Só às 17 horas havia maré que facilitasse a entrada na barra do rio Douro a vapores de grande calado, e o “Gil Eanes” que apareceu muito cedo à vista, teve de manter-se imobilizado, desde as 7 horas e meia, defronte da Foz do Douro.
Especialmente à margem direita, afluíram numerosas pessoas para verem essa magnifica unidade da nossa briosa e heróica marinha de guerra – esse vapor hospital e de apoio aos pescadores portugueses que passam parte do ano nas paragens perigosas e longínquas da Gronelândia e da Terra Nova.
O “Gil Eanes” tem larga folha de serviços prestados aos pescadores – o povo não o ignora – mas é quase desconhecido no Porto, onde não entrava há mais de 20 anos. E se não fosse trazer de Nova York mil e trezentos quintais de bacalhau, não teríamos ainda agora a sua visita, que, pode afirmar-se, nos honra e sensibiliza.
Quando no mastro do marégrafo foi hasteado o sinal de entrada, o “Gil Eanes” endireitou para a garganta da barra, onde entrou quase ao escurecer. Na amurada viam-se filas de marinheiros em formação impecável, pondo o branco dos seus uniformes agradável contraste na cor cinzento-escuro do transporte de guerra. Num e noutro ponto havia pessoas a acenar com lenços: era a saudação do povo que assim manifestava a sua admiração e simpatia por aquelas nove dezenas de portugueses, agora regressados da altíssima missão de assistência social em cumprimento de louvável incumbência do Governo.
O vapor-hospital ancorou próximo de terra entre o Bicalho e Massarelos, após as saudações do estilo à passagem junto da canhoneira “Zaire”.
Os directores do Grémio dos Armadores de Navios de Pesca do Bacalhau, srs. João Testa, Silva Rios, José da Cunha Teixeira, Luiz Ferreira de Carvalho e Manuel da Silva Teixeira, foram as primeiras pessoas a ir a bordo. Depois, muitos barcos acostaram ao “Gil Eanes”, subindo a escada de portaló as famílias de oficiais e marinheiros.
Neste primeiro encontro – como aliás em todos os encontros nestas circunstâncias – deram-se cenas enternecedoras: esposas que não se cansavam de abraçar os maridos e filhos que os pais apertavam, demoradamente, contra o peito…
O comandante, sr. Zolá da Silva – oficial distinto que não abandonou o seu posto sem ver terminadas as manobras de amarração – recebeu os visitantes. Era a ocasião de troca de cumprimentos, depois do comandante da “Zaire”, 1º tenente sr. Manuel Coelho de Carvalho, compareceram o chefe do Departamento Marítimo do Norte, capitão de mar-e-guerra Rodrigues Coelho e um representante do sr. general Gaudêncio José da Trindade, comandante da 1.ª Região Militar.
Acompanhados pelo sr. 2º tenente Veiga Ricca, alguns convidados visitaram a enfermaria – magnifico salão que não fica a dever coisa alguma a enfermarias de determinados hospitais – consultório, sala de operações e outras secções de saúde.
O “Gil Eanes” trouxe, doentes, alguns tripulantes de lugres. São eles:
José Custódio Brandão, do “Neptuno IIº”; João Charana e Raul dos Santos Cego, do “João José IIº”; Manuel Pereira Marçal, do “Lusitânia IIIº”; António da Silva Viegas e David Oliveira Dias Cangalhos, do “Aviz”, e “João Alves Moreira, do “Labrador”.
A bordo regressou também a Portugal o jornalista sr. Jorge Simões, que acompanhou a faina dos pescadores na Gronelândia e na Terra Nova, durante os meses desta safra.
O navio em Leixões - Imagem da Fotomar, Matosinhos
O que foi a viagem do “Gil Eanes”
O magnífico vapor-hospital saiu de Lisboa em 16 de Junho findo com rumo a Ponta Delgada, Horta e Flores, onde tocou. Fez rumo, depois, aos Bancos da Terra Nova, chegando nos dias 28 e 29 do mesmo mês ao Virgin Rocks e ao Sul do Grande Banco. Passou correspondência, encomendas, cabos, aparelhos e mantimentos para 7 lugres portugueses e um bacalhoeiro francês de St. Mallon, hospitalizando alguns tripulantes.
Em St. John’s, onde entrou no dia 1 de Julho, permaneceu até ao dia 21. Nessa ocasião iniciou o segundo cruzeiro de assistência aos lugres, e na Terra Nova, prestou-lhes de novo auxílio, recebeu mais doentes e entregou outros já restabelecidos, No dia 27 de Julho o “Gil Eanes” seguiu para o Estreito de Davis, entrando em comunicação rádio-telegráfica com os restantes navios portugueses, os quais, em número de 35, estavam a pescar no Banco Store, muito para além do círculo polar, entre 67-68 graus de latitude Norte.
