes do “Deister”.
São, portanto, já 4 corpos que o mar expulsou. Mas ainda faltam 21…

Declarações do sr. cônsul da Alemanha
O sr. Stuve, representante consular da Alemanha nesta cidade, entrevistado ontem, nada mais tem a acrescentar. Lamenta, como homem e alemão, a perda daquelas 25 vidas, sentindo imenso não poder, como era seu desejo, sepultá-los todos juntos, em lugar reservado.
Era a derradeira homenagem que o seu coração de patriota desejaria poder prestar, mas que o mar parece não consentir, atirando-os a terra, um a um. O sr. cônsul está a ultimar o seu relatório oficial a enviar ao governo do seu país.
Os agentes de navegação e o naufrágio
Reuniu a direcção da Associação dos Armadores Marítimos e Agentes de Navegação do Porto e Leixões, sob a presidência da firma Kendall, Pinto Basto & Cª., Lda., estando presentes os vogais Tait & Cª., Bernhard Leuschner, Delegação Marítima do Banco Burnay e J.T. Pinto de Vasconcelos, Lda.
Aberta a sessão foi apreciado o naufrágio do vapor alemão “Deister” na barra do Douro, no passado Domingo, que custou a vida a toda a sua tripulação e ao piloto da barra do porto, que o acompanhava. Em seguida foram propostos e aprovados os seguintes votos de condolências; À corporação dos Pilotos da barra do Porto, pela perda do piloto Jacinto José Pinto, vítima do naufrágio do “Deister”.
Resolveram oficiar os srs. W. Stuve & Cª., na qualidade de agentes do “Deister”, indo uma comissão, composta por dois membros desta direcção, representantes das firmas Bernhard Leuschner e Delegação Marítima do Banco Burnay, apresentar sentimentos.
Resolveram também abrir uma subscrição a favor da viúva e filhos do piloto Jacinto Pinto, a fim de atenuar a sua miséria, e, pedir à Corporação dos Pilotos para tratar da organização da sua Caixa de Socorros para estes casos, pois que as taxas de pilotagem pagas actualmente dão margem para este humanitário fim.
Foi também, por um membro da direcção, solicitado ao sr. capitão do porto do Douro, para que fosse colocada uma bóia, onde se acha afundado o vapor grego “Virginia”, pois tendo já perdido um dos mastros, logo que o temporal faça desaparecer o outro, constituirá um perigo para a navegação entre o Porto e Leixões.
Aquela autoridade disse já estar em Lisboa a informação sobre a conveniência dessa marcação. Foi resolvido renovar os instantes pedidos feitos à Junta Autónoma das Instalações do Douro e Leixões para que sejam efectuados trabalhos de quebramento de rochas e desassoreamento do canal da barra do Porto.
Sendo apreciado o estado da mesma barra mais se evidenciou ainda a inadiável necessidade das obras no porto de Leixões.
(In jornal “Comércio do Porto”, quarta-feira, 6 de Fevereiro de 1929)

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