A viagem da corveta “Rainha de Portugal”
1ª Parte
A notícia do grande perigo que correu a corveta “Rainha de Portugal”, na sua viagem para Moçambique, onde vai reforçar a divisão naval ali estacionada, para o bloqueio da costa de Zanzibar, foi recebida em Lisboa com o mais profundo sentimento, pensando-se até, ao princípio, que o navio tinha soçobrado, no meio do furioso temporal que o assaltou, próximo de Port-Said.
Essa primeira impressão felizmente desvaneceu-se, em vista de posteriores notícias tranquilizadoras, de que o navio triunfara da fúria dos elementos, sem perda de vidas, mas com grossa avaria.
Uma carta que recebemos de Port-Said, escrita de bordo da corveta “Rainha de Portugal”, por um nosso delicado correspondente, descreve com todas as particularidades, o perigo eminente que este navio correu durante quatro dias de temporal desfeito, em que por mais de uma vez esteve prestes a afundar-se, e com ele toda a guarnição, perecendo no meio das encapeladas ondas do Oceano, sem esperança de socorro.
Esta carta, que em seguida publicamos, deu motivo ao nosso colaborador artístico, sr. José Pardal, a compor com o seu lápis imaginoso, o desenho que reproduzimos na gravura da página e que representa a corveta “Rainha de Portugal” em luta com a tempestade, no momento em que a força do mar lhe partiu o gurupés arrastando todo o aparelho correspondente.
Cópia da gravura atrás citada, (a) Oliveira e José Pardal
É um quadro de sensação, da mais palpitante actualidade, e que pertence à história da nossa marinha, a qual mais uma vez provou que na pátria dos Gamas ainda não se extinguiu a raça dos ousados marinheiros, que há quatro séculos dobraram o Cabo das Tormentas.
Eis a carta:
“Port-Said, 13 de Dezembro de 1888 – Escrevo-lhe ainda sob a impressão da formidável tempestade que nos assaltou próximo deste porto, parecendo-me ainda fortemente abalado pelo jogo extraordinário da corveta, nos dias que procederam a nossa entrada aqui. O tempo não me sobra para lhe descrever todos os perigos que nos rodearam desde a nossa saída de Malta até a entrada neste porto.
Estivemos quatro dias em Malta para refrescar e meter carvão, e de lá largamos no dia 5 pelas 7 horas da manhã, seguindo nas nossas águas a canhoneira “Tâmega” que fôra primeiro a Tanger e que viera reunir-se-nos.
Pouco depois de sairmos de Malta, a “Tâmega” foi ficando para a popa de corveta, e às 3 horas da tarde tinha-se perdido da nossa vista, porque o seu andamento era inferior ao do nosso navio.
Contávamos chegar a Port-Said na tarde do dia 8, ou na manhã do dia 9, em boas condições de viagem, mas não aconteceu assim, porque pela tarde do dia 6 principiou a levantar-se vento rijo de Norte, que foi crescendo cada vez mais e de modo que ao sol-posto do dia 8, o mar levantava-se em grossos vagalhões ameaçando tragar o navio.
A tempestade desencadeou-se com violência, e como o mar batia o navio de través, o comandante mandou aproar à vaga, desviando-se o navio do rumo que levava, e aumentando o balanço de popa à proa extraordinariamente.
Durante a noite redobrou a tempestade e com ela a fúria do mar.
Por muitas vezes vimos a corveta prestes a afundar-se, tragada pelas enormes ondas que a investiam pela proa, mas apesar da horrível situação em que nos achávamos, ninguém a bordo perdeu o ânimo, e o intrépido comandante, o nosso capitão-tenente Francisco de Paula Teves e o imediato Carlos Leopoldo dos Santos Diniz, firmes e serenos no seu posto de comando, dirigiam as manobras com inexcedível acerto, lutando corajosamente com o perigo que nos cercava.
