A construção do lugre-patacho “Gazela Primeiro”
Mais uma vez volto a pegar neste assunto, porque não me canso de investigar a verdade sobre a data e o local de construção do “Gazela Primeiro”. Desta feita recorro aos detalhes no Certificado do Registo de Propriedade deste navio, emitida pela capitania do porto de Lisboa, em 15 de Abril de 1939, cujo original se encontra no Museu Marítimo de Ílhavo e do qual guardo uma cópia, que abaixo transcrevo, como segue:
Em função do que se encontra referido no respectivo certificado, parece não deixar dúvidas que o navio foi mesmo construído em Cacilhas, por J.A. Sampaio, durante o ano de 1883. Só que a realidade aponta noutra direcção!
Reconheço ser difícil, senão impossível, encontrar referências ao navio, nos mapas de entradas e saídas de navios no porto de Lisboa, que se encontram publicados nos jornais da época, bem como nos Diários do Governo: explicaram-me que os navios da pesca eram ignorados, porque na maior parte dos casos havia diversos movimentos diários, daí que tal não se justificava.
Mas quando se trata do porto da Horta, a situação era completamente diferente. Consultados os registos relativos aos anos de 1882 e 1883, cujas cópias também já estão em meu poder, constato o seguinte:
Que o navio entrou no porto açoriano a 12 de Março de 1882, procedente da ilha de S. Miguel, em lastro, em 3 dias de viagem. Estava classificado como patacho e transportava 3 passageiros. Apresentava-se com uma arqueação de 162 toneladas de registo bruto e tinha uma equipagem composta por 6 tripulantes, incluindo o capitão Jacinto Silveira Leal.
Regressou ainda no mesmo ano ao porto da Horta, no dia 7 de Julho, novamente procedente da ilha de S. Miguel, em 6 dias de viagem. O navio transportava 90 barris de azeite de baleia, mas agora com 24 tripulantes, ainda sob o comando do capitão Jacinto Silveira Leal.
Desde logo podem tirar-se duas conclusões destes registos:
Primeiro, o navio já existia antes de ter sido construído; segundo, o navio empregava 18 pescadores necessários ao serviço da pesca da baleia.
Já em 1883, o ano a que deveria corresponder a sua construção, supostamente com os trabalhos iniciados em Abril, no estaleiro em Cacilhas, conforme indicação nas páginas dos registos do Bureau Veritas de 1895, verifica-se que o navio voltou a entrar no porto da Horta, no dia 17 de Março, procedente de Lisboa, com carga diversa, em 11 dias de viagem. Nesta derrota o navio, que ainda mantinha a mesma arqueação, i.e. 162 toneladas de registo bruto, utilizava uma equipagem composta por 7 tripulantes, tendo simultaneamente transportado da capital para os Açores 180 passageiros.
Numa segunda escala ao porto da Horta, no dia 11 de Setembro, o navio apresentou-se procedente da ilha das Flores e da pesca, em 94 dias de viagem, transportando 95 barris de azeite de baleia. Desta feita o navio navegava com uma equipagem de 23 tripulantes, sob o comando do capitão Leal, conduzindo ainda 2 passageiros. A partir desta data a arqueação do navio encontra-se aumentada para 180 toneladas de registo bruto, tendo saído do porto no dia seguinte, para continuar a operar na pesca da baleia.
Nesta altura deve ser igualmente analisada a informação disponibilizada:
Partindo do pressuposto que a construção ou reparação efectuada em Cacilhas, teve início a 11 de Abril e tendo chegado à Horta a 11 de Setembro, decorreram entretanto 153 dias, dos quais 94 foram passados no mar. Isto equivale a dizer que, ou o navio foi construído no espaço de 2 meses, o que não é viável, ou é uma saborosa mentirinha, que visou muito simplesmente posicionar o navio na pesca do bacalhau, a partir de 1897, pagando ao Estado taxas de valor reduzido sobre o pescado.
Não me engano se disser que o lugre “Hortense” já se encontrava a pescar bacalhau em 1883, aquando das primeiras experiências dos Bensaúde, que contemplavam a seca do pescado na ilha do Faial, mas enganei-me quando antecipei que o navio pudesse ter alterado a mastreação em Cacilhas, passando de escuna a patacho. Afinal essa transformação é muito anterior, em data por verificar, pelo que na melhor das hipóteses aceito a indicação do Bureau Veritas, relativamente à substituição de madeiras a bordo, eventualmente ainda da construção original, por outras de excelente qualidade vindas do Brasil.
Haveria alguma possibilidade de ser o mesmo navio? (com alteração da mastreação) http://patrimoniobarreiro.files.wordpress.com/2012/06/cnaval2.jpg?w=640 e http://3.bp.blogspot.com/_f1OZb7DL07k/Rp9ObVoUMTI/AAAAAAAAB8c/znrpcD9hJ6I/s400/Lugres+GAZELA+PRIMEIRO+e+HORTENSE+na+Azinheira+anos+sessenta+Fotos+Bensaude+Lisboa+008.jpg
ResponderEliminarBoa noite António Neves,
ResponderEliminarEm relação à sua pergunta tenho duas respostas: em primeiro lugar, tendo em linha de conta que a construção naval esteve proibida no país nos finais do século XIX até 1902; que parte do casco e provavelmente outros equipamentos foram usados na reconstrução do navio em Setúbal, em 1900, digo-lhe que oficialmente se trata de uma escuna construída em Southampton, em 1837.
Em segundo lugar, sou obrigado a admitir que devido às muitas alterações a que o navio foi sujeito, trata-se pois de um outro navio, com detalhes de tonelagem e dimensões muito diferentes.
Todavia, como lhe disse antes, não fôra a alteração dos detalhes atrás referidos, todas as restantes características de identificação do navio foram mantidas, i.e. o nome, o número oficial de registo, o código internacional de sinais, o registo na capitania de Lisboa, etc.
Posso inclusive salientar que na lista de navios portugueses de 1901, consta o segue:
«Gazella - patacho. Armou em lugre».
Sublinho ainda um aspecto: A ultima reconstrução do navio na Gafanha da Nazaré, em 1959. Se até esse ano o navio preservava parte da quilha de origem, nesse ano foi completamente substituída. Mas tal como em 1900 o navio continua oficialmente a ser o mesmo.
Como deve ter depreendido, já reuni documentação do navio desde 1938, provando a sua existência ao longo dos anos. Falta-me, porém, uma parte muito importante, que está relacionada com os anos em que o navio esteve registado no porto da Horta, a operar na pesca da baleia.
Muito embora já tenha ido ao Faial para procurar elementos, somente encontrei detalhes relacionados com os anos de 1880 a 1883, o que é pouco. Mas espero ainda conseguir acesso a mais informação para tentar completar o melhor possível a história comercial deste navio, que se apresenta como um puzzle de dimensões notáveis.
Para terminar, espero que venha a ser publicado um texto meu sobre este navio, na próxima edição da Revista de Marinha.
Muitos cumprimentos,
Reinaldo Delgado