Na baía de Olstemborg, o trabalho foi intensíssimo
Durante os dias que se seguiram e depois de ter fundeado junto do primeiro lugre, o “Navegante Iº”, na baía de Olstemborg, não mais o navio-hospital deixou de efectuar um trabalho intenso, quase sem interrupção, por vezes em desfavoráveis condições de tempo e mar, mesmo com nevoeiro, navegando de um para outro navio, recebendo doentes e efectuando consultas e tratamentos que ascendem a centenas no total, entregando isca para a pesca, óleos combustíveis e de lubrificação, cartas e encomendas aos milhares, expedindo e recebendo rádios, que tinham de ser cifrados e cujo número, durante toda a campanha, andou à volta de oito mil.
A guarnição do “Gil Eanes”, nesta época do ano em que não existe noite, trabalhou com enorme dedicação e espírito de sacrifício.
Mais tarde, o transporte de guerra navegou para o Norte, com rumo à ilha de Disko, em demanda do porto de Godhavn, onde fundeou na tarde de 8 de Agosto.
Os nossos marinheiros foram alvo de manifestações de simpatia
por parte dos esquimós
A recepção feita à guarnição do transporte português pelas autoridades dinamarquesas da ilha de Disko e pela população esquimó, teve em todos os momentos aspectos de grande cordialidade. Entre os duzentos e sessenta habitantes da minúscula capital da Gronelândia do Norte tem este navio as melhores tradições. Efectuaram-se diversas festas em terra e a bordo, traduzindo todas elas o bom entendimento, que desde a primeira visita do “Gil Eanes” se mantém e mais se estreita de ano para ano entre os marinheiros portugueses e essa hospitaleira gente que vive num dos últimos pontos habitados do globo.
O governador-geral da Gronelândia foi de Godthaab, na escuna “Maaven”, apresentar cumprimentos ao comandante. Acompanhava-o o vice-cônsul da América do Norte na referida cidade, como representante da Nação protectora da Colónia.
«Aqui repousa um pescador português – rezai pela sua alma»
No cemitério local ficou sepultado José Salvador Mendes, da Fuzeta, Algarve, que pertenceu à companha do lugre “Maria da Glória” e que faleceu a bordo do navio-hospital, quando este se encontrava fundeado na ilha de Disko, vitimado por uma disenteria amibiana.
O funeral constituiu emocionante manifestação de sentimento. Incorporaram-se nele o comandante, oficiais, sargentos e todo o pessoal disponível da guarnição; as autoridades da ilha, toda a população indígena, envergando esta os seus pitorescos trajes de cerimónia e de gala. O rev. Adelino da Silva Vieira presidiu ao funeral, devidamente paramentado, e fez as encomendações do ritual.
Desceram a meia adriça as insígnias do navio, das embarcações do porto e as bandeiras dinamarquesas da cidade. A sepultura, que ficou entregue à guarda carinhosa da população, e que nesta data deve estar coberta pelo imaculado lençol de neve que tudo envolve, tem uma cruz branca a assinalá-la, e uma inscrição funerária, que diz: Aqui repousa um pescador português – Rezai pela sua alma.
Feita a aguada e uma estafante faina de carvão, o navio levantou ferro, sendo de assinalar a comovente despedida dos esquimós, que vieram em grupos, através da penedia, acompanhando a marcha do “Gil Eanes”, até que este dobrou a ponta da península de Godhavn e se encobriu por detrás do Monte dos Apóstolos, só ficando visível por mais algum tempo, como derradeiro sinal a cabana do explorador.
O vapor fez várias viagens, redobrando a assistência médica, aportando duas vezes à capital da Terra Nova. Tudo decorreu sem um conflito e sem uma atitude menos correcta dos portugueses, ao contrário do que sucede com marinheiros e soldados de outras nações, que actualmente infestam as ruas da cidade servida pelo porto de St. John’s.
O navio em lisboa - Imagem de autor desconhecido
Rumo a Nova York
O comandante Zolá da Silva deu ordens para largar. Momentos depois da saída do porto, souberam do afundamento do “Normandie”, em virtude de uma tempestade. Ainda uma visita aos lugres, hospitalização de mais doentes e a rota foi marcada para Nova York.
Vinte e quatro horas depois de passar pelo barco-farol de Nantucket, fundeado em pleno oceano, a marcar os baixios deste nome e que estabelece, por assim dizer, o primeiro contacto da navegação com os Estados Unidos, recebiam piloto. O transporte entrava no comprido canal de vinte e duas milhas, cuidadosamente balizado, que conduz, por mar, à maior cidade do mundo. A estibordo sucediam-se as praias e edifícios sumptuosos de Atlantic City.
Já muito próximo dos famosos arranha-céus de Manhattan, o transporte salvou à terra com vinte e um tiros e foi correspondido por forma igual, ao tempo que entravam no navio os oficiais da Marinha norte-americana, que em nome do chefe do Naval District, de Nova York, vinham apresentar cumprimentos de boas-vindas. A imprensa dessa tarde e a da manhã seguinte referiu-se em termos bastante lisonjeiros à visita do transporte-hospital português.
