terça-feira, 19 de janeiro de 2016

História trágico-marítima (CLXXVII)


O afundamento do lugre “Douro”

A guerra submarina
Navio português metido no fundo
Lisboa, 9 - Um navio português foi torpedeado e metido no fundo na costa de Inglaterra por um submarino alemão, sabendo-se apenas que se trata de uma escuna com o nome “Douro”, desconhecendo-se por enquanto a que praça pertence. A tripulação, como foi noticiado, desembarcou em Swansea e vai ser repatriada pelo nosso consulado em Cardiff.
(In jornal “Comércio do Porto”, sábado, 10 de Abril de 1915)

O lugre “Douro”
O lugre “Douro”, que saiu de Cardiff para o Porto em 31 de Março findo, pertencia à Parceria Marítima Douro, de que é gerente o sr. José Joaquim Gouveia, e empregava-se ordinariamente na pesca do bacalhau.
Foi por mero acidente que o navio empreendera a sua última viagem, carregando em Viana do Castelo toros de pinheiro que transportou para aquele porto inglês, de onde trazia um carregamento de carvão, na importância avaliada em 3 a 4 contos de reis, consignado à casa Vareta & Comandita.
O sr. José Joaquim Gouveia recebeu até esta data, apenas dois telegramas em que era noticiado o naufrágio do navio e a salvação da tripulação desembarcada em Swansea, onde espera embarcar para voltar ao Porto.
(In jornal “Comércio do Porto”, Domingo, 11 de Abril de 1915)

Características do lugre “Douro”
Nº Oficial: A-165 - Iic: H.F.M.G. - Porto de registo: Porto
Armador: Parceria Marítima “Douro”, Porto
Construtor: António Dias dos Santos, Fão, 10.10.1911
Arqueação: Tab 248,08 tons - Tal 168,13 tons
Dimensões: Pp 37,70 mts - Boca 8,55 mts - Pontal 3,68 mts
Propulsão: À vela
Equipagem: 9 tripulantes
Capitães embarcados: Vitorino Fernandes Mano (1912), António Gonçalves Vilão (1913 e 1914) e José São Marcos (1915)

O lugre “Douro
Conta, na sua linguagem pitoresca, o capitão do lugre
“Douro” como o navio foi torpedeado pelos alemães.
Uma noite tormentosa sobre as águas do canal de Bristol
O capitão São Marcos
O lugre “Douro”, que foi ao fundo no canal de Bristol, torpedeado por um submarino alemão, era um navio pequeno, português, navegando sobre as vagas alterosas do mar…
Um torpedo traiçoeiro atingiu-o no seu costado e em pouco tempo a frágil embarcação submergia-se, salvando-se a custo a sua tripulação.
Os nossos corações estremeceram com esse sentimento de solidariedade que une todos os filhos da mesma pátria, habituados à mesma doce língua, a embriagarem os olhos com o mesmo sol e a beleza do mesmo céu azul.
Era um sentimento de receio, de piedade, de horror por esses portugueses perdidos ao longe, no meio das vagas, pensando talvez na aldeia florida, na velhinha que os espera, desfiando pelos seus dedos trémulos o rosário de contas grossas.
Pois ontem, tivemos uma agradável surpresa. Entra-nos, no momento febril desta lufa-lufa de jornal, desta viva grilheta de todas as horas, pela redação dentro, o sr. José São Marcos, capitão do lugre “Douro”, do navio português torpedeado. Figura simpática, de fisionomia bronzeada de homem que nasceu embalado ao ritmo suave e cadente das ondas, o capitão São Marcos conta-nos, na sua linguagem pitoresca de marítimo, que por vezes tem o som gutural do grito rouco das gaivotas, a sua odisseia, que escutamos enternecidos.

O lugre “Douro” - Como foi torpedeado
Foi no dia 3 de Abril à saída do canal de Bristol, pelas 3 horas da tarde, que o lugre “Douro” foi torpedeado por um submarino alemão. Vinham navegando com um carregamento completo de carvão de pedra, com destino para o Porto. A viagem era feita com bom tempo. Pedaços de azul apareciam por vezes, de entre os rasgões das nuvens. Um vento fresco fazia inchar as velas pardas. E as vagas embalavam docemente o navio, esbelto nas suas linhas de ave, correndo sobre a superfície espelhada do mar.
Súbito, quando o navio navegava pela latitude 50º51’ norte e longitude 6º34’ oeste, a gente de bordo ouviu uma forte explosão, seguida de um choque violento por bombordo, acompanhado por um enorme jacto de água. O primeiro momento foi de pasmo. Todos ficaram suspensos, interrogando-se ansiosamente. O capitão compreendera imediatamente que o navio fôra torpedeado. Ainda chegou a ver o dorso negro do monstro submarino que se afastava lentamente, fazendo espadanar a água com a sua hélice.
Fôra um momento angustioso aquele diz-nos o capitão São Marcos. Não havia um minuto a perder. A tripulação foi posta às bombas, procurando extinguir a água que entrava valentemente por um rombo feito a bombordo abaixo da marca do seguro. Duas tábuas tinham sido arrancadas pelo efeito da explosão. Durante uma hora fizeram esforços sobre-humanos.
Na imensidade do horizonte nenhum navio se via que pudesse socorrê-los. Era a morte diante dos olhos, naquelas vagas que momentos antes embalavam docemente com brandas carícias o costado do navio agora ferido como uma ave que o tiro de um caçador detém no seu voo rápido.
Quem lhes acudiria? Quem se importaria ali da sua mesquinha situação e da prece que os seus lábios elevavam para o azul luminoso do céu?

