70 anos sobre o ataque e o afundamento do vapor “Baependy”
1ª Parte
Nos primeiros anos do conflito armado entre os países aliados e as nações do eixo Axis Powers (Alemanha, Itália e Japão), que viria a ficar conhecido na história como a IIª Grande Guerra Mundial, uns tantos outros países optaram por uma neutralidade encapotada, caso do Brasil, que manteve sempre uma relação próxima ao governo dos Estados Unidos.
A guerra revelou-se, como é natural acontecer, para ambos os países, numa excelente oportunidade de negócio. Daí que a Alemanha nazi tendo conhecimento, que o Brasil vendia matérias essenciais à indústria americana de armamento e munições, originou uma situação de desconforto entre os respectivos governantes. Não é portanto fortuito, que esse mal-estar desse lugar a represálias, tendo a marinha Alemã realizado diversos ataques levados a efeito por submarinos, afundando sem aviso prévio navios brasileiros de comércio.
Esses ataques dos submarinos, colocados nas proximidades do litoral brasileiro, começaram durante o ano de 1942, tendo afundado uma razoável quantidade de navios. Face ao número crescente de vítimas, o Departamento de Imprensa e Propaganda do Brasil, não teve alternativa senão emitir um comunicado, a 18 de Agosto de 1942, publicado pela imprensa, com o seguinte teor:
"Pela primeira vez embarcações brasileiras, servindo ao tráfego de nossas costas no transporte de passageiros e cargas de um estado para o outro, sofreram ataques de submarinos do Eixo (…) O inominável atentado contra indefesas unidades da marinha mercante de um país pacífico, cuja vida se desenrola à margem e distante do teatro de guerra, foi praticado com desconhecimento dos mais elementares princípios do direito e da humanidade. Nosso país, dentro de sua tradição, não se atemoriza diante de tais brutalidades e o governo examina quais as medidas a tomar em face do ocorrido. Deve o povo manter-se calmo e confiante, na certeza de que não ficarão impunes os crimes praticados contra a vida e os bens dos brasileiros”.
Imagem do vapor "Baependy", tirada entre 1906 e 1924,
identificado por uma chaminé preta, cortada com uma
faixa branca, comum aos navios da empresa, utilizada nos
transportes a navegar para do fora do Brasil, nesse período.
Foto de autor desconhecido
identificado por uma chaminé preta, cortada com uma
faixa branca, comum aos navios da empresa, utilizada nos
transportes a navegar para do fora do Brasil, nesse período.
Foto de autor desconhecido
Em função da data do comunicado, é fácil deduzir do calor da revolta popular, motivada pelo afundamento dos navios “Aníbal Benévolo”, “Itagibá”, “Arará”, barcaça “Jacira”, e muito principalmente do vapor “Baependy”, devido ao alargado número de vítimas por afogamento, parte das quais militares do 7º Regimento de Artilharia, que se encontravam sob o comando do Major Landerico Lima, em transferência de efectivos do Rio de Janeiro para Manaus.
Mapa do Google onde se assinala o local aproximado
do torpedeamento e naufrágio, com uma cruz.
do torpedeamento e naufrágio, com uma cruz.
Para melhor compreensão do sucedido, recorremos ao relato do torpedeamento e às peripécias, que se sucederam ao afundamento, possibilitando o salvamento de 28 dos 36 sobreviventes do navio. É um texto assinado pelo Capitão de Artilharia Lauro Moutinho dos Reis, publicado pelas Seleções do Readers Digest, edição brasileira, com data de Março de 1943.
"Deixamos o porto de Salvador, Baía, às sete horas da manhã, rumando para o Norte. Do Rio de Janeiro até ali o mar tinha estado calmo. Agora apresentava-se picado, espumoso, com fortes marolas, e o velho Baependy arrastava-se, moroso, balançando desagradavelmente. O vapor ia repleto – umas trezentas e cinquenta pessoas, incluindo a tripulação e uma unidade do Exército, cujos componentes – oficiais e soldados – iam acompanhados de suas famílias, algumas com muitas crianças.
