Ao analisarmos a galeria desses pequenos quadros, recordamo-nos da tragédia da barca "Bahiana", da praça do Porto, ocorrida há uns bons sessenta anos.
A barca "Bahiana", de 385 toneladas, de que era proprietário Joaquim Lourenço Alves, residente à beira rio, nas imediações da Reboleira, fazia viagens entre o Porto e a Bahia.
No regresso de uma delas, surge a tempestade!
A "Bahiana", comandada por um velho lobo do mar, natural de Matozinhos, foi resistindo ao tempo, até que a violência do furacão lhe cortou a mastreação; as velas, feitas em pedaços, voaram, levadas pelo vento; e o forte arcaboiço de madeira e ferro da barca portuense, recebia em cheio a pancada da onda, que porfiava desconjuntá-la, dando-lhe por sepultura o fundo misterioso do mar.
A tripulação desvairada, já não obedecia às ordens de comando; alguns marinheiros correram à arrecadação para se embriagarem; o capitão, armado, impunha-lhes o cumprimento das suas determinações; mas a barca já metia água; estava tudo perdido; só restava morrer!
Amainara o temporal; mas de que valia, se não havia um mastro, se não havia uma vela, se o leme se tinha partido e se a tripulação não obedecia?
Então o moço de bordo, João Rodrigues Maia, um rapaz de quinze anos, quase nú, ensaguentado pelos ferimentos que recebera nas manobras do convés, corre ao porão, desvairado; descobre, enrolada, uma vela nova; toma-a nos braços musculosos, sobe ao convés e grita:
- Meu capitão! Estamos salvos! Aqui está uma vela!
Nos olhos do velho marinheiro brincaram duas lágrimas de raiva.
- Sim, exclamou: de que nos serve a vela se não temos mastros?
- Ainda ali se ergue metade do da proa! Deus é connosco! E desenrolava a vela, onde um fio de sangue desenhara uma cruz rubra.
Os marinheiros colocaram-na, então, segundo as indicações do seu comandante; lá em baixo, o carpinteiro de bordo, Manuel Fernandes Ferreira, calafetava o arcaboiço da barca, por onde entrava um fio de água, alagando os porões; o capitão, descendo ao seu beliche, subira seguidamente ao convés.
Uma vez ali, reunida a tripulação, todos se descobriram e ajoelharam; o capitão, avançando para a vela armada no topo do pequeno mastro da proa que o furacão mutilara, pregara-lhe, ao centro, uma estampa do Bom Jesus de Matozinhos, que sempre trazia enrolada no escaninho da sua caixa de madeira.
Ouviu-se, então, o murmúrio de uma oração, como ao descerrar o Santíssimo nos lausperenes da Sé Catedral; a marinhagem chorava; e o seu soluçar, misturava-se com os compassos de uma canção religiosa, muito em voga entre a gente do mar: - o Bemdito.
Depois da tempestade, surge sempre a bonança; assim sucedeu; e a "Bahiana" muitos dias depois, entrava, desarvorada, a barra do Porto, fundeando em frente a Massarelos.
A gente da cidade, ao saber do sucedido, acorrera, alarmada, à margem do rio; momentos depois, desembarcava a tripulação e formava-se, na estrada de Massarelos, um comovente cortejo.
A marinhagem da "Bahiana", descoberta e descalça, como nas manobras do convés em dias de borrasca, com sua roupa de oleado negro e lustroso, tomava sobre seus ombros a vela salvadora, ao centro da qual se via, quase esfarrapada, a estampa do Bom Jesus! Dirigia-se, a pé, ao Santuário de Matozinhos, onde ia oferecer ao Bom Jesus, a vela da sua barca.
À frente, abrindo o cortejo, caminhava o moço João Rodrigues; ladeando a vela, o contra-mestre e a marinhagem; o capitão fechava o cortejo. Pelo caminho, que uma poeira branca tapetava, a «silhouette» negra dos marinheiros dava um tom de tristeza àquele prestito; e pela estrada fora, a voz triste dos marujos entoando o Bemdito, fazia chorar...
São todas, como esta, as histórias que nos contam aquelas dezenas de quadros a óleo, pendentes das paredes da Casa dos Milagres, outrora enagrecidos pelo tempo e aos quais o espírito modernizador desta geração de inconscientes, mandou encarnar de cores berrantes de figuras de passar!...
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A propósito da tragédia da "Bahiana" existem as seguintes notas, que vêm autenticar a sua absoluta veracidade.
Do Registo de Entradas e Saídas da Barra do Porto, da Associação Comercial da cidade, referidas a 8 e 9 de Maio de 1868, publicadas no jornal "Comércio do Porto"
Às 10 horas da manhã do dia 8 do corrente a barca "Bahiana" apareceu ao norte, vindo arribada e desarvorada com bandeira à proa e sem gurupés, sendo pilotada no dia seguinte, âs 2 horas e 50 da tarde, entrando no Douro, a reboque, trazendo um carregamento de açucar e vários géneros, vinda da Bahia com 59 dias de viagem.
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A barca "Bahiana"
Entrou ante-ontem a barra, a barca "Bahiana", procedente da Bahia, com 59 dias de viagem. A "Bahiana" veio desarvorada. Foi causa de perder a mastreação um violento furacão de que foi acossada no dia 23 do mês passado, na latitude 41ºN e longitude 25ºW.
Trazia então 43 dias de viagem, pois havia saído da Bahia a 12 de Março. A "Bahiana" tendo desarvorado, andou 60 horas à discrição, até que, improvisadamente mastreada com os recursos que havia a bordo, rumou a Norte e pode conseguir entrar no porto que demandava!
Não se passou, porém, tudo isto tão simplesmente, que a tripulação, quando o navio foi desarvorado, não corresse o risco de perecer.
Jornal "Comércio do Porto", Nº 108, de 12 de Maio de 1868
Bibliografia
Lessa, Santos, Alvoradas de Fé, pp 29-41, edição do jornal "O Comércio de Leixões", 1928
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