sexta-feira, 18 de agosto de 2017

História trágico-marítima (CCXXIX)


Sinistro marítimo
O “Highland Hope” encalhou nas Berlengas
2ª Parte

O naufrágio do “Highland Hope”
O paquete ainda não se submergiu
O “Highland Hope” ainda não se tinha afundado completamente às primeiras horas da tarde, conservando a proa sobre os rochedos, mas a parte que vai de meio navio à ré já se encontra submersa.
Devido a essa circunstância, conseguiram ainda ser salvas ontem muitas bagagens dos passageiros, que hoje foram depositadas na Alfândega.
O ex-deputado brasileiro Daniel de Carvalho, e o jornalista sr. Severino Barbosa Correia, do Rio de Janeiro, voltaram ontem mesmo a bordo, conseguindo salvar algumas bagagens e todas as jóias pertencentes à srª Daniel de Carvalho.
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O que diz um oficial da Armada argentina
O capitão-de-fragata da Armada argentina, sr. Daniel de Oliveira César, um dos náufragos do “Highland Hope”, dizia à imprensa:
- A companhia do vapor merece as minhas mais ásperas censuras, por entregar o comando de um transatlântico, com centenas de vidas a bordo, a um homem velho e alquebrado, com 74 anos de idade. Para esta falta, que é gravíssima, não encontro a mais leve desculpa. E o capitão Johnes, que julgo ter sido em novo um grande comandante, já não tem hoje qualidades para conduzir um transatlântico como o “Highland Hope”. Como marinheiro profissional é esta a minha opinião.
Em relação a pormenores do sinistro e dos momentos de emoção que se lhe seguiram, o entrevistado volta a lembrar quanto lhe custa trazer a público, factos tão lamentáveis, que o levaram à firme convicção de que a Marinha Mercante inglesa de hoje em nada se pode comparar à de ontem.
Contudo, aquele oficial foi dizendo:
- Vou citar-lhe alguns episódios passados comigo, os quais considero suficientemente elucidativos. Por exemplo: nas primeiras baleeiras arriadas, quiseram vir para terra muitos tripulantes a quem competia permanecer a bordo, para promover o salvamento dos passageiros. Alguns conseguiram o seu intento. Ao chegaram à praia, dirigiram-se aos primeiros estabelecimentos que encontraram, comendo e bebendo sem se preocuparem com a sorte de tantas vidas. E lá na praia, eram os vossos abnegados pescadores, nobres descendentes dos grandes marinheiros portugueses, que ensinaram o mundo a navegar, quem, desveladamente e com um carinho indiscutível, auxiliavam a passagem dos salvados de bordo das traineiras e das baleeiras para terra. É esta a verdade dos factos, e como tal não me esquivo a dizê-la.
- Havia a bordo uma certa falta de organização. Contudo, não observei qualquer caso de embriaguês. Em terra é que, talvez, para se refazerem do susto, beberam e comeram desmedidamente.
- Logo que se deu o sinistro, apareci rapidamente na tolda. O capitão Johnes, abatido e desorientado, andava pelo convés, de um lado para o outro, sem dar uma ordem, sem tomar uma atitude enérgica. O pessoal de bordo não tinha quem lhe desse ordens e aparentava pouca disposição para obedecer a quaisquer que lhes fossem dadas. Havia baleeiras já cheias de gente que não eram arriadas, porque alguns tripulantes a quem competia a permanência a bordo, alimentavam ainda a esperança de seguir nelas para terra. Este libelo é tremendo, mas representa infelizmente a verdade dos factos.