Como esse dia – 15 de Agosto – era o aniversário natalício do comissário de bordo, um excelente homem, o jantar foi festivo, a orquestra tocou animadamente e a alegria reinou a bordo até bastante tarde. Enquanto no salão se dançava, lá fora na popa, os soldados, - quase todos cariocas – trepados em canhões e grandes caixas, reunidos em grupos, tocando pandeiros e batendo em latas, cantavam seus sambas à moda do morro…
Noite fechada, as luzes todas apagadas, navegávamos a umas 20 milhas da costa, quando de súbito um tremendo estampido sacode violentamente o velho barco. Quebram-se as vidraças; o madeiramento range, estala, racha, e, arremessados por forças invisíveis, voam estilhaços de vidro e madeira para todos os lados. Caem as primeiras vítimas, e há diversas pessoas com o rosto sangrando, devido a ferimentos provocados por fragmentos de vidro.
As máquinas param, o vapor altera o rumo abruptamente, e somos jogados pela inércia, com força, para a frente. O primeiro instante deixa todas as pessoas imóveis de espanto, a respiração suspensa, as fisionomias pálidas e angustiadas… Não há gritos; nenhum pânico. Percebe-se em cada um o esforço mental para entender o ocorrido, para buscar uma solução, pressentindo a gravidade do terrível momento…
Estou no vestíbulo, de onde partem as escadas para o deck superior e para os camarotes de baixo. Tomado de surpresa, tenho imediata intuição do sucedido: fomos torpedeados! Logo a seguir, ouço o apito surdo do navio, pedindo socorro… O Baependi começa a adornar. Corro ao meu camarote ali perto, empurro a porta, que felizmente não ficou emperrada, apanho rápido o meu salva-vidas, e saio.
Há muitas pessoas no vestíbulo; umas, principalmente mulheres e crianças, paradas, como se esperassem que uma providencia alheia as salve; outras caminhando febrilmente, na direcção em que julgam poder encontrar salvamento. O navio adorna mais e mais; só podemos andar, agora, agarrados às paredes. Alguns descem com dificuldade as escadas para os camarotes inferiores, em busca do salva-vidas, ou para se reunir às suas famílias; infelizmente para não voltarem mais… Ficarão na companhia dos que nem sequer conseguiram sair dali.
Vejo tudo isso de relance, e, ainda enfiando o cinto salva-vidas, subo a escada para o deck de cima, em busca da minha baleeira; agarrado ao corrimão, chocando-me com pessoas que descem, aturdidas, estou quase no alto, quando um segundo torpedo explode, abalando fragorosamente todo o navio. O corrimão, ao qual me agarrava, fica feito em frangalhos, e rolo na escada, de costas, aos trambolhões, até à porta do refeitório, de onde saíra. Entre o primeiro e o segundo torpedo, não decorreram mais de trinta segundos.
As luzes apagaram-se; esbarramos uns nos outros, desorientados, no meio de profunda escuridão. O navio adorna brutalmente, já sendo impossível, agora, andar de pé. O segundo torpedo foi o tiro de misericórdia. O Baependy agoniza… Percebo que o afundamento vai ser rápido. Esforço-me por sair do interior. Um cheiro sufocante e enjoativo, proveniente da explosão, invade tudo.
Tateando, com grande esforço consigo agarrar-me à escada, e, de rastos, segurando-me nas saliências, vou subindo devagar. Na escuridão, apenas distingo, numa pequena claridade vinda de fora, o contorno de uma porta, ao fim da escada que tento subir. É preciso atingi-la a todo o custo, porque senão afundar-me-ei dentro do navio. Mais um esforço, e consigo chegar.
O navio, nesse momento, está quase de lado: o que era parede passou a ser chão. Atravesso aquela porta com os movimentos de quem, pela abertura do teto, passa o forro de uma casa. Alcanço a baleeira em frente à porta. Presa aos turcos, num emaranhado de cordas, alguns marinheiros tentam soltá-la. Não trocamos palavra. Começo a ajudá-los, procurando desenvencilhar as cordas, febrilmente. Mas é inútil: O Baependy continuou a fundar-se vertiginosamente! As ondas revoltas quase nos atingem, e ouço, bem perto, os gritos pungentes dos que já lutam com elas.
