terça-feira, 16 de maio de 2017

História trágico-marítima (CCXVII)


O encalhe e naufrágio do vapor “Gomes 7º”

A barra da foz do Douro, que no mês de Fevereiro findo, esteve interdita à navegação durante nove dias, sendo-o nos cinco últimos seguidos, por causa da agitação do mar e corrente de água no rio, foi ontem reaberta ao movimento de entrada e saída de embarcações, por terem melhorado um tanto as condições que determinaram o impedimento.
Houve, porém, a lamentar um sinistro, que pode indubitavelmente representar consideráveis prejuízos materiais, não tendo, por felicidade, havido perda de vidas.
A Corporação de Pilotos da barra, reunindo ontem de manhã, foi de parecer que poderiam entrar ou sair embarcações que demandassem até 14 pés de água. Cerca das 10 horas e meia entraram os vapores noruegueses “Tide” e “Muller”, em 12 pés de água, e que subiram o rio e buscaram ancoradouro, sem que lhes sucedesse incidente algum.
Pouco depois do meio-dia entrava também o vapor português “Gomes 7º”, avançando sem novidade até defronte do farolim de Felgueiras. De repente, desgovernou e, arrastado pela força da água, encostou para o sul, indo encalhar no cabeço da restinga do Cabedelo, a uns 200 metros de terra. A bordo foram içados sinais pedindo rebocador e avisando de que o maquinismo não funcionava bem; e imediatamente se apresentaram os rebocadores “Veloz” e “Hércules” para socorrer o “Gomes 7º”. Os esforços empregados para lhe lançar um cabo foram, porém, infrutíferos e, entretanto, o vapor encalhado batido pelas ondas, operava um movimento de rotação, ficando com a proa voltada a oeste; mas a popa, fortemente encravada na areia, não conseguiu levantar.
No Cabedelo apresentaram-se, logo que correu notícia do sinistro, o sr. Chefe do Departamento Marítimo do Norte, todos os pilotos disponíveis e grande número de pessoas daqueles sítios.
Por volta das 2 e meia da tarde foi lançado para o vapor, por meio de um foguetão, um cabo de vai-vem, que a bordo amarraram ao mastro grande, e às 4 horas deram começo ao salvamento dos tripulantes, que eram em número de 17, incluindo o capitão, e do piloto da barra, sr. Francisco Guerra, que vinha pilotando o vapor desde Leixões.
Dezoito vezes, pois, o saco de salvação fez o percurso, pelo cabo ligado entre o Cabedelo e o “Gomes 7º”, conduzindo outros tantos homens, que eram recolhidos a cerca de 110 metros de distância, pelo barco salva-vidas e por um saveiro da Afurada, tripulado por 10 valentes pescadores daquela localidade. Foi o saveiro que recolheu o primeiro náufrago, e notava-se que os remadores dos dois barcos porfiavam em apanhar o maior número possível dos indivíduos salvos por aquela forma, o que podia dar lugar a perder-se alguma daquelas vidas assim disputadas.
Houve um momento em que a ansiedade das pessoas que no Cabedelo e na Foz assistiam a este espectáculo foi angustiosa e se traduziu em gritos de aflição. Um dos tripulantes do vapor, Francisco Faísca, era puxado do areal pelo cabo de vai-vem; este tocou na água e o homem desapareceu, sem ter atingido nenhum dos dois barcos que o esperavam e por baixo dos quais passou avante. Felizmente, de terra fizeram com que o cabo corresse mais ligeiramente e em breve o náufrago tocava no areal, são e salvo, sendo abraçado e saudado com gritos jubilosos.
Eram 5 horas e 14 minutos quando o capitão do “Gomes 7º”, sr. Manoel da Costa, que foi o último a abandonar o vapor, caía no salva-vidas. No Cabedelo foram dispensados aos náufragos os socorros mais urgentes, sendo-lhes fornecida roupa para se enxugar por vários marítimos e outros indivíduos daquele extremo de Vila Nova de Gaia e da Foz,
