sexta-feira, 4 de outubro de 2013

História trágico-marítima (LXXVI)


O naufrágio do patacho inglês “Zerlina”
próximo a Viana do Castelo
- 2ª Parte -

O naufrágio do “Zerlina”
Acerca do naufrágio do patacho “Zerlina”, que ultimamente se deu em Viana, o “Aurora do Lima”, daquela cidade, refere os seguintes pormenores:
«Há muito que não lembra aqui um acontecimento tão completo em incidentes próprios a prender todas as atenções, a atrair todos os sentimentos de humanidade, e a estigmatizar a incúria dos que não promovem a aquisição dos meios indispensáveis de salvação num porto de mar, como o que ante-ontem nos alcançou o espírito.
Votada a uma morte iminente, no sentir de todos, sofreu as intempéries de uma noite desabrida a tripulação de um navio que o vento deixou desarvorado, a poucas milhas da barra de Viana e à vista de todos.
Era um patacho, que se via já na manhã do mesmo dia, pelas alturas do Montedor, navegando com proa ao NNO (norte-noroeste). Pelas 3 horas da tarde aparecia de novo ao norte da barra, parecendo procurá-la.
Seguia na volta do S (sul), quando perdeu primeiro o pau da bujarrona, e em seguida o mastaréu do joanete e da gávea. Apenas desarvorou, desfez de rumo e dirigiu-se para a praia do N (norte), sem dúvida com a intenção de encalhar; porém o lugar que procurava só podia assegurar à tripulação uma morte inevitável.
Do semafórico foi comunicado imediatamente ao navio que navegasse para o sul, rumo que tomou logo. Seguindo ao longo da praia e já por entre mares de rebentação, veio fundear em circunstâncias desoladoras ao oeste da barra. O vento era então ONO (oeste-noroeste), e se a amarração faltasse, o navio desfazer-se-ia, longe de terra, numa praia eriçada de penedos, onde cada tripulante seria uma vítima.
Urgia providenciar, e fez-se então sinal ao navio para que picasse os mastros, intimação que apenas cumpriu em parte, cortando o do traquete. Foi nesta situação horrível que a noite o surpreendeu, e das pessoas que o viram à última luz crepuscular, nenhuma esperava tornar a observá-lo.
De noite o vento rondou mais para o N (norte), e pelas 2 horas percebia-se, pela deslocação dos faróis, que o navio caminhava para o S (sul). Tinha-lhe faltado uma amarra, e assim veio com um ferro à garra até largar outro ao S (sul), em frente a uma fogueira que, como se lhe dissera, indicaria o melhor sítio para o desembarque da tripulação.
É admirável como ficou num lugar tão conveniente, vendo-se passar pela popa e pela proa montanhas de água, sem que a sua influência lhe causasse dano algum. Em terra não havia socorros que pudessem prestar-se, e apenas do semafórico se faziam sinais que animasse a tripulação.
Ao meio-dia de ontem começou grande movimento a bordo: o navio ia largar a amarração, mas inoportunamente, porque a vazante devia desviá-lo da praia. Felizmente só com a “cozinheira” e com um “triângulo”, que um golpe de mar que salvou sobre o mastro grande lhe levou em momentos, conseguiu encalhar no melhor ponto da praia, duas milhas ao S (sul) da barra.
A tripulação salvou-se toda por um cabo de vai-vem, que com muito custo veio de bordo, primeiro amarrado a uma pipa, e como quebrasse, foi de novo trazido por uma jangada, ultimo recurso de salvação que os tripulantes haviam construído quando fundeados.
O capitão e o piloto foram os últimos a abandonar o navio. No local do encalhe compareceram as autoridades competentes, muita gente da cidade e das povoações marginais.
O navio é o patacho inglês “Zerlina”, da praça de Liverpool, capitão Tibbits; arqueia 238 toneladas e trazia de New-York a feliz viagem de 28 dias. Carregava trigo, com destino à praça do Porto. O casco só pode salvar-se se o mar cair completamente.
Cumpre registar entre as pessoas que mais se interessaram pela salvação da tripulação o despachante de Viana, sr. João José de Castro, a cuja actividade incansável se deve a saída de Vigo de um rebocador, o “Mastler”, navio inglês, e que nunca desamparou os náufragos na deplorável situação em que se encontraram; o capitão da escuna inglesa “Margareth”, fundeada junto ao cais, John Castell e mais tripulação, cuja boa vontade os não deixou abandonar os lugares mais convenientes para desenvolverem a sua proveitosa actividade em favor dos seus infelizes companheiros; José Fernandes, tripulante do caíque “Nossa Senhora da Conceição”, que foi quem primeiro lançou mão ao cabo lançado de bordo; Benjamim do Espírito Santo, de Viana, a cargo de quem ficou a iluminação da costa, cujo serviço desempenhou com inteligência, correspondendo com muito acerto aos sinais feitos de bordo; José Martins, marinheiro, António da Silva Moreira, sapateiro, Manuel do Rego e José Fernandes, marinheiros, que com Benjamim, se arrojaram denodadamente ao mar para amarrar o cabo e estabelecer o vai-vem.
O navio e a carga consideram-se perdidos.
Na praia permanece o pessoal da fiscalização e durante o resto do dia de ontem concorreu ali muita gente.»
(In jornal “Comércio do Porto”, sexta, 19 de Janeiro de 1883)