O dia 9 não apareceu mais animador que a noite antecedente. O céu carregado de nuvens não deixava ver um único raio de sol; o barómetro baixara consideravelmente, tirando-nos toda a esperança de uma rápida evolução do tempo para melhor, e o mar crescia cada vez mais alteroso.
Entretanto os dignos oficiais comandantes não desamparavam o seu posto, animando com o seu exemplo a guarnição do navio composta de 162 homens.
Pelas 10 horas da manhã uma enorme vaga que surpreendeu o navio de vante, sem que fosse possível orçar, partiu-lhe quase todo o aparelho da proa levando-lhe o pau da bujarrona, o da giba, sevadeiras e pica-peixe, que apenas ficaram suspensos por alguns cabos.
Este desastre podia arrastar consigo para o abismo a todo o navio se não fôra a rápida resolução do comandante que logo gritou: – Às machadinhas.
Num momento, viu-se sobre o castelo da proa parte da guarnição do navio armada de machadinhas, enquanto o comandante mandava parar a máquina, para que os destroços do desastre não se envolvessem no hélice e aumentassem a avaria já sofrida.
Apenas o comandante deu a voz de – Corta; todas as machadinhas, como se fossem uma só, caíram sobre os cabos que prendiam ainda o navio o aparelho de proa, e este foi levado na crista das ondas por bombordo deixando o navio desenrascado.
Estava conjurado aquele perigo, mas o mar continuava sem dar tréguas, crescendo as ondas cada vez com mais fúria, produzindo novos estragos a bordo.
Uma vaga mais valente que galgou a amurada, veio partir as fundas dos escaleres inçados à proa escapando milagrosamente o escaler a vapor de ir para o meio do encapelado mar.
Teve de se lhe passar uma amarra, assim como foi preciso passar talhas aos rodízios a meia-nau por serem insuficientes as peias que tinham, em vista do jogo do navio.
Defender destes perigos constantes constituiu um trabalho sem descanso durante mais de 40 horas, principiando pelos oficiais comandantes, que nunca desampararam o seu posto revezando-se apenas por alguns momentos para tomarem alimento, até ao mais simples moço, todos lidavam com presteza no meio da enorme barafunda que ia a bordo.
Pouco depois das seis horas da tarde partiu-se o cabo do leme, sendo preciso passar os teques à cana do leme para se poder governar como Deus era servido. Faltava-nos mais este transtorno para aumentar o perigo em que nos achávamos, mas graças ainda ao sangue frio do nosso comandante e aos seus muitos conhecimentos práticos, coadjuvados pela experiência e boa vontade do mestre João Ventura de Oliveira, conseguiu-se gornir um cabo novo à roda do leme, e portanto dominar-se melhor o governo da corveta.
A noite passou-se como os dias anteriores, no meio do vendaval, sem podermos descansar sequer um momento, mas felizmente, pela madrugada, principiou a abrandar um pouco o vento o que nos deu alguma esperança, que se foi convertendo em realidade pelo dia adiante, abonançando o tempo e permitindo, ainda que com grande risco, o navio tomar o rumo de SE (sudoeste) que era o do porto que demandávamos.
Assim navegamos durante o dia 10 e dia 11, com vento rijo pelo través e a vaga à popa, o que era para nós uma feliz bonança depois do que tínhamos sofrido.
Ás 9 horas da noite de 11 descobrimos um farol que nos pareceu ser de terra, mas que depois reconhecemos ser de um navio; achando-nos porém, já perto do porto de chegada, e estando o mar bonançoso, o comandante mandou parar a máquina, era uma hora da noite, esperando pela madrugada para a corveta entrar em Port-Said.
Efectivamente pelas 10 horas da manhã, fundeava o nosso navio dentro do porto e aqui encontramos a canhoneira “Tâmega”, que tinha entrado na véspera com avaria nos paus das cevadeiras, que o mar lhes levou e alguns vidros das escotilhas de ré partidas.