A não ser o incidente que fica mencionado, e que aliás não teve consequências graves, todos os tripulantes fizeram bem a perigosa travessia, ficando ilesos. Eis os nomes deles:
Capitão, Manuel da Costa; imediato, Fernando Franco Serra, natural de Esposende. Marinheiros: Francisco António Faísca e António Castela, ambos de Portimão; Henrique Francisco, José Joaquim Rodrigues, António do Carmo e Francisco Marrusso, de Tavira. Fogueiros: Francisco Bernardo, de Portimão; Maurício Gordinho, de Mértola; Manoel Gomes Toledo, de V. R. Santo António; e António Manoel, da freguesia de S. Nicolau, no Porto. Despenseiro, José Mimoso. Criado, Carlos António Castela, de Portimão. Cozinheiro, Joaquim Vidal, de Alvor (Algarve). Engenheiros, James Smith e Franz Joseph Ender.
O sr. José de Souza Faria, solicito e activo agente na cidade da empresa a que pertence o “Gomes 7º”, apresentou-se sem demora nas imediações do lugar do sinistro, providenciando de modo que fossem prosseguidos os trabalhos para salvamento do vapor encalhado, ao mesmo tempo que lhe merecia especiais cuidados a tripulação, que em barcos fôra trazida para a Cantareira e dali viera em carro americano, ficando alojada no hotel do sr. Manoel Francisco Malhão, na rua do Comércio do Porto.
Os dez corajosos tripulantes do saveiro da Afurada, que tanto contribuíram para socorrer os náufragos, são o arrais António de Oliveira Dias Cangalhas, António Gomes Remelgado Júnior, Severino de Oliveira Dias Cangalhas, José Gomes Ferreirinha, António de Oliveira Meireles, João Nunes Arruela, Manuel Rodrigues Crista, José Vinagreiro, António Rodrigues Moleiro e José Rodrigues Crista.
O vapor “Gomes 7º”, um vapor solidamente construído de ferro, tem 456 toneladas e pertence ao sr. Alonso Gomes, fazendo, alternadamente com o “Gomes IVº”, do mesmo senhor, consecutivas viagens entre esta cidade, Lisboa, Algarve e portos da América, sempre com carregamentos completos e passageiros. Tinha entrado em Leixões no dia 25 do mês findo, e ali se conservara até ontem, aguardando que o mar abonançasse para entrara a barra.
O seu carregamento compõe-se de 800 sacas de cevada, consignadas aos srs. Martins & Silveira; 400 sacas de limpadura, 900 de purgueira, 50 de açúcar, 50 de café, 80 pipas de vinho e álcool, 70 fardos de tabaco em folha e porções de farinha e tremoços, com destino a diversos comerciantes.
O vapor encalhado, que está seguro em diversas Companhias estrangeiras, conservava-se, até ao anoitecer, direito e estanque, não tendo sofrido, pelo menos aparentemente, avaria alguma. Na vazante da noite, que devia dar-se por volta das 8 horas e meia, encetar-se-iam os trabalhos de descarga, se fosse possível, a fim de aliviar o casco. Para esse fim foram para a Foz o rebocador “Leão”, com seis grandes barcas. O capitão do “Gomes 7º” também para ali voltou, com a intenção de saltar para bordo logo que o mar desse lugar.
Cerca das 11 horas e meia da noite, porém, rebentaram as amarrações do “Gomes 7º”, e o navio, garrando, montou a restinga do Cabedelo para o sul, indo encalhar nas pedras denominadas «Folga Manada» ou na «Prolonga», o que de terra não se pode verificar bem por causa da neblina. O vapor ficou adernado para bombordo, supondo-se por isso que tenha sofrido algum rombo.
Como fica dito, o sinistro atraiu à Foz inúmeras pessoas, que na Meia-Laranja estiveram presenciando, durante a tarde, todas as peripécias que ocorreram. Ontem a velocidade da corrente no rio Douro era ainda de 4 milhas por hora.
(In jornal “Comércio do Porto”, quinta-feira, 2 de Março de 1893)


