terça-feira, 14 de junho de 2022

Cultura e arte! (2)


A navegação espantosa de Diogo Botelho
O pequenino barco atravessou o Oceano Índico. Em Melinde, onde ninguém ficou, tomaram mais água e mantimentos, antes de se isolarem nos imensos mares do Sul. As tempestades foram tremandas. Ondas alterosas varavam a fusta de proa à popa. Escacearam a água e as provisões. Um português morreu e outros caíram doentes. Os escravos, mal humorados, resmungavam. Diogo Botelho, de espada cingida, conservava-se dia e noite no chapitéu, e dormia numa cadeira. Sabia que os «negros» aguardavam pela melhor oportunidade.
Esta chegou certo dia de tormenta, em que o vento arrastou as velas para o mar. Os portugueses precipitaram-se para reavê-las, e então estalou a revolta. A bordo da casca de noz, balançando-se nas ondas, travaram uma luta espantosa. Com machados, chuços e uma espada roubada, os escravos assaltaram os brancos, que se defendiam como leões. Diogo Botelho recebeu uma pancada na cabeça, que lhe tirou a fala, e outros ficaram gravemente feridos. Apesar de tudo, conseguiram lançar os atacantes ao mar. Uns pereceram afogados, outros pediram perdão a fim de poderem regressar a bordo.
Seguiu esta viagem de pesadelo. Dois dos feridos morreram à míngua de cuidados. Diogo Botelho manteve-se dias a fio sem recuperar a fala. Ainda assim conseguiu, por acenos, dirigir a navegação. Contavam poder reabastecer-se na Ilha de Santa Helena, porém, um espesso nevoeiro não o permitiu. Sequiosos, e definhados pela fome, chegaram por altura dos Açores; mas Diogo Botelho não ousou tocar na Terceira, com receio de ali o prenderem. Resolveu arriscar-se antes no Faial. Não podia adivinhar que justamente aí se encontrava o Corregedor das ilhas. E este, com todos os habitantes, esperava na praia, no pasmo de ver barco tão pequeno, vindo de tão longe.
Diogo Botelho refletiu, ajuntando um feixe de papeis. Desembarcou, agarrado ao volume, como se fosse um tesouro. Trazia cartas urgentíssimas para o rei, explicou. Por isso o mandara o Governador.
O Corregedor não despregava os olhos dele. Aquela cara era-lhe conhecida. A propósito, perguntou-lhe se não seria parente dum Diogo Botelho, degredado na Índia?
Diogo Botelho não pestanejou. Era ele mesmo!, respondeu. Nuno da Cunha não achara outro, que se atrevesse a levar de tal maneira, as importantíssimas cartas ao rei. E indicou o feixe que trazia. O Corregedor ficou na dúvida. Deixou, porém, a fusta reabastecer-se e partir. Ao mesmo tempo preparou uma caravela para seguir-lhe ao alcance. Quem sabia se o homem não iria para a França?
Diogo Botelho viu a caravela e largou com três horas de antecedência. Desviou a rota por dois rumos da agulha e, assim, não foi visto daquela, a qual aportando a Lisboa e não vendo aí a fusta, saíu de novo à sua procura. Na tarde desse mesmo dia, Diogo Botelho entrava a barra do porto da capital e surgiu em frente do Paço da Ribeira. O rei, disseram-lhe, estava em Évora. Então Diogo Botelho comprou um cavalo e à noite galopou para o Alentejo.
O rei e a rainha, já deitados, foram despertados por uma forte pancada na porta do quarto. Novas da Índia!, gritou-lhes o guarda-mór. O mensageiro chegara nesse instante! À luz das tochas, minutos depois e na antecâmera, o casal real espantou-se ao ver magro e macilento, mas como sempre confiado, o degredado Diogo Botelho.
Ajoelhou: A boa nova que trazia, disse, era tal, que lhe dera ousadia para o seu passo inauturizado. O rei houvera-o por traidor. Assim, «porque Vossa Alteza fique fora desta dúvida, arrisquei a vida numa fusta, em que parti da Índia, e naveguei em minha liberdade para mostrar que venho de geração para antes padecer morte que errar um só ponto com seu real serviço». Então falou da fortaleza de Diu: «ela é feita e acabada na altura das ameias... Para este caminho não pedi licença ao Governador, porque ma não havia de dar!... E esta é a mostra da fortaleza», acrescentou, apresentando o seu desenho.
O rei ficou jubiloso com a nova, e louvou a façanha, muito embora não ficasse talvez de todo fora das suspeitas que de si tinha. «João de Barros diz que este não teve a satisfação que tamanha façanha merecia». Mas sempre lhe foi perdoado o degredo, e como homem livre tornou a servir na Índia. (1)
O pequeno barco, a fusta que trouxera de tão longe, ficou em Salvaterra, enchendo de pasmo os numerosos visitantes, naturais e estrangeiros. Depois, o rei mandou levá-la a Sacavem, onde foi queimada. Não que D. João III não quisesse que fosse sabido no mundo poder fazer-se a viagem desde a Índia em navio tão pequenino!
(1) Diogo do Couto diz que el-rei, decorridos alguns anos, lhe deu a capitania de S. Tomé. De Gaspar Correa, consta, porém, que no tempo do vice-rei D. Garcia de Noronha, Diogo Botelho estava na Índia. Sanceau, Elaine, A navegação espantosa de Diogo Botelho

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