A tragédia da barca "Bahiana"
Senhor de Matozinhos! Que recordações dolorosas ao
invocar o teu nome, soluça esta multidão imensa, que ajoelha a teus pés, implorando a tua misericórdia.
Senhor de Matozinhos! Como é consolador levantar o coração angustiado, numa prece de gratidão, sob a mansidão do teu olhar, à luz amortecida dos círios que a fé dos crentes acendeu no teu altar florido!
Senhor de Matozinhos! Como é consolador levantar o coração angustiado, numa prece de gratidão, sob a mansidão do teu olhar, à luz amortecida dos círios que a fé dos crentes acendeu no teu altar florido!
Senhor de Matozinhos! Esperança dos que se arrojam
ao mar, levando a tua «silhouette» no coração, pronunciando o teu nome ao arrear da bandeira de bordo, à hora solene das Avé-Marias, quando o véu negro da noite, constelado de mil lumes, cobre a nau venturosa, a caminho de terras de Santa-Cruz!
Senhor de Matozinhos! Senhor de Matozinhos!
A história do Bom Jesus de Matozinhos está por fazer. Os cronistas, os escritores, os historiadores, os jornalistas, todos aqueles que se teem ocupado da Imagem do Bom Jesus de Matozinhos, em livros, em revistas ou artigos de jornais, não nos veem trazer novos ensinamentos além dos que a lenda nos relata: - que a Imagem foi esculpida por Nicodemus, o discípulo amado de Jesus, que apareceu na praia do Espinheiro sem um braço, etc.
Entretanto, a sua história, ou melhor dizendo, a história da crença que se formou à volta do seu nome, está bem visível e bem patente; basta que analisemos detalhadamente essas dezenas de oleografias que adornam as paredes da Casa dos Milagres da Confraria do Bom Jesus de Matozinhos, para que diante de nós ela se desenrole, eloquentemente pormenorizada e documentada.
Há tempos, cometeu-se a barbaridade de se mandarem retocar esses pequenos quadros; e essa ordem inconsciente e absurda, encontrando logo um carrasco que a executasse, foi cumprida tão à risca, que se chegou a alterar a ortografia das legendas de alguns deles e a apagar-se, em todos, os vestígios da acção corrosiva do tempo, tirando-se-lhes todo o valor! Esses quadros aparecem-nos agora com as suas cores irritantes de figuras de passar!
São doentes incuráveis que se mostram no seu leito de dor e a quem uma promessa ao Bom Jesus, fez restituiu a saúde.
São cavaleiros audazes, correndo à desfilada por ribanceiras íngremes, que se despenham, que rolam, que se confundam com a lama do abismo onde caem e que, no fim, se erguem ilesos, a beijar o crucifixo que escondiam no peito, de joelhos sobre o arcaboiço, ainda quente, do ginete morto.
São soldados simples das aldeias de Portugal, a quem a guerra chamou às fileiras do regimento e que, no calor da peleja, quando o sangue generoso dos camaradas jorra abundantemente das feridas da baioneta inimiga, saem salvos do campo de batalha, erguendo ao céu, em ansias de devoção e fé, o escapulário que no momento da partida, as mães ou as noivas lhe colocaram ao peito.
São, sobretudo, navegantes, que no alto mar, quando a tempestade desbarata a mastreação e o vento furiosamente despedaça as velas, que de joelhos imploram a misericórdia do Bom Jesus; e a violência do vento, o turbilhão incessante da vaga alterada que envolve a embarcação quase a afundar-se, tornam-se, de repente, numa brisa suave e mansa que embala o navio e num lençol branco de espuma que lhe beija o costado, como que a tatear-lhe as feridas de bálsamo cicatrizante.
Entretanto, a sua história, ou melhor dizendo, a história da crença que se formou à volta do seu nome, está bem visível e bem patente; basta que analisemos detalhadamente essas dezenas de oleografias que adornam as paredes da Casa dos Milagres da Confraria do Bom Jesus de Matozinhos, para que diante de nós ela se desenrole, eloquentemente pormenorizada e documentada.
Há tempos, cometeu-se a barbaridade de se mandarem retocar esses pequenos quadros; e essa ordem inconsciente e absurda, encontrando logo um carrasco que a executasse, foi cumprida tão à risca, que se chegou a alterar a ortografia das legendas de alguns deles e a apagar-se, em todos, os vestígios da acção corrosiva do tempo, tirando-se-lhes todo o valor! Esses quadros aparecem-nos agora com as suas cores irritantes de figuras de passar!