Compreendo, então, que devo atirar-me imediatamente ao mar, para não ser arrastado pelo turbilhão que faria a massa do navio a submergir-se. Mas já é tarde demais porque, estando ele quase horizontal, se eu der um salto, cairei, conforme o lado, sobre o casco ou sobre o convés. Ouço ainda o apito tenebroso do vapor, um apito surdo e contínuo, agonizante, de estertor.
As águas envolvem-me violentamente, jogando-me de encontro a uma parede. Depois… sinto que mergulhamos, arrastados pelo navio. Penso, conformado, na morte: deste mergulho não voltarei, certamente! Não perco o raciocínio, nem me deixo dominar pelo desespero. Antes, conservo-me calmo, resignado, enfrentando o desfecho da vida. Continuo a mergulhar, a mergulhar… Quantos metros? Nem sei! Sinto nos ouvidos o barulho forte e característico das bolhas de ar, numa escala cromática extravagante, que vai num crescendo de grave para o agudo, à proporção que me aprofundo nas águas… A falta de ar já me tortura, e reparo que vou voltando. Mas sou, então, violentamente imprensado entre dois fardos volumosos, e fico com a sensação de que vou ficar esmagado. Inexplicavelmente, não sinto nenhuma dor. Por felicidade, fico de novo livre, e continuo a voltar aos trancos, à superfície, recebendo pancadas pelo corpo, agora mais rápido, - cada vez mais rápido – até que, de repente, dou um salto, saindo-me fora de água o tronco todo, tal o empuxo."
"Deixamos o porto de Salvador, Baía, às sete horas da manhã, rumando para o Norte. Do Rio de Janeiro até ali o mar tinha estado calmo. Agora apresentava-se picado, espumoso, com fortes marolas, e o velho Baependy arrastava-se, moroso, balançando desagradavelmente. O vapor ia repleto – umas trezentas e cinquenta pessoas, incluindo a tripulação e uma unidade do Exército, cujos componentes – oficiais e soldados – iam acompanhados de suas famílias, algumas com muitas crianças.
Como esse dia – 15 de Agosto – era o aniversário natalício do comissário de bordo, um excelente homem, o jantar foi festivo, a orquestra tocou animadamente e a alegria reinou a bordo até bastante tarde. Enquanto no salão se dançava, lá fora na popa, os soldados, - quase todos cariocas – trepados em canhões e grandes caixas, reunidos em grupos, tocando pandeiros e batendo em latas, cantavam seus sambas à moda do morro…
Noite fechada, as luzes todas apagadas, navegávamos a umas 20 milhas da costa, quando de súbito um tremendo estampido sacode violentamente o velho barco. Quebram-se as vidraças; o madeiramento range, estala, racha, e, arremessados por forças invisíveis, voam estilhaços de vidro e madeira para todos os lados. Caem as primeiras vítimas, e há diversas pessoas com o rosto sangrando, devido a ferimentos provocados por fragmentos de vidro.
As máquinas param, o vapor altera o rumo abruptamente, e somos jogados pela inércia, com força, para a frente. O primeiro instante deixa todas as pessoas imóveis de espanto, a respiração suspensa, as fisionomias pálidas e angustiadas… Não há gritos; nenhum pânico. Percebe-se em cada um o esforço mental para entender o ocorrido, para buscar uma solução, pressentindo a gravidade do terrível momento…
Estou no vestíbulo, de onde partem as escadas para o deck superior e para os camarotes de baixo. Tomado de surpresa, tenho imediata intuição do sucedido: fomos torpedeados! Logo a seguir, ouço o apito surdo do navio, pedindo socorro… O Baependi começa a adornar. Corro ao meu camarote ali perto, empurro a porta, que felizmente não ficou emperrada, apanho rápido o meu salva-vidas, e saio.
