quarta-feira, 6 de julho de 2016

Construção naval


Querer é poder, mas…!
Por mera curiosidade dediquei faz já algum tempo, uma análise quanto aos meios e resultado obtido com a construção dos lugres de 5 mastros, de tipo idêntico à armação americana, nos estaleiros do Cabedelo, na Figueira da Foz.
Essa mesma curiosidade revelou-se através do anúncio, que encontrei publicado no jornal “O Comércio do Porto”, com data de 12 de Junho de 1919, que pela sua importância, tive o cuidado de guardar, voltando agora a transcrevê-lo, como segue:
O lugre “ Cabo da Roca “
Vai ser em breve lançado à água o maior
navio saído dos nossos estaleiros
Após construídos o “Cabo Mondego”, “Cabo Raso” e o “Cabo Espichel”, vai agora ser lançado à água, pela Sociedade Portuguesa de Navegação, o “Cabo da Roca”, o maior navio que se tem construído em estaleiros portugueses. Tem aproximadamente 3.500 toneladas e mede 80 metros de comprimento. É armado à americana, com 5 mastros, sendo o seu risco, nacional como o restante, do mestre construtor da sociedade Sr. António Bolais Mónica. O velame, poleame, ferragens, metais e trabalho de madeiras, foram também executados nas oficinas da Sociedade Portuguesa de Navegação. Quis assim provar esta empresa mais uma vez, que desde que haja boa vontade e patriotismo, nos podemos igualar em esforço e aptidões às outras nações que progridem.

Tanto quanto se sabe, a construção do lugre terá decorrido dentro da maior normalidade. Chegado o grande momento, i.e. no Domingo, 15 de Junho de 1919, cerca das 5 horas da tarde, teve lugar a cerimónia do bota-abaixo, que como se compreende, teve correspondência igual às consideráveis dimensões do novo navio.
Previsivelmente a imprensa esteve presente massivamente na cerimónia, pela novidade do americanizado tamanho e tonelagem do navio, cuja construção nasceu impregnada de boa vontade e patriotismo, igual em esforço, aptidão e tal qual como o que de melhor era feito nas outras nações, citando a notícia.
Por exemplo, a revista “Ilustração Portuguesa”, no seu Nº 697, datada de 30 de Junho, dedicou uma página completa ao brilhantismo do acontecimento, que a seguir se reproduz:


Características do lugre de 5 mastros “Cabo da Roca“
Armador: Sociedade Portuguesa de Navegação, Lisboa
Nº Oficial: N/s - Iic: N/s - Porto de registo: Figueira da Foz
Construtor: António Bolais Mónica, Cabedelo, F.Foz, 15.06.1919
Arqueação: Tab 1.184,00 tons - Tal 1.010,00 tons
Dimensões: Pp 74,86 mts - Boca 12,47 mts - Pontal 5,27 mts
Propulsão: À vela
Capitães embarcados: João Pereira Ramalheira (1919) e Manuel Pereira Ramalheira (1920)

Logo a seguir à publicação da notícia antes referida, também o correspondente do jornal Comércio do Porto viu a sua informação publicada, com pormenores que melhor ajuízam da efervescência da festa, produzida pelo bota-abaixo do lugre, retratando com rigor o rol de personalidades presentes no acto, e as várias ocorrências que foram decorrendo durante o fausto acontecimento. Na nota de reportagem sobre o assunto, constata-se o seguinte:
Nova construção
Figueira, 16 – Com a assistência de milhares de pessoas, que se apinhavam pelo Cabedelo, pontes do Mondego, avenida e daqui até ao forte de Santa Catarina, além das que em barco estacionavam pelo rio, muitas das quais vieram de fora propositadamente, efectuou-se ontem, às 5,15 horas da tarde, o bota-abaixo do “Cabo da Roca”, propriedade da Sociedade Portuguesa de Navegação e o maior navio até hoje construído em estaleiros portugueses, no dizer de pessoas autorizadas.
Um pouco antes e achando-se representadas as autoridades civis e militares, a imprensa, e quase todas as associações da terra e presentes muitas outras pessoas de distinção convidadas, foi o donairoso barco baptizado pela srª Dª. Elvira Beirão Paiva e Pena e pelo capitão deste porto, sr. Alberto Carvalho Jacques, capitão-tenente da armada portuguesa, fazendo-se nesta ocasião muitos e entusiásticos brindes, que eram correspondidos efusivamente.
Todas as manobras foram dirigidas pelo sr. Alfredo Soveral Martins, ex-capitão deste porto, tendo cortado o cabo da bimbarra o sr. Artur Augusto de Oliveira, administrador-delegado da sociedade construtora e um cavalheiro de incontestável mérito, a quem a Figueira deve já uma grande parte do seu movimento, da sua vida.
À noite, no Jardim de Inverno do Casino Peninsular, foi servido um opíparo jantar a mais de 200 convidados, oferecido pela sociedade construtora, e ao qual assistiram muitos cavalheiros, alguns vindos de fora, como os srs. coronel Bessa, capitão Mendes do Amaral, dr. Manuel de Vasconcelos, Francisco Gonçalves, Carlos Ferrão, Caldeira Caldeiron, Frederico Batalha Ribeiro, e Gastão Rego, de Lisboa; Herculano Beirão e dr. Sobral Martins, de Viseu, e Henrique Ruas, distinto engenheiro de serviços fluviais, que há tempos se encontra na Figueira.
À sobremesa foram levantados muitos brindes, entre eles, do sr. dr. Cerqueira da Rocha, em nome da câmara municipal, de que é mui digno presidente, ao sr. Artur Augusto de Oliveira, enaltecendo-lhe as suas qualidades de iniciativa e de trabalho; do sr. dr. Rodrigo Galvão em nome da associação comercial; do sr. Manuel de Vasconcelos, em seu nome e de outros convidados, sendo todos muito correspondidos.
No fim do jantar, que terminou à 1,30 de hoje, foi improvisado um baile, em que tomaram parte muitas senhoras daqui e de fora, que durou até às 5,30 horas da manhã.
Das galerias assistiram muitas senhoras e durante o jantar tocou no átrio do Casino a excelente filarmónica Figueirense.
(In jornal “Comércio do Porto”, terça-feira, 1de Julho de 1919)

Porque foi importante averiguar as condições para navegar num navio com estas dimensões, todo ele construído em madeira, é no mínimo plausível que tenha navegado entre os anos de 1919 a 1920, sob o comando de oficiais da marinha mercante de reconhecida competência.
Certamente isto até ficar provado que o lugre, por falta de materiais que lhe garantissem o reforço adequado das estruturas, foi perdendo consistência, até terem chegado à conclusão, que as condições de inavegabilidade apresentadas, podiam dar origem a um sinistro de dimensões inimagináveis, como lamentavelmente se verificou com outros navios, nas mesmas circunstâncias.
Como resultado, que se apresenta idêntico a outras construções realizadas no país, sensivelmente nesta mesma época, completamente irrealistas e desproporcionadas, a solução encontrada foi amarrar o navio num dos portos nacionais, ficando à ordem do proprietário até Março de 1922, altura em que foi vendido a um armador de origem cubana, registando-o em Havana.
Talvez o lugre tenha ainda passeado a beleza do seu aspecto exterior pelos mares da América do Sul, mas não nos foi possível encontrar qualquer registo de actividade posterior, pelo que desde então não resta outra alternativa senão considerá-lo sem rasto.

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