São doentes incuráveis que se mostram no seu leito de dor e a quem uma promessa ao Bom Jesus, fez restituiu a saúde.
São cavaleiros audazes, correndo à desfilada por ribanceiras íngremes, que se despenham, que rolam, que se confundam com a lama do abismo onde caem e que, no fim, se erguem ilesos, a beijar o crucifixo que escondiam no peito, de joelhos sobre o arcaboiço, ainda quente, do ginete morto.
São soldados simples das aldeias de Portugal, a quem a guerra chamou às fileiras do regimento e que, no calor da peleja, quando o sangue generoso dos camaradas jorra abundantemente das feridas da baioneta inimiga, saem salvos do campo de batalha, erguendo ao céu, em ansias de devoção e fé, o escapulário que no momento da partida, as mães ou as noivas lhe colocaram ao peito.
São, sobretudo, navegantes, que no alto mar, quando a tempestade desbarata a mastreação e o vento furiosamente despedaça as velas, que de joelhos imploram a misericórdia do Bom Jesus; e a violência do vento, o turbilhão incessante da vaga alterada que envolve a embarcação quase a afundar-se, tornam-se, de repente, numa brisa suave e mansa que embala o navio e num lençol branco de espuma que lhe beija o costado, como que a tatear-lhe as feridas de bálsamo cicatrizante.
* * *
Ao analisarmos a galeria desses pequenos quadros, recordamo-nos da tragédia da barca "Bahiana", da praça do Porto, ocorrida há uns bons sessenta anos.
A barca "Bahiana", de 385 toneladas, de que era proprietário Joaquim Lourenço Alves, residente à beira rio, nas imediações da Reboleira, fazia viagens entre o Porto e a Bahia.
No regresso de uma delas, surge a tempestade!
A "Bahiana", comandada por um velho lobo do mar, natural de Matozinhos, foi resistindo ao tempo, até que a violência do furacão lhe cortou a mastreação; as velas, feitas em pedaços, voaram, levadas pelo vento; e o forte arcaboiço de madeira e ferro da barca portuense, recebia em cheio a pancada da onda, que porfiava desconjuntá-la, dando-lhe por sepultura o fundo misterioso do mar.
A tripulação desvairada, já não obedecia às ordens de comando; alguns marinheiros correram à arrecadação para se embriagarem; o capitão, armado, impunha-lhes o cumprimento das suas determinações; mas a barca já metia água; estava tudo perdido; só restava morrer!
Amainara o temporal; mas de que valia, se não havia um mastro, se não havia uma vela, se o leme se tinha partido e se a tripulação não obedecia?
Então o moço de bordo, João Rodrigues Maia, um rapaz de quinze anos, quase nú, ensaguentado pelos ferimentos que recebera nas manobras do convés, corre ao porão, desvairado; descobre, enrolada, uma vela nova; toma-a nos braços musculosos, sobe ao convés e grita:
- Meu capitão! Estamos salvos! Aqui está uma vela!
Nos olhos do velho marinheiro brincaram duas lágrimas de raiva.
- Sim, exclamou: de que nos serve a vela se não temos mastros?
- Ainda ali se ergue metade do da proa! Deus é connosco! E desenrolava a vela, onde um fio de sangue desenhara uma cruz rubra.
Os marinheiros colocaram-na, então, segundo as indicações do seu comandante; lá em baixo, o carpinteiro de bordo, Manuel Fernandes Ferreira, calafetava o arcaboiço da barca, por onde entrava um fio de água, alagando os porões; o capitão, descendo ao seu beliche, subira seguidamente ao convés.
Uma vez ali, reunida a tripulação, todos se descobriram e ajoelharam; o capitão, avançando para a vela armada no topo do pequeno mastro da proa que o furacão mutilara, pregara-lhe, ao centro, uma estampa do Bom Jesus de Matozinhos, que sempre trazia enrolada no escaninho da sua caixa de madeira.
Ouviu-se, então, o murmúrio de uma oração, como ao descerrar o Santíssimo nos lausperenes da Sé Catedral; a marinhagem chorava; e o seu soluçar, misturava-se com os compassos de uma canção religiosa, muito em voga entre a gente do mar: - o Bemdito.