Características do vapor "Gomes 7º"
Nº Oficial: N/a - Iic: N/a - Porto de registo: Lisboa
Armador: Alonso Gomes & Cª., Lisboa, 1892-1893
Construtor: Hall Russel & Co., Aberdeen, Março, 1877
ex "Banchory" - Grampian Steamship Co., Ltd., 1877-1892
Arqueação: Tab 576,00 tons - Tal 372,00 tons
Dimensões: Pp 54,36 mts - Boca 7,95 mts - Pontal 4,39 mts
Propulsão: 1 motor compósito do construtor - 2:Ci
Equipagem: 17 tripulantes

O naufrágio do vapor “Gomes 7º”
Está completamente perdido o vapor “Gomes 7º”, que ante-ontem havia encalhado na restinga do Cabedelo. Por volta das 11 horas da noite, rebentaram as amarras do vapor, e este, impelido pelo mar, guinou para o sul, galgando a restinga e foi cair sobre a pedra «Folga Manada». Àquela hora a cerração era intensa, não se podendo do lado de terra, seguir os movimentos do navio naufragado.
As pessoas que estavam na Foz com o intuito de empregar esforços para a salvação do “Gomes 7º” seguiram pela Meia Laranja, procurando descobri-lo através da neblina. Efectivamente, numa ocasião em que a cerração se dissipou um pouco, puderam ver o navio flutuando à mercê das vagas. De súbito, porém, bateu duas vezes com grande fragor na penedia e baixou muito, não se mexendo mais.
Ao amanhecer, viu-se que o casco tinha sido despedaçado a meio; a parte da ré, até ao passadiço, estava perfeitamente imóvel, vendo-se fora da água o mastro e a chaminé; a parte da proa balouçava-se no dorso das ondas, até que o embate destas a foi destruindo a pouco e pouco.
Quase toda a carga acomodada no porão da proa começou a ser arremessada pelo mar ao areal do Cabedelo, onde era recolhida sob a vigilância de uns 20 soldados da Guarda-fiscal, às ordens do chefe da secção de Gaia, sr. Mendes, sob o comando superior da força, sr. capitão Cabreira. Os salvados são: grande número de fardos de tabaco, pipas e cascos de vinho e álcool, sacas de cevada e purgueira, algumas de farinha e vários cascos vazios. Há pipas que têm vindo arrombadas, depois de verterem até à última gota o líquido que continha.
O porão da ré já foi também aberto pelo mar, pois que alguma carga miúda ali acondicionada tem vindo igualmente dar à praia. Ainda lá estão dentro bastantes cascos de álcool e alguma purgueira. Como fica dito, os arrojos do mar vão todos ao Cabedelo, e para evitar que haja qualquer cena de pilhagem, uma patrulha de cavalaria da Guarda-fiscal percorre a beira-mar até alturas do Senhor da Pedra.
Fora do Cabedelo apenas um rapazinho achou uma garrafa de cerveja e a bandeira que o vapor tinha arvorado para pedir rebocador, quando ante-ontem se deu o sinistro. Esses objectos foram apreendidos pela delegação da alfândega na Cantareira.
Às 8 horas e meia da manhã de ontem em que ainda se conservavam direitas as duas metades do vapor, saltaram para bordo os tripulantes do mesmo, em procura dos haveres que lá deixaram quando na véspera tiveram que o abandonar. Alguns dos náufragos puderam então retirar a maior parte das roupas e outros objectos que lhes pertenciam, salvando também o capitão e o 1º engenheiro alguma roupa e vários instrumentos náuticos. O imediato e o 2º engenheiro não salvaram coisa alguma, bem como o marinheiro António do Carmo, o criado Carlos Castela, e os fogueiros Maurício Gordinho, António Manoel e Manoel Gomes Toledo.
O prático da barra que pilotava o vapor “Gomes 7º” foi suspenso do exercício das suas funções.
Como o dia de ontem esteve de sol e de uma amenidade primaveril, foi considerável o número de pessoas que acorreram à Foz para ver o vapor naufragado. Os carros da Companhia Carris de Ferro, tanto da linha marginal como os da Boavista, fizeram corridas extraordinárias durante o dia, indo e vindo sempre cheios de passageiros.
(In jornal “Comércio do Porto”, sexta-feira, 3 de Março de 1893)

O naufrágio do vapor “Gomes 7º”
Conservava-se ontem no mesmo estado em que ficou no dia anterior o casco despedaçado do vapor “Gomes 7º”. Apenas a parte da proa se fragmentou um tanto mais, por efeito dos embates do mar.
Na maré das 8 horas e meia da manhã, em dois caíques que atracaram à popa do vapor foram retirados da respectiva câmara vários objectos de mobília e de trem de cozinha, tais como espelhos, sofás, louças finas e de ferro, e bem assim roupas de cama, almofadas, bandeiras, farolins, latas de conserva, garrafas de diversas bebidas, etc.
Segundo informou o capitão do “Gomes 7º”, na parte do navio que permanece direita apenas existirão, no porão, uns oito ou dez cascos de álcool e algumas sacas de purgueira.
Ao Cabedelo continuaram ontem sendo arrojados pelo mar vários destroços do navio – pedaços de madeira e metade do mastro da proa. Também foram dar ao areal uns cinco cascos de álcool e diversas sacas de cereais. No serviço de arrecadação dos salvados emprega-se uma turma de 16 trabalhadores, que por vezes são auxiliados pelos soldados da Guarda-fiscal incumbidos da vigilância.
A patrulha a cavalo, da mesma guarda, que percorre a linha de costa até Gulpilhares, tem perseguido diferentes indivíduos que tentam apanhar despojos do naufrágio arremessados às praias. Que conste, porém, apenas dois homens foram encontrados com um pedaço de encerado e uma pequena mala, que não conseguiram subtrair.
(In jornal “Comércio do Porto”, sábado, 4 de Março de 1893)

