quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Retratos de uma época não distante


O naufrágio do “Vestris”
3ª Parte

O paquete "Vestris" - Imagem Photoship.Uk

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O náufrago Walter Spitzer, que viajava na segunda classe do “Vestris”, descreveu, deste modo, para o jornal «A Noite», o horrível sinistro:
- Logo depois que o “Vestris” deixou as docas de Nova York, notamos que o paquete adernava para um lado. Como não conheço os termos marítimos, não sei o nome empregado para definir aquele bordo. Notei que todos os marinheiros e oficiais se dirigiam para os porões do navio. Como curioso, acompanhei-os até ao penúltimo porão, que já começava a ser inundado pela água. Um dos oficiais disse em inglês para o segundo comandante que a água entrava por uma das portas da carvoaria e que todos os compartimentos destinados ao carvão e à casa das máquinas estavam alagados. O segundo oficial subiu, rápido, à cabine do comando, e comunicou ao comandante o ocorrido.
- Foi justamente nesta ocasião que a estação radiotelegráfica do “Vestris” recebia o oferecimento de socorro de um outro paquete que passava ao largo. O comandante recusou o oferecimento. O “Vestris” já estava muito adernado. Felizmente, ainda não havia pânico a bordo. Quando recebemos ordem para aguardar a descida dos botes, já o “Vestris” era varrido inteiro pelas ondas do mar, que estava furioso. A chuva começava a cair fortíssima. Grandes relâmpagos cortavam o céu, o que dava a tudo um espectáculo medonho.
- O meu bote, que tinha o nº 13, foi o último a ser descido pelo lado em que o navio mais inclinado estava. Três outros que tentaram descer por aquele lado, foram tragados pelo redemoinho que se fez quando o paquete submergia. O “Vestris” levou pouco mais de um minuto para desaparecer da superfície das águas.
- Sei que os tripulantes, principalmente os marinheiros negros do “Vestris”, foram os mais prestativos. Vi o comandante passeando no seu convés. Estava sem o boné, os cabelos ao vento. Aguardava o seu último momento.
- Vi o paquete submergir com ele, que foi arremessado a grande distância. Ainda deu umas braçadas mas foi absorvido pelo torvelinho da água.
- Da embarcação em que fomos salvos, pude observar que alguns que nadavam, desapareciam subitamente. Guardo a impressão de que todos esses foram levados pelos tubarões, que vivem em cardumes naquela região, porque as águas do «Gulf Stream» - leia-se «corrente do golfo do México» - são muito quentes, e os peixes, como se sabe, procuram-nas durante o inverno.
- Sigo para Buenos Aires, onde me espera a minha família.

Demos e palavra a outros náufragos do “Vestris”, nas suas narrativas impressionantes:
- Não podem calcular os senhores, exclamou o alemão Franz Ruchert, as cenas tristes passadas por ocasião do arriar dos botes.
- Vi famílias inteiras morreram abraçadas. Os tubarões mataram muita gente. A água que estava muito quente, devido às fortes correntes do golfo, parecia um verdadeiro caldeirão que fervia. O sangue tonalizava toda a zona, dando à água uma cor pardacenta que, rapidamente, esmaecia ao estourar das ondas. A nota mais confortadora de todo o naufrágio foi dada por dois marinheiros negros, que em altas vozes diziam: «Tenham fé em Deus!».

O comerciante Joseph Towney declarou:
- Foi a maior desgraça que já vi na minha vida. E teria ainda maiores proporções se não houvesse muita calma por parte dos viajantes e da guarnição. Só mesmo a providência evitou que todos quantos viajaram no “Vestris” não fossem tragados pelo oceano.
- Os botes, estavam quase todos podres, não resistindo a grande carga. Quando o mar batia num bordo, os náufragos tombavam para o outro lado, o que facilitava o desequilíbrio e viravam. Quase sempre quando eram postos a flutuar pelos seus passageiros que nadavam, os flutuadores enchiam-se de água. As mulheres e crianças, na maioria dos casos, eram os náufragos que voltavam à embarcação. Os homens ficavam a nadar nas proximidades ou agarravam-se aos bordos dos botes. Quase sempre, passados alguns minutos, a embarcação virava novamente e atirava todos ao oceano, que os levava num turbilhão.
Cenas dantescas!
O sr. Herman Ruckert descreve assim as cenas tétricas e macabras que presenciou:
- Ele encontrava-se num destes três botes. A maioria dos seus companheiros eram crianças e senhoras. A embarcação estava superlotada e pouco faltava para que dentro em pouco naufragasse também. Os gritos das crianças e o choro convulsivo das mães que agarravam os seus filhos, fazia com que ele se condoesse da sorte destas pessoas. Quis então atirar-se à água, para, nadando, alcançar outro bote que estivesse mais vazio.
- Este seu intento não foi posto em execução devido às cenas que presenciou. Os outros botes estavam também superlotados e os que neles se encontravam efectuavam os actos mais bárbaros que se podem praticar.
- Quando algum náufrago que lutava com as ondas, deles se aproximava, eram repelidos a pontapés ou com pancadas de remo dadas pelos tripulantes dos barcos. Não poucos, já exaustos, atingidos por fortes pancadas submergiam para não mais voltar à superfície.

- O sr. William Burke narra algumas passagens do sinistro, tendo ocasião de falar na confusão e na desordem que se estabeleceram entre a tripulação, que não cumpria as ordens dos superiores que, impossibilitados de uma acção mais enérgica devido à situação crítica do momento, tinham que assistir ao desenrolar da tragédia marítima sem poder dar qualquer providência, que pudesse diminuir os seus efeitos. - - Devido a este facto o naufrágio do “Vestris” verificou-se mais depressa, sendo uma das suas causas a falta de fechamento das portas internas, que desta forma permitiam a entrada livre da água invadindo os porões e precipitando o momento fatal.
- Disse que, se o comando do “Vestris” tivesse desde o princípio solicitado socorro e não demorasse esta providência, o sinistro não tomaria tão grandes proporções e mesmo não viesse a dar-se a perda do navio. 

Uma figura curiosa, para não dizer extraordinária, que surge da catástrofe do “Vestris” é Fred Hansen, tripulante do navio que na hora de maior angústia, quando todos procuravam salvar-se, deixou-se ficar a bordo para tirar algumas chapas da sua máquina fotográfica. Depois, no último instante, guardou tudo num saco de lona, amarrou-o ao pescoço e, como se fizesse a coisa mais natural do mundo, atirou-se ao mar, nadando em vigorosas braçadas.
Texto de Raul Martins no Rio de Janeiro para o jornal “Comércio do Porto”, sábado, 22 de Dezembro de 1928

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