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- É difícil descrever o que se passou nesses momentos trágicos. Junto a mim lançaram-se duas senhoras de joelhos, com filhos de tenra idade ao colo, suplicando-me que as fizesse embarcar na primeira baleeira que fosse arriada. A certa altura, como dois tripulantes teimassem em seguir para terra antes de se concluírem os trabalhos de salvamento, ameacei-os de os lançar ao mar, só assim evitando que insistissem nos seus intentos.
«Sem que tivesse contribuído para isso, eu passei a ser, a certa altura, um orientador dos trabalhos de salvamento, porque não havia aquela organização indispensável para evitar um desastre de maiores proporções. Fi-lo na minha qualidade de marinheiro profissional».
- O capitão Johnes veio para terra na quarta ou quinta baleeira, deixando a bordo não só os três passageiros que dormiam, mas outros que ainda aguardavam no convés lugar nas embarcações. Isto é muito lamentável, mas é também muito verdadeiro. Em terra o velho oficial, soube das censuras que lhe eram por esse motivo dirigidas e voltou então para bordo às 13 horas e 30, conforme foi noticiado. Foi para lá, quando já nada tinha a fazer. A minha acusação. É como vê, áspera, mas não quero deixar de dizer, que não respeito a idade do velho capitão Johnes. Ele teria sido em tempos um hábil comandante mas actualmente ele já não reúne os requisitos para exercer tão espinhoso cargo. As culpas recaem, pois, sobre a companhia proprietária do navio, que entregou o “Highland Hope” a um homem que já devia desfrutar uma reforma compensadora de tão grande carreira no mar. Criou-se assim uma situação inadmissível: a bordo todos mandavam, menos o comandante, e ninguém obedecia.
- Quanto ao aspecto técnico do sinistro, houve um erro. Em todas as marinhas sabe-se quais os pontos perigosos dos litorais. Este comandante devia ter conhecimento da existência dos Farilhões. Porque não guinou para oeste como estava indicado? Não sei. Sabemos apenas que o encalhe se deu com todas as consequências, que teriam sido trágicas se houvesse algum temporal. Considero ridículo um encalhe nestas circunstâncias.
- O que lhe posso garantir é que vai ser tremenda a propaganda dos serviços desta empresa, a ser feita pelos náufragos, logo que cheguem aos seus países. Será dura, mas será justa.
- Quero igualmente declarar, que os portugueses pela maneira como nos receberam conquistaram para sempre um lugar no nosso coração. Onde eu estiver, jamais um português terá dificuldades. Tudo farei por ele, sem recompensar, por forma alguma, aquilo que nos fizeram. A gratidão de todos os náufragos será eterna, porque para sempre ficará gravado no nosso espírito o acolhimento fraterno, que nos foi proporcionado em Peniche. Que grande povo, o português! Creiam que digo isto com uma enorme comoção, porque não olvidarei nunca os carinhos de que nos rodearam. Houve sempre para nós, além do grande auxílio material que nos prestaram, palavras de conforto moral, que tanto mitigaram a nossa crítica situação.