Salva-vidas em Viana do Castelo
O facto de há dias se ter achado em perigo na barra de Viana do Castelo um patacho inglês e o de ter sido necessário reclamar para esta cidade o barco salva-vidas avivaram por forma tal os sentimentos generosos tantas vezes revelados pela briosa e prestimosa Associação dos Bombeiros Voluntários daquela cidade, que desde logo se abalançou ao empreendimento de reclamar para aquele porto um barco salva-vidas, ficando o serviço inerente a esta aquisição constituindo uma secção da referida Associação.
Nesse intuito dirigiu uma representação ao governo, solicitando ou um barco salva-vidas ou um subsídio para o adquirir; e ao apresentar ao digno governador civil de Viana essa representação recebeu de sua excª. o mais cordial acolhimento e a promessa franca de que a faria chegar ao governo acompanhada não só da recomendação oficial que merecia, mas ainda seguida de uma recomendação particular daquele funcionário.
Depois dirigiu-se à câmara municipal de Viana e esta corporação, compreendendo igualmente o alcance do pensamento que se tem em vista realizar, acolheu-o com a máxima aquiescência, prometendo secundar a representação e contribuir com um subsídio para a fundação do posto do salva-vidas naquele porto.
Depois de invocar esta protecção oficial, restava-lhe a cidade, que soube secundar briosamente a fundação da Associação de Bombeiros Voluntários. Esta, confiando ainda na generosidade dos seus protectores de outrora, vai realizar em Viana um peditório para auxílio ao empreendimento que tentou realizar e que, sem dúvida, realizará.
Nem só Viana do Castelo aproveita com a montagem de uma estação de salva-vidas ali; no mar os socorros não devem conhecer nacionalidades nem conhecer portos; e assim, ficando aquele porto tão perto do Porto, muitas embarcações que para aqui se dirijam ou daqui saiam podem, em caso de perigo, encontrar um valimento nos salva-vidas de Viana. E, sendo assim, a Associação Humanitária dos Bombeiros entendeu, e não entendeu desarrazoadamente, que esta cidade deveria receber bem o pensamento que a animava, por um impulso generoso, digno de todo o elogio.
Foi por isso que veio ao Porto o digno 1º secretário daquela distinta corporação, o sr. José Maria Caldeira, e dirigindo-se já ontem a alguns dos principais comerciantes e armadores de navios, viu a sua missão coroada do maior êxito porque recebeu promessas de importantes donativos destinados a fundos de construção da estação do salva-vidas. Tenciona ainda procurar outros cavalheiros, que sem dúvida corresponderão com igual generosidade à pretensão briosa e louvável da Associação Vianense.
Pela nossa parte, não cessaremos de aplaudir o auxílio prestimoso que essa distinta corporação pretende estabelecer para socorro aos náufragos nas costas do norte de Portugal.
(In jornal “Comércio do Porto”, sexta, 19 de Janeiro de 1883)

Notícias do reino
Do jornal “Aurora do Lima”, Viana do Castelo, 19 – «Acerca do naufrágio do patacho inglês “Zerlina”, há a acrescentar os seguintes pormenores:
A carga que se compõe de 3.700 sacas de trigo e 6.000 paus de aduela, pertencia à casa comercial da praça do Porto, do sr. Joaquim Marques da Nova, e estava segura em três Companhias, que, dizem ser a Garantia, a Probidade e a Segurança. O seu valor é calculado, aproximadamente, em 21.000$000 réis.
Ontem pela manhã teve início a remoção da carga e foi encontrado ainda algum trigo em bom estado. O navio considera-se perdido.»
(In jornal “Comércio do Porto”, Domingo, 21 de Janeiro de 1883)

Notícias do reino
Do jornal “Aurora do Lima”, Viana do Castelo, 24 - «Continuam a proceder com toda a actividade ao salvamento da carga que conduzia o patacho inglês “Zerlina”, naufragado ao sul da barra de Viana do Castelo.
O bom tempo que há oito dias tem feito concorreu para esse resultado, porque o mar tem-se conservado sossegado, permitindo assim a extracção de uma grande parte da carga, que, como foi dito, compõe-se de trigo ensacado e aduelas.
O casco do navio, que se acha enterrado na areia e fica completamente a descoberto nas marés baixas, ainda se conserva em bom estado, atenta a sua boa e sólida construção, e, segundo consta, é possível que, tirada toda a carga, se o tempo continuar bonançoso, possa o casco do navio ser posto a nado por meio de pipas.
O trigo salvo está pela maior parte avariado e impróprio para ser entregue ao consumo, no fabrico de pão.»
(In jornal “Comércio do Porto”, sexta, 26 de Janeiro de 1883)

Notícias do reino
Do jornal “Aurora do Lima”, Viana do Castelo, 7 - «Na alfândega da cidade procederam ante-ontem e ontem à arrematação da carga do patacho “Zerlina”, naufragado ao sul da barra.»
(In jornal “Comércio do Porto”, sexta, 9 de Fevereiro de 1883)

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