O naufrágio do vapor “Gomes 7º”
O mar não destruiu ainda o que resta do vapor “Gomes 7º” desde que foi quebrado o casco em dois pedaços. Ontem só se notava que o mastro da ré está partido, não se sabendo explicar o que o sustentava erguido.
Com respeito a despojos do naufrágio, somente foram arremessados ao Cabedelo durante a noite de ante-ontem para ontem dois cascos com álcool e 16 sacas de purgueira, e ontem de manhã 1 casco com álcool.
Quase todos os salvados deram já entrada na alfândega. Para esse fim foi contratada com o estivador sr. Florindo Bandeira a remoção dos mesmos salvados do lugar onde se encontravam para as barcas que os conduziram àquela casa fiscal.
Ontem foi conduzida para ali a seguinte carga: 28 pipas de álcool, 52 pipas de vinho, 245 sacas de purgueira, 96 fardos e 4 caixas de tabaco, 2 fardos de papel para tabaco, 32 cascos vazios e 1 grade de feltro. No areal pouco resta: alguma lenha, várias pipas de vinho e álcool e um montículo de tabaco em folha.
O serviço de fiscalização tem sido feito com a máxima vigilância, na costa pela força da Guarda-fiscal, sob o comando do chefe de secção de Gaia, sr. alferes Mendes, e na via marítima por um barco da alfândega dirigido pelo patrão de remadores sr. Vital Gonçalves Lima.
(In jornal “Comércio do Porto”, Domingo, 5 de Março de 1893)

O naufrágio do vapor “Gomes 7º”
O casco despedaçado do vapor “Gomes 7º” ainda se conserva no mesmo estado tal como ante-ontem foi descrito, e continuou sendo alvo de curiosidade, pois que foi muita gente à Foz, no Domingo, para ver os destroços do sinistro.
Já foram remetidos para a alfândega os restantes salvados, que se achavam no Cabedelo.
Junto da praia de Lavadores foi ontem arremessada uma pipa de álcool, que alguns soldados da Guarda-fiscal trataram de arrastar para o areal, tendo para isso de empregar grandes esforços e até com certo risco. Os soldados ficaram completamente alagados pela água do mar e um deles feriu-se bastante numa perna.
Desde que ocorreu o naufrágio, as forças de cavalaria e infantaria da Guarda-fiscal têm estado alojadas numa casa que o comerciante sr. Charles Coverley possui no Cabedelo e que pelo mesmo cavalheiro fôra generosamente oferecida para esse fim, procurando, além disso, que aos militares que ali vão pernoitar se depare o possível conforto.
(In jornal “Comércio do Porto”, terça-feira, 7 de Março de 1893)

O naufrágio do vapor “Gomes 7º”
Da popa do vapor “Gomes 7º”, que não foi por enquanto destruída pelo mar, foram ontem retirados um casco de álcool, vários utensílios da cozinha de bordo e uma porção de cobre.
(In jornal “Comércio do Porto”, quarta-feira, 8 de Março de 1893)

O vapor “Gomes 7º”
Continuou ontem a faina de retirar alguns salvados de bordo do naufragado vapor “Gomes 7º”, da parte da ré que o mar não destruiu por enquanto. Foram conduzidos para terra a roda do leme, vários cabos e correntes de ferro, moitões de ferro e de madeira, e ainda diversas peças do trem de cozinha, etc.
(In jornal “Comércio do Porto”, quinta-feira, 9 de Março de 1893)


Novo vapor
O naufragado vapor “Gomes 7º” vai ser substituído por um novo navio, que se denominará “Gomes VIII”, e que terá uma lotação superior a 1.000 toneladas. Com a aquisição do novo vapor fica a casa Alonso Gomes & Cª com a sua frota novamente completa, satisfazendo assim os desejos dos carregadores que necessitam dos serviços dos vapores da mesma empreza, de que é agente nesta cidade o sr. José de Souza Faria.
(In jornal “Comércio do Porto”, sábado, 11 de Março de 1893)

O vapor “Gomes 7º”
Realizou-se ante-ontem no Cabedelo a arrematação dos salvados vistos e não vistos do vapor “Gomes 7º”, ultimamente naufragado. O casco do vapor foi arrematado por 331$000 réis, e os salvados não vistos por 31$000 réis.
(In jornal “Comércio do Porto”, terça-feira, 14 de Março de 1893)

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