Poster da Companhia Nelson Line
(in Pinterest - colecção AntikBar)

As declarações do engenheiro-chefe
Esta é a outra versão… Como sempre, a verdade apresenta vários aspectos. Neste caso há dois; o do náufrago e o do tripulante.
Não se entendem, não tem pontos de contacto, para dar o sinistro, na espessura do nevoeiro, noite ainda, sugerindo-o na sua grandeza trágica, que tão vivamente impressionou o país. Os oficiais do “Highland Hope” estão divididos por vários hotéis. É difícil encontrar um que fale à vontade, claramente, não evitando os escolhos, como se usa na boa navegação… O mutismo dos ingleses é um lugar-comum, que nem por isso honra a superioridade daquela raça.
Neste caso até podia ser ou supor-se uma desculpa. Depois de várias tentativas infrutíferas, foi possível falar com o engenheiro-chefe do navio, no Hotel Borges. Estava comendo um bife, rodeado de uma dezena de oficiais, que ouviram toda a conversa, sublinhando gravemente certas passagens, com inclinações de cabeça.
Começamos pelo princípio que não é paradoxo, porque muitas vezes começa-se pelo meio, ou pelo fim, abrindo assim situações de continuidade, que alteram a lógica. Desta vez, a opção recaiu por questões directas. Perguntas e respostas cabais. A mais importante de todas – que agora parece estar esclarecida – era esta:
- Como se deu o encalhe do transatlântico?
Sem uma nuance.
- O “Highland Hope” encalhou de vante, ficando na posição de «cavalo». Isto é, a proa, cravando-se nos rochedos, levantou-se ao mesmo tempo que a ré, encontrando fundo no mar mergulhava, ameaçando o navio de ir a pique. O encalhe produziu um forte ruído, sendo os outros que se ouviram devidos à oscilação do navio.
- Qual a razão por que o comandante deu ordem para abandonar o “Highland Hope”?
- Por temer, em virtude das circunstâncias, que ele fosse a pique. O perigo parecia iminente, tanto mais que o mobiliário era fortemente sacudido contra as paredes.
- Reparou nisso?
- Reparei e acordei. Imediatamente ocupei o meu posto, assim como parte do pessoal de máquinas, que estava em período de descanso.
- A que horas se deu o sinistro?
- Minutos antes das 5 horas, procedendo-se logo ao salvamento dos passageiros, que apenas demorou um quarto de hora.
- E o desembarque foi feito em boas circunstâncias?
- Tudo em ordem, com a maior calma e sem grandes confusões. Não é verdade que os tripulantes do “Highland Hope” tenham preterido os passageiros nos salva-vidas, que estes não tivessem pessoal de remo, e ainda que se tenha dado preferência aos viajantes ingleses.
- Quem desembarcou, então, primeiro?
- A terceira classe, quase toda composta por espanhóis. Cada baleeira levava quatro ou cinco marinheiros. Os oficiais conservaram-se a bordo até final, com o seu comandante que, apesar de ser já idoso, é considerado como um dos mais cuidadosos e competentes da Companhia.
«Pessoalmente, conheço-o há mais de vinte anos».
- Mas, diz-se que ainda havia passageiros a bordo, depois do comandante sair…
- Não é verdade! A ronda fez-se e, tanto assim, que um dos oficiais aqui presentes – confirmado – teve tempo de salvar cinco cães.
- A causa do sinistro?
- O nevoeiro.
- Há esperanças de salvar o navio? Tem algum rombo?
- Suponho que deve ter aberto água na proa. No meu entender é possível safá-lo, embora com dificuldade.
- Como se portaram os pescadores portugueses?
- Admiravelmente. O seu auxílio foi precioso, coadjuvando os nossos esforços.
- O que esperam agora?
- Estamos a aguardar ordens de Inglaterra, devendo esta tarde avistar-mo-nos com o cônsul do nosso país.
Apesar da insistência, o entrevistado, muito à inglesa, despediu-se, dizendo:
- Nada mais tenho a declarar.
Informações do comandante do “Patrão Lopes”
Do vapor de salvamentos “Patrão Lopes”, que está a prestar assistência ao “Highland Hope”, o seu comandante enviou hoje ao Ministério da Marinha um rádio, dizendo que o navio encalhara ao norte do Farilhão e a nordeste, entre Farilhão e a rocha Ferreiro de Barlavento, tendo adernado uns 10 graus a estibordo e à popa, na direcção nordeste.
Pela sondagem feita na baixa-mar, do lado de bombordo, avante para ré, 4 a 7 braças. Esta última altura ao portaló, havendo pois de altura no poço avante da 3ª classe e na alheta, 8 braças. A estibordo, devido ao estado do mar, só permite obter a altura de água na proa, na altura da 1ª classe, variando de 3 a 5 braças, tendo-se encontrado 7 braças na altura do poço à ré.
Informa que a bordo do vapor viu muitos marítimos de Peniche, que declararam que estavam ali a salvar roupas e bagagens, tendo verificado pelo convés que as malas se achavam arrombadas e as roupas dispersas, dando todo o aspecto de haver pilhagem, mandando retirar os marítimos, que deviam estar ali por ordem superior.
Em vista do navio não ter ninguém a bordo, passou o comando do “Patrão Lopes” a exercer uma aturada vigilância, tendo sido mandada para bordo do navio naufragado uma força do seu navio, comandada por um oficial e o referido comandante vai de novo inspeccionar o vapor, a fim de observar se o navio pode ser desencalhado.
Junto ao navio acha-se também o navio de salvamentos dinamarquês “Valkyrien”, que, segundo uma nota do armador, se propõe ocupar o navio, mas que o comandante do “Patrão Lopes” não permitirá, em virtude de se opor o direito marítimo.
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A duquesa Mary Hamilton seguiu hoje para Paris no «sud-express».
Os passageiros da 1ª e 2ª classes seguem viagem no vapor “Asturias” e os de 3ª classe no vapor “Darro”.
Amanhã chega a Lisboa o capitão Howe, representante do Lloyds.
(In jornal “Comércio do Porto”, quinta-feira, 20 de Novembro de 1930)

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