Não tinha a acidental visita do “Gil Eanes” aquela cidade americana, qualquer carácter representativo ou diplomático. Mas o Governo de Washington quis aproveitar a oportunidade para testemunhar a maior simpatia por Portugal. Designou para oficial às ordens do comandante Zolá da Silva, o tenente Anthony Santos, filho de portugueses.
A homenagem da Marinha norte-americana e do ministro de Portugal
Este oficial manteve-se em Nova York durante a permanência de vinte e dois dias que o transporte ali esteve, e ofereceu no Waldorf Astoria Hotel, de renome mundial, um banquete aos oficiais portugueses, durante o qual foram trocados significativos brindes. Aos marinheiros, em nome do Almirantado, ofereceu um interessante passeio e proporcionou-lhes entrada em alguns dos mais famosos espectáculos.
O ministro de Portugal, dr. João de Bianchi, visitou igualmente o “Gil Eanes”, acompanhado pelo primeiro-tenente engenheiro maquinista naval, Faria e Silva, actualmente adido à Delegação e capitão Saavedra de Figueiredo, director da Casa de Portugal em Nova York. Na câmara dos oficiais, pronunciou o ilustre diplomata um breve discurso exaltando a missão dos navios de guerra e dos oficiais da Armada em portos estrangeiros, visto que eles são sempre e em qualquer caso, dos melhores embaixadores do nosso país.
A permanência do transporte nesse porto da América do Norte marcou como um grande acontecimento para os portugueses residentes em Nova York, Brooklin, Newark – onde vivem mais de seis mil nossos compatriotas, quase todos da região de Ílhavo e Aveiro; Elizabeth, White Plaines, e até de Providence, New-Bedford e Fall River, de onde, apesar da distância vieram portugueses visitar o “Gil Eanes”. As festas e recepções oferecidas por muitas colectividades em honra dos oficiais e da guarnição do navio decorreram entusiasticamente.
O regresso a Portugal
A despedida teve aspectos de sincera emoção. O “Gil Eanes” largou de Nova York ao anoitecer do dia 10 do corrente, ou, praticamente, à uma hora da madrugada G.M.T. do dia 11, visto haver 5 horas de diferença nas duas longitudes entre a América do Norte e o nosso país. A viagem directa de Nova York ao Porto efectuou-se normalmente, embora por vezes com mau tempo, à velocidade média de dez nós.
O “Gil Eanes” manifestou, uma vez mais, neste cruzeiro, durante o qual teve de suportar mau tempo, as suas esplendidas qualidades de navegação. Os pescadores que transporta, devem desembarcar nesta cidade. O navio demorar-se-á no rio Douro o tempo indispensável para descarregar o bacalhau, seguindo, depois, para Lisboa.
Números eloquentemente elucidativos
O “Gil Eanes” distribuiu aos lugres 3.000 cartas e 800 encomendas enviadas pela família dos pescadores. Expediu 8.000 rádios. Transportou ainda isca para os navios, gasóleo, provisões e mantimentos, água, prestou-lhes, enfim, aquela assistência de que eles carecem e que por cada ano decorrido se torna mais eficaz, graças à dedicação dos oficiais e marinheiros da Armada e à organização corporativa da indústria no respectivo Grémio dos Armadores.
O navio percorreu as seguintes distâncias: Lisboa-Ponta Delgada, 830 milhas em 81 horas e 41 minutos; Ponta Delgada-Horta, 150 milhas, em 13 horas e vinte minutos; Horta-Flores, 130 milhas em 15 horas e cinquenta minutos; Flores-St. John’s, 1.250 milhas, em 171 horas e trinta e cinco minutos; St. John’s-Godhavn, 1,670 milhas em 230 horas e cinquenta minutos; Godhavn-St.John’s, 1.920 milhas em 261 horas; St. John’s-Nova York, 1.350 milhas em 181 horas e vinte e dois minutos e Nova York-Porto, 2.950 milhas em 300 horas aproximadamente.
No total cobriu 10.250 milhas em cerca de 1.284 horas. Hospitalizou cerca de 60 pescadores, fez perto de um milhar de tratamentos e na enfermaria aplicaram à volta de duas mil injecções.
A guarnição do “Gil Eanes”
Compõe-se de 15 sargentos, 75 praças e dos seguintes oficiais, a guarnição do “Gil Eanes”:
Comandante, capitão-tenente Zolá da Silva; imediato, primeiro-tenente José Gomes Ramos;
médico, segundo-tenente Veiga Ricca; segundos-tenentes de marinha, Bandeira Ennes, Gomes Trindade, Limpo Toscano e Pires Cabral; primeiro-tenente da administração naval, Jorge Esteves; segundo-tenente condutor de máquinas, Rafael Ventura e o sub-tenente condutor de máquinas, Pereira Teles. O “Gil Eanes” tem como capelão o rev. Adelino Silva Vieira, que foi designado pelo patriarcado de Lisboa para assistir espiritualmente aos pescadores.
(Jornal “Comércio do Porto”, sexta-feira, 24 de Outubro de 1941)