Há muitas pessoas no vestíbulo; umas, principalmente mulheres e crianças, paradas, como se esperassem que uma providencia alheia as salve; outras caminhando febrilmente, na direcção em que julgam poder encontrar salvamento. O navio adorna mais e mais; só podemos andar, agora, agarrados às paredes. Alguns descem com dificuldade as escadas para os camarotes inferiores, em busca do salva-vidas, ou para se reunir às suas famílias; infelizmente para não voltarem mais… Ficarão na companhia dos que nem sequer conseguiram sair dali.
Vejo tudo isso de relance, e, ainda enfiando o cinto salva-vidas, subo a escada para o deck de cima, em busca da minha baleeira; agarrado ao corrimão, chocando-me com pessoas que descem, aturdidas, estou quase no alto, quando um segundo torpedo explode, abalando fragorosamente todo o navio. O corrimão, ao qual me agarrava, fica feito em frangalhos, e rolo na escada, de costas, aos trambolhões, até à porta do refeitório, de onde saíra. Entre o primeiro e o segundo torpedo, não decorreram mais de trinta segundos.
As luzes apagaram-se; esbarramos uns nos outros, desorientados, no meio de profunda escuridão. O navio adorna brutalmente, já sendo impossível, agora, andar de pé. O segundo torpedo foi o tiro de misericórdia. O Baependy agoniza… Percebo que o afundamento vai ser rápido. Esforço-me por sair do interior. Um cheiro sufocante e enjoativo, proveniente da explosão, invade tudo.
Tateando, com grande esforço consigo agarrar-me à escada, e, de rastos, segurando-me nas saliências, vou subindo devagar. Na escuridão, apenas distingo, numa pequena claridade vinda de fora, o contorno de uma porta, ao fim da escada que tento subir. É preciso atingi-la a todo o custo, porque senão afundar-me-ei dentro do navio. Mais um esforço, e consigo chegar.
O navio, nesse momento, está quase de lado: o que era parede passou a ser chão. Atravesso aquela porta com os movimentos de quem, pela abertura do teto, passa o forro de uma casa. Alcanço a baleeira em frente à porta. Presa aos turcos, num emaranhado de cordas, alguns marinheiros tentam soltá-la. Não trocamos palavra. Começo a ajudá-los, procurando desenvencilhar as cordas, febrilmente. Mas é inútil: O Baependy continuou a fundar-se vertiginosamente! As ondas revoltas quase nos atingem, e ouço, bem perto, os gritos pungentes dos que já lutam com elas.
Compreendo, então, que devo atirar-me imediatamente ao mar, para não ser arrastado pelo turbilhão que faria a massa do navio a submergir-se. Mas já é tarde demais porque, estando ele quase horizontal, se eu der um salto, cairei, conforme o lado, sobre o casco ou sobre o convés. Ouço ainda o apito tenebroso do vapor, um apito surdo e contínuo, agonizante, de estertor.
As águas envolvem-me violentamente, jogando-me de encontro a uma parede. Depois… sinto que mergulhamos, arrastados pelo navio. Penso, conformado, na morte: deste mergulho não voltarei, certamente! Não perco o raciocínio, nem me deixo dominar pelo desespero. Antes, conservo-me calmo, resignado, enfrentando o desfecho da vida. Continuo a mergulhar, a mergulhar… Quantos metros? Nem sei! Sinto nos ouvidos o barulho forte e característico das bolhas de ar, numa escala cromática extravagante, que vai num crescendo de grave para o agudo, à proporção que me aprofundo nas águas… A falta de ar já me tortura, e reparo que vou voltando. Mas sou, então, violentamente imprensado entre dois fardos volumosos, e fico com a sensação de que vou ficar esmagado. Inexplicavelmente, não sinto nenhuma dor. Por felicidade, fico de novo livre, e continuo a voltar aos trancos, à superfície, recebendo pancadas pelo corpo, agora mais rápido, - cada vez mais rápido – até que, de repente, dou um salto, saindo-me fora de água o tronco todo, tal o empuxo."
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