Depois da tempestade, surge sempre a bonança; assim sucedeu; e a "Bahiana" muitos dias depois, entrava, desarvorada, a barra do Porto, fundeando em frente a Massarelos.
A gente da cidade, ao saber do sucedido, acorrera, alarmada, à margem do rio; momentos depois, desembarcava a tripulação e formava-se, na estrada de Massarelos, um comovente cortejo.
A marinhagem da "Bahiana", descoberta e descalça, como nas manobras do convés em dias de borrasca, com sua roupa de oleado negro e lustroso, tomava sobre seus ombros a vela salvadora, ao centro da qual se via, quase esfarrapada, a estampa do Bom Jesus! Dirigia-se, a pé, ao Santuário de Matozinhos, onde ia oferecer ao Bom Jesus, a vela da sua barca.
À frente, abrindo o cortejo, caminhava o moço João Rodrigues; ladeando a vela, o contra-mestre e a marinhagem; o capitão fechava o cortejo. Pelo caminho, que uma poeira branca tapetava, a «silhouette» negra dos marinheiros dava um tom de tristeza àquele prestito; e pela estrada fora, a voz triste dos marujos entoando o Bemdito, fazia chorar...
São todas, como esta, as histórias que nos contam aquelas dezenas de quadros a óleo, pendentes das paredes da Casa dos Milagres, outrora enagrecidos pelo tempo e aos quais o espírito modernizador desta geração de inconscientes, mandou encarnar de cores berrantes de figuras de passar!...
A barca "Bahiana", de 385 toneladas, de que era proprietário Joaquim Lourenço Alves, residente à beira rio, nas imediações da Reboleira, fazia viagens entre o Porto e a Bahia.
No regresso de uma delas, surge a tempestade!
A "Bahiana", comandada por um velho lobo do mar, natural de Matozinhos, foi resistindo ao tempo, até que a violência do furacão lhe cortou a mastreação; as velas, feitas em pedaços, voaram, levadas pelo vento; e o forte arcaboiço de madeira e ferro da barca portuense, recebia em cheio a pancada da onda, que porfiava desconjuntá-la, dando-lhe por sepultura o fundo misterioso do mar.
A tripulação desvairada, já não obedecia às ordens de comando; alguns marinheiros correram à arrecadação para se embriagarem; o capitão, armado, impunha-lhes o cumprimento das suas determinações; mas a barca já metia água; estava tudo perdido; só restava morrer!
Amainara o temporal; mas de que valia, se não havia um mastro, se não havia uma vela, se o leme se tinha partido e se a tripulação não obedecia?
Então o moço de bordo, João Rodrigues Maia, um rapaz de quinze anos, quase nú, ensaguentado pelos ferimentos que recebera nas manobras do convés, corre ao porão, desvairado; descobre, enrolada, uma vela nova; toma-a nos braços musculosos, sobe ao convés e grita:
- Meu capitão! Estamos salvos! Aqui está uma vela!
Nos olhos do velho marinheiro brincaram duas lágrimas de raiva.
- Sim, exclamou: de que nos serve a vela se não temos mastros?
- Ainda ali se ergue metade do da proa! Deus é connosco! E desenrolava a vela, onde um fio de sangue desenhara uma cruz rubra.
Os marinheiros colocaram-na, então, segundo as indicações do seu comandante; lá em baixo, o carpinteiro de bordo, Manuel Fernandes Ferreira, calafetava o arcaboiço da barca, por onde entrava um fio de água, alagando os porões; o capitão, descendo ao seu beliche, subira seguidamente ao convés.
Uma vez ali, reunida a tripulação, todos se descobriram e ajoelharam; o capitão, avançando para a vela armada no topo do pequeno mastro da proa que o furacão mutilara, pregara-lhe, ao centro, uma estampa do Bom Jesus de Matozinhos, que sempre trazia enrolada no escaninho da sua caixa de madeira.
Ouviu-se, então, o murmúrio de uma oração, como ao descerrar o Santíssimo nos lausperenes da Sé Catedral; a marinhagem chorava; e o seu soluçar, misturava-se com os compassos de uma canção religiosa, muito em voga entre a gente do mar: - o Bemdito.
