quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Dois navios, dois naufrágios, dois dias, duas histórias


O fim no mesmo local… para o “Silurian” e para o “Bogor”
4ª Parte – 4/5

Reportagem sobre o naufrágio do vapor “Bogor”
Fotos de A. Martins, publicados na
Ilustração Portuguesa Nº 461 de 21 de Dezembro de 1914

= Os salvados e o fisco =
A todo o comprimento da praia da «Agudela», encontravam-se dispersos pelo areal os salvados da carga, que o mar arrojava para terra e que alguns pescadores amontoavam em vários pontos sob a vigilância da guarda-fiscal. Simultaneamente, também vinham parar à praia muitos destroços do “Bogor”, que eram, na maioria, madeiramentos e alguns aprestos de bordo. Entre os salvados da carga encontravam-se bobinas e fardos de papel, caixas com queijo, fardos de lúpulo e de cevada germinada, caixas com batatas em grande quantidade, fardos de tabaco em folha, latas de soda caustica, instrumentos de música e muitos outros volumes com diversos tipos de mercadoria.
A guarda-fiscal e os empregados da delegação aduaneira faziam transportar tudo, pouco a pouco, em carros de bois, para umas caves de pescadores, que para tal efeito a alfândega alugou por alguns dias. A maior parte dos salvados estava avariada pela água, tais como o papel, os instrumentos de música, o tabaco e outros artigos cuja embalagem era mais susceptível de danificar-se.
= Ocorrências =
Os grandes sinistros compungem sempre e sempre despertam a curiosidade. Assim, já ontem acorreu muitíssima gente ao local donde apenas se via, dividido e em parte, o vapor “Bogor”, que em malfadada hora mudou a sua carreira. Os três náufragos sobreviventes já referidos e que ficaram hospedados no Hotel Ariz, em Leça da Palmeira, dirigiram-se ontem ao cemitério de Perafita, a fim de reconhecer a identidade dos companheiros que o mar arrojou à praia, depois de lhes haver roubado a vida. Nesse cemitério deram-se por essa ocasião algumas cenas impressionantes de tristeza. Para recolher os despojos que o mar fosse arremessando à praia, ficaram ali de serviço alguns guardas-fiscais.
= Salvo! =
Mais de 36 horas volvidas sobre a horrorosa catástrofe, quando apenas se pensava na praia do «Marreco», em recolher os destroços que o mar trouxesse, eis que às pessoas que ali se encontravam pareceu ouvirem gritos aflitivos com pedidos de socorro, vindos dos restos do navio naufragado. Consultaram-se para perder a ilusão de que o rumor do mar os enganava; mas era certo. Todos ouviam, todos estavam certos de que alguém solicitava auxílio desesperadamente, já pouco antes do anoitecer.
Um guarda-fiscal correu à estação dos bombeiros voluntários de Matosinhos-Leça, comunicando aí que dentro do “Bogor” estava gente gritando. Acto contínuo saíram o material dos bombeiros e a ambulância da Cruz Vermelha a cargo daquela corporação. Entretanto, em terra eram feitos sinais ao infeliz que pedia socorro, então já visível, para que se atirasse à água munido de uma bóia  o que parece ter sido entendido e executado. Uma vez na água, foi-lhe lançada uma corda para efectuar o seu salvamento, mas o homem não teve força para a segurar. Então, o sr. José Gonçalves, empregado da casa Orey Antunes & Cª., lançou-se ao mar e conseguiu salvá-lo, trazendo-o para terra, onde chegou inanimado.
Pressurosamente socorrido pelo sr. dr. Farinhote, reanimou-se, sendo depois levado para a estação dos bombeiros, dando entrada na dependência da Cruz Vermelha. Ali contou o desventurado chamar-se Hendrik Benders, natural de Roterdão, fazendo parte da marinhagem do vapor naufragado. Disse que estava na messe da proa quando se deu o sinistro, que lhes fechou a porta, a ele e a mais dois companheiros, mais desventurados ainda, porque perderam a vida ao cabo de um esforço titânico em procura de salvação. Ele conseguiu exausto e já sem esperança, arrombar uma das vigias e sair daquela prisão, onde a morte o espreitou, segundo a segundo, durante as muitas e longas horas que lá passou. Depois de grande tortura foi, enfim, salvo!
= Notas diversas =
Logo que o mar começou a arrojar à praia os primeiros destroços e antes de ter sido estabelecido o serviço completo de vigilância por parte da guarda-fiscal, algumas mulheres e pescadores do local apanharam bastantes madeiramentos e caixas vazias, que arrastavam para os lares, onde iam servir de excelente combustível, na quadra invernosa e de tanta privação daquela pobre gente. No local do sinistro compareceram o capitão do porto, senhor Capitão-tenente Nunes de Sousa, de Leixões; os srs. Presidente da câmara municipal e administrador do concelho de Matosinhos e várias outras entidades. O cônsul da Holanda no Porto, sr. Herman Burmester também esteve no local, visitando depois os sobreviventes e indo ver o ferido ao hospital, interessando-se pelo bem-estar de todos.
Na praia da «Agudela» esteve um piquete de infantaria da guarda nacional republicana, ido de Matosinhos, que retirou logo que foi estabelecido o serviço montado pela guarda-fiscal.
(In jornal "Comércio do Porto", de 15 de Dezembro de 1914)
= Características do navio =
O “Bogor” era um vapor de nacionalidade holandesa, que pertenceu à empresa Rotterdamsche Lloyd, de Roterdão, também designada por Mala Real Holandesa. Havia sido construído no estaleiro Blohm & Voss, de Hamburgo, na Alemanha, em 1898. Tinha de arqueação 3.620 toneladas de registo bruto, 100,60 metros de comprimento entre perpendiculares, 13,60 metros de boca e 8,66 metros de pontal. A propulsão estava a cargo de um motor de tripla expansão, da responsabilidade do construtor, com 3 cilindros e 275 nhp’s, que assegurava uma velocidade na ordem das 10 milhas por hora. O vapor navegava habitualmente com uma equipagem composta por 38 tripulantes.

Sem comentários: