terça-feira, 14 de agosto de 2012

Uma história, que a história não contou - A odisseia da barca Craigmullen


Inacreditável, ou talvez não!

Escrevi no blog recentemente um resumo sobre a história comercial da barca que se chamou “Craigmullen”, de nacionalidade inglesa, registada em Liverpool. Da sua passagem por Lisboa, onde foi rebatizada “Beira”, para posteriormente pertencer à praça do Porto, matriculada com o nome “América”, a pretexto de um temporal a que o navio esteve sujeito e que se acha representado num ex-voto. E do seu encalhe e posterior desencalhe aquando da grande cheia no rio Douro, em Dezembro de 1909. Porque o blog é sistematicamente policiado por um amigo próximo, cujos comentários enriquecem e adicionam conhecimento ao teor dos textos, mais uma vez encontrou um artigo publicado no jornal Marlborough Express, da Nova Zelândia, em 1908, que publico após tradução livre, pois vem complementar parte do que foi escrito previamente, muito embora longe de prever semelhante drama.

Pintura da barca "Craigmullen"
Imagem cortesia da WikiGallery.Org

Navio desaparecido à deriva por dez meses
= 1ª Parte =
É deveras estranha a trágica história da barca inglesa “Craigmullen”, que tendo partido de Singapura em 1895, foi considerada misteriosamente desaparecida. Cerca de um ano depois o navio reaparece em circunstâncias dramáticas, com três tripulantes inconscientes a bordo, quando lá estavam vinte e cinco, que compunham a totalidade da sua equipagem.
A narrativa completa desta terrível viagem foi finalmente divulgada pelo capitão E.G. Mann, que esteve lá embarcado como oficial imediato, tratando-se de um dos dois sobreviventes do navio, presente ao serviço da companhia de navegação, que entretanto entrou em processo de falência.
A “Craigmullen” era uma barca com uma arqueação próxima às setecentas e sessenta toneladas de registo, encontrando-se matriculada no porto de Liverpool, navegando normalmente com uma equipagem composta por 25 tripulantes. Partiu de Liverpool em meados de Julho, em viagem para Singapura, onde carregou um lote completo de arroz com destino a Callao, no Perú.
Face à intenção de encurtar a viagem, tanto quanto possível, o capitão ao deixar o porto de Singapura decidiu navegar para sul, através do Estreito de Sunda, para aproveitar a corrente de noroeste da monção, seguindo com vento de feição ao longo do Pacífico.
Todavia, contrariando as melhores previsões, o navio enfrentou vento pela proa desde o início da viagem, inicialmente vindo de sul, mais tarde sudoeste e depois mantendo as mesmas direções, alternadas a espaços. Finalmente, ao fim de seis semanas com o mar de vaga grossa a bater-lhe pesadamente pela proa, houve necessidade de afilar o navio ao vento, mudando-lhe o rumo para noroeste. Nessa ocasião o capitão optou por uma solução extrema; em vez de tentar posicionar o navio a circundar as ilhas, concebeu a ideia de seguir em linha reta para o Bornéu, navegando através da completa extensão do Mar da China, atravessando o Canal de Bashi. Perante tal decisão, o navio foi levado a enfrentar o agravar do tempo, com ventos muito violentos. De tal forma que em duas ocasiões, a tripulação revoltada quis obrigar o capitão a procurar ancoradouro de abrigo nas proximidades, apesar de o não terem conseguido.
Porém, todas as conversas e ameaças terminaram com o abrandar do vento, quando o navio chegou à latitude do Canal de Bashi. E de repente nem uma brisa. A calmaria chegou de tal ordem sufocante, só concebível de ser encontrada num mar tropical, tal e qual como a violência do vento nos dias anteriores. E por lá ficaram imobilizados, como um tronco de madeira sobre a água, só comparável a uma coluna de chumbo fundido a permeio dum hipotético fundeadouro.
Os dias sucediam-se aos dias; semanas após semanas; meses após meses e o vento sem se fazer sentir. A cada manhã o sol punha-se de leste sobre o mar, abria um rasto de fogo asfixiante desde o céu e mergulhava a oeste numa interminável monotonia. E todos, pouco a pouco, enlouqueciam – foram dias absolutamente terríveis! Às vezes ferravam-se as velas à espera duma ligeira brisa em total ansiedade e desespero.
Outras vezes a tripulação descia os botes à água para tentar, apesar de muito enfraquecidos para remar, rebocar o navio para qualquer lugar, para longe daquele maldito local. Por esta altura a comida e a água eram já racionadas em pequenas quantidades, apenas para assegurar a sobrevivência de cada um.
Foi então que os homens da tripulação começaram a adoecer. O primeiro a morrer foi o aprendiz, um rapaz com apenas quinze anos, na manhã do dia de Natal. Seguiu-se-lhe o capitão; morreu insano com convulsões delirantes. E a partir daí não havia uma única semana, sem que a loucura fizesse mais uma vítima. Alguns, às vezes ficavam resignadamente calmos, mas com os corações agitados entre constantes suspiros; já os restantes lançavam gritos, com esgares de raiva e espumando pelas bocas, em fúria descontrolada, amaldiçoando os coveiros que lhes cavaram ali a sua sepultura.
As palavras pouco significam para descrever o terror daquela solidão e do ambiente mórbido que se mantinha a bordo. A quietude havia-se instalado à sua volta – o céu estava morto, o mar também morrera e até mesmo a atmosfera parecia resumir-se a um local onde não havia vida. Nem sequer um pássaro se aproximou do navio. Só existia a passagem diária dum sol abrasador através do céu, a queimar os corpos famintos, até que a pele ressequida como um pergaminho, se colasse aos ossos, levando o pensamento desesperado a imaginar, que a terra tinha deixado de se movimentar sobre o seu próprio eixo.

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