Depois da tempestade, surge sempre a bonança; assim sucedeu; e a "Bahiana" muitos dias depois, entrava, desarvorada, a barra do Porto, fundeando em frente a Massarelos.
A gente da cidade, ao saber do sucedido, acorrera, alarmada, à margem do rio; momentos depois, desembarcava a tripulação e formava-se, na estrada de Massarelos, um comovente cortejo.
A marinhagem da "Bahiana", descoberta e descalça, como nas manobras do convés em dias de borrasca, com sua roupa de oleado negro e lustroso, tomava sobre seus ombros a vela salvadora, ao centro da qual se via, quase esfarrapada, a estampa do Bom Jesus! Dirigia-se, a pé, ao Santuário de Matozinhos, onde ia oferecer ao Bom Jesus, a vela da sua barca.
À frente, abrindo o cortejo, caminhava o moço João Rodrigues; ladeando a vela, o contra-mestre e a marinhagem; o capitão fechava o cortejo. Pelo caminho, que uma poeira branca tapetava, a «silhouette» negra dos marinheiros dava um tom de tristeza àquele prestito; e pela estrada fora, a voz triste dos marujos entoando o Bemdito, fazia chorar...
São todas, como esta, as histórias que nos contam aquelas dezenas de quadros a óleo, pendentes das paredes da Casa dos Milagres, outrora enagrecidos pelo tempo e aos quais o espírito modernizador desta geração de inconscientes, mandou encarnar de cores berrantes de figuras de passar!...
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A propósito da tragédia da "Bahiana" existem as seguintes notas, que vêm autenticar a sua absoluta veracidade.
Do Registo de Entradas e Saídas da Barra do Porto, da Associação Comercial da cidade, referidas a 8 e 9 de Maio de 1868, publicadas no jornal "Comércio do Porto"
Às 10 horas da manhã do dia 8 do corrente a barca "Bahiana" apareceu ao norte, vindo arribada e desarvorada com bandeira à proa e sem gurupés, sendo pilotada no dia seguinte, âs 2 horas e 50 da tarde, entrando no Douro, a reboque, trazendo um carregamento de açucar e vários géneros, vinda da Bahia com 59 dias de viagem.
Do Registo de Entradas e Saídas da Barra do Porto, da Associação Comercial da cidade, referidas a 8 e 9 de Maio de 1868, publicadas no jornal "Comércio do Porto"
Às 10 horas da manhã do dia 8 do corrente a barca "Bahiana" apareceu ao norte, vindo arribada e desarvorada com bandeira à proa e sem gurupés, sendo pilotada no dia seguinte, âs 2 horas e 50 da tarde, entrando no Douro, a reboque, trazendo um carregamento de açucar e vários géneros, vinda da Bahia com 59 dias de viagem.
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A barca "Bahiana"
A barca "Bahiana"
Entrou ante-ontem a barra, a barca "Bahiana", procedente da Bahia, com 59 dias de viagem. A "Bahiana" veio desarvorada. Foi causa de perder a mastreação um violento furacão de que foi acossada no dia 23 do mês passado, na latitude 41ºN e longitude 25ºW.
Trazia então 43 dias de viagem, pois havia saído da Bahia a 12 de Março. A "Bahiana" tendo desarvorado, andou 60 horas à discrição, até que, improvisadamente mastreada com os recursos que havia a bordo, rumou a Norte e pode conseguir entrar no porto que demandava!
Não se passou, porém, tudo isto tão simplesmente, que a tripulação, quando o navio foi desarvorado, não corresse o risco de perecer.
Jornal "Comércio do Porto", Nº 108, de 12 de Maio de 1868
Trazia então 43 dias de viagem, pois havia saído da Bahia a 12 de Março. A "Bahiana" tendo desarvorado, andou 60 horas à discrição, até que, improvisadamente mastreada com os recursos que havia a bordo, rumou a Norte e pode conseguir entrar no porto que demandava!
Não se passou, porém, tudo isto tão simplesmente, que a tripulação, quando o navio foi desarvorado, não corresse o risco de perecer.
Jornal "Comércio do Porto", Nº 108, de 12 de Maio de 1868
Bibliografia
Lessa, Santos, Alvoradas de Fé, pp 29-41, edição do jornal "O Comércio de Leixões", 1928
= Continua =
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