Não sei como lhes tenho escrito, no meio da confusão que me parece ainda estar, impressionado pela horrível cena a que assisti pela primeira vez na minha vida, mas os numerosos leitores do Ocidente que desculpem o mal alinhavado destas linhas, que só o desejo de lhes dar uma notícia que se me afigura interessante e desusada me levou a escreve-la.
Vamos reparar as avarias mais importantes para depois seguirmos para Adem. Estimarei não ter que lhe noticiar mais algum contratempo deste malfadado navio, e assim me despeço até Moçambique de onde espero escrever-lhe. (a) Z"
Reis, A. Estácio dos, Os Navios d’O Occidente, Edições Culturais de Marinha, Gradiva Publicações, Lda., Lisboa, 2001, com o relato transcrito do artigo publicado na revista “O Ocidente”, Nº 362, de 11 de Janeiro de 1889
Eis a carta:
“Port-Said, 13 de Dezembro de 1888 – Escrevo-lhe ainda sob a impressão da formidável tempestade que nos assaltou próximo deste porto, parecendo-me ainda fortemente abalado pelo jogo extraordinário da corveta, nos dias que procederam a nossa entrada aqui. O tempo não me sobra para lhe descrever todos os perigos que nos rodearam desde a nossa saída de Malta até a entrada neste porto.
Estivemos quatro dias em Malta para refrescar e meter carvão, e de lá largamos no dia 5 pelas 7 horas da manhã, seguindo nas nossas águas a canhoneira “Tâmega” que fôra primeiro a Tanger e que viera reunir-se-nos.
Pouco depois de sairmos de Malta, a “Tâmega” foi ficando para a popa de corveta, e às 3 horas da tarde tinha-se perdido da nossa vista, porque o seu andamento era inferior ao do nosso navio.
Contávamos chegar a Port-Said na tarde do dia 8, ou na manhã do dia 9, em boas condições de viagem, mas não aconteceu assim, porque pela tarde do dia 6 principiou a levantar-se vento rijo de Norte, que foi crescendo cada vez mais e de modo que ao sol-posto do dia 8, o mar levantava-se em grossos vagalhões ameaçando tragar o navio.
A tempestade desencadeou-se com violência, e como o mar batia o navio de través, o comandante mandou aproar à vaga, desviando-se o navio do rumo que levava, e aumentando o balanço de popa à proa extraordinariamente.
Durante a noite redobrou a tempestade e com ela a fúria do mar.
Por muitas vezes vimos a corveta prestes a afundar-se, tragada pelas enormes ondas que a investiam pela proa, mas apesar da horrível situação em que nos achávamos, ninguém a bordo perdeu o ânimo, e o intrépido comandante, o nosso capitão-tenente Francisco de Paula Teves e o imediato Carlos Leopoldo dos Santos Diniz, firmes e serenos no seu posto de comando, dirigiam as manobras com inexcedível acerto, lutando corajosamente com o perigo que nos cercava.
O dia 9 não apareceu mais animador que a noite antecedente. O céu carregado de nuvens não deixava ver um único raio de sol; o barómetro baixara consideravelmente, tirando-nos toda a esperança de uma rápida evolução do tempo para melhor, e o mar crescia cada vez mais alteroso.
Entretanto os dignos oficiais comandantes não desamparavam o seu posto, animando com o seu exemplo a guarnição do navio composta de 162 homens.
Pelas 10 horas da manhã uma enorme vaga que surpreendeu o navio de vante, sem que fosse possível orçar, partiu-lhe quase todo o aparelho da proa levando-lhe o pau da bujarrona, o da giba, sevadeiras e pica-peixe, que apenas ficaram suspensos por alguns cabos.
Este desastre podia arrastar consigo para o abismo a todo o navio se não fôra a rápida resolução do comandante que logo gritou: – Às machadinhas.