O abandono do navio - Horas de angústia
Vendo que não podia salvar o navio, o capitão ordenou então à tripulação, uns 9 homens, que o abandonassem, saltando para uma balieira de bordo.
Assim o fizeram, não sem que o último olhar fosse para o barco que no meio das águas desaparecia lentamente, tendo a tremular no topo do mastro grande a bandeira que parecia despedir-se deles, dizer-lhes ainda adeus! Içaram então a vela cerca das 5 horas da tarde do mesmo dia, seguindo derrota como o rumo este-nordeste, navegando à mercê do mar e do vento, enquanto eles alongavam pelo mar a vista na esperança de descobrirem ao longe o fumo de um vapor, a vela de um navio que representasse a salvação. Às 9 horas da noite avistaram enfim um vapor.
- Como o coração, diz-nos, ainda com a voz tremula o capitão do lugre “Douro”, se alvoroçou de contentamento, enquanto as suas mãos se erguiam fazendo sinais de socorro! O vapor, porém, afastou-se e eles voltaram a sentir a angústia atroz do isolamento, ali sozinhos, sobre as ondas do mar imenso, soturno, vendo fugir-lhes a esperança de salvação com a noite que se aproximava.

O salvamento – Até Swansea
A volta para a Pátria
Continuaram assim sob a chuva e cerração que caíra sobre o mar, molhados, cheios de fome e frio, quase mortos de fadiga, até que às 3 horas do outro dia avistaram a barca “Helwich”, que os recolheu, passando-os depois para o vapor “Tudval”, que os transportou para Swansea, onde chegaram às 10 horas da noite do dia 4. Estavam salvos! O contentamento daquela pobre gente!
E o capitão José São Marcos, estendendo-nos a sua larga mão de homem do mar, despediu-se referindo-nos a viagem de volta dos seus marinheiros na barca “Felisbela” e a sua a bordo do vapor norueguês “Naagall”, para este porto onde, chegou ontem.
(In jornal “Comércio do Porto”, sábado, 24 de Abril de 1915)

Comentário e conclusão:
1. Certezas - Infelizmente poucas porque não se entende a explicação do capitão São Marcos relativamente ao ataque do submarino, face ao conhecimento da forma utilizada pelos alemães para afundarem os navios construídos em madeira.
A realidade permite colocar na área do afundamento do navio o submarino UC-24, mas no diário de bordo do submersível, correspondente à data em questão, não consta qualquer referência ao ataque.
Não se percebe também qual seria o motivo que levaria os oficiais do submarino a não identificar o lugre português, recolher os documentos do navio e o manifesto de carga, já que na ocasião Portugal não era um dos países beligerantes, ainda que isso possa ser considerado irrelevante, como ficaria comprovado em data próxima com o ataque e afundamento do vapor “Cysne”.
2. Dúvidas - Com efeito, algumas! Passo a citar: «a gente de bordo ouviu uma forte explosão, seguida de um choque violento por bombordo, acompanhado por um enorme jacto de água.» e «O capitão compreendera imediatamente que o navio fôra torpedeado. Ainda chegou a ver o dorso negro do monstro submarino que se afastava lentamente, fazendo espadanar a água com a sua hélice.»
Porque o lugre "Douro" foi o primeiro caso de eventual agressão militar a um navio português na Iª Grande Guerra, o capitão São Marcos não devia imaginar duas circunstâncias fundamentais; primeiro, os alemães não utilizavam torpedos para afundar navios com cascos de madeira, porque os guardavam para navios maiores e mais resistentes e segundo, o efeito da detonação de um torpedo num casco de madeira teria deixado o lugre de tal forma depauperado, que inevitavelmente causaria vitimas, senão mesmo de toda a tripulação, caso a sorte ou o acaso não viesse a permitir a possibilidade do recurso à balieira, que foi usada para o salvamento após o naufrágio.
Depois há ainda a confirmação de ter sido visto o submarino afastando-se lentamente, a espadanar a água com a sua hélice. Esta é outra circunstância pouco plausível porque, volto a citar: «A viagem era feita com bom tempo.»
Apesar das explicações dadas pelo capitão José São Marcos, que se apresentam fora de contexto, poderia ainda supor que o lugre “Douro” pudesse ter sido canhoneado e atingido por uma ou outra granada, porque o dano verificado a bordo consistia, e cito novamente: «Duas tábuas tinham sido arrancadas pelo efeito da explosão.», mas também nesta situação revela-se improvável a tripulação do lugre não se ter apercebido dos disparos, desde o contacto inicial para, como era hábito, ficaram sujeitos à imediata paralisação do navio.
Todas estas indicações analisadas decorridos mais de 100 anos sobre o afundamento do lugre “Douro”, muito provavelmente em completa contradição ao protesto de mar apresentado pelo capitão São Marcos, devidamente avalisado pela tripulação, dão-lhe o direito de veracidade perante a lei, mas simultaneamente abrem uma janela de oportunidade para a ocultação dos factos, omitindo a realidade e confundindo o grande valor histórico da presença portuguesa no mar, nesse período.

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