Num momento, viu-se sobre o castelo da proa parte da guarnição do navio armada de machadinhas, enquanto o comandante mandava parar a máquina, para que os destroços do desastre não se envolvessem no hélice e aumentassem a avaria já sofrida.
Apenas o comandante deu a voz de – Corta; todas as machadinhas, como se fossem uma só, caíram sobre os cabos que prendiam ainda o navio o aparelho de proa, e este foi levado na crista das ondas por bombordo deixando o navio desenrascado.
Estava conjurado aquele perigo, mas o mar continuava sem dar tréguas, crescendo as ondas cada vez com mais fúria, produzindo novos estragos a bordo.
Uma vaga mais valente que galgou a amurada, veio partir as fundas dos escaleres inçados à proa escapando milagrosamente o escaler a vapor de ir para o meio do encapelado mar.
Teve de se lhe passar uma amarra, assim como foi preciso passar talhas aos rodízios a meia-nau por serem insuficientes as peias que tinham, em vista do jogo do navio.
Defender destes perigos constantes constituiu um trabalho sem descanso durante mais de 40 horas, principiando pelos oficiais comandantes, que nunca desampararam o seu posto revezando-se apenas por alguns momentos para tomarem alimento, até ao mais simples moço, todos lidavam com presteza no meio da enorme barafunda que ia a bordo.
Pouco depois das seis horas da tarde partiu-se o cabo do leme, sendo preciso passar os teques à cana do leme para se poder governar como Deus era servido. Faltava-nos mais este transtorno para aumentar o perigo em que nos achávamos, mas graças ainda ao sangue frio do nosso comandante e aos seus muitos conhecimentos práticos, coadjuvados pela experiência e boa vontade do mestre João Ventura de Oliveira, conseguiu-se gornir um cabo novo à roda do leme, e portanto dominar-se melhor o governo da corveta.
A noite passou-se como os dias anteriores, no meio do vendaval, sem podermos descansar sequer um momento, mas felizmente, pela madrugada, principiou a abrandar um pouco o vento o que nos deu alguma esperança, que se foi convertendo em realidade pelo dia adiante, abonançando o tempo e permitindo, ainda que com grande risco, o navio tomar o rumo de SE (sudoeste) que era o do porto que demandávamos.
Assim navegamos durante o dia 10 e dia 11, com vento rijo pelo través e a vaga à popa, o que era para nós uma feliz bonança depois do que tínhamos sofrido.
Ás 9 horas da noite de 11 descobrimos um farol que nos pareceu ser de terra, mas que depois reconhecemos ser de um navio; achando-nos porém, já perto do porto de chegada, e estando o mar bonançoso, o comandante mandou parar a máquina, era uma hora da noite, esperando pela madrugada para a corveta entrar em Port-Said.
Efectivamente pelas 10 horas da manhã, fundeava o nosso navio dentro do porto e aqui encontramos a canhoneira “Tâmega”, que tinha entrado na véspera com avaria nos paus das cevadeiras, que o mar lhes levou e alguns vidros das escotilhas de ré partidas.
Não sei como lhes tenho escrito, no meio da confusão que me parece ainda estar, impressionado pela horrível cena a que assisti pela primeira vez na minha vida, mas os numerosos leitores do Ocidente que desculpem o mal alinhavado destas linhas, que só o desejo de lhes dar uma notícia que se me afigura interessante e desusada me levou a escreve-la.
Vamos reparar as avarias mais importantes para depois seguirmos para Adem. Estimarei não ter que lhe noticiar mais algum contratempo deste malfadado navio, e assim me despeço até Moçambique de onde espero escrever-lhe. (a) Z"
Reis, A. Estácio dos, Os Navios d’O Occidente, Edições Culturais de Marinha, Gradiva Publicações, Lda., Lisboa, 2001, com o relato transcrito do artigo publicado na revista “O Ocidente”, Nº 362, de 11 de